quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Artigo X


Psicologia Analítica e Religião: um breve esboço de leituras acerca do tema
Sheila de Araújo Barboza 

Esse texto traz uma síntese do pensamento de Jung sobre a Religião, bem como minhas breves impressões a respeito. Para tanto utilizei a leitura dos livros: “Psicologia e Religião” do próprio Jung, “C.G. Jung: Espiritualidade e Transcendência” de Brigitte Dorst e “Individuação: Adão Alienado, Cristo Reconciliado” de Ana Elizabeth C.B. Rabelo, para compor e fundamentar tal escrita.
              Jung (1987), trata o fenômeno religioso com uma perspectiva empírica,  ressaltando que observa os fenômenos e se abstém de qualquer abordagem metafísica ou filosófica. Portanto, trata-se de uma Psicologia empírica. Para ele a psique possui uma função religiosa e isto quer dizer que possuímos uma capacidade inata de produzir símbolos significativos e tocantes, sendo naturalmente dotado de um senso do sagrado. 
              O termo Religião (religere) é entendido por ele como uma acurada e conscienciosa observação do numinoso. Este último (numinoso) é relativo a divindade, independe da vontade da pessoa e pode ser uma presença invisível que produz uma modificação especial na consciência. Deste modo, “religião designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso” (Jung, 1987, p. 10). A religião está presente na natureza humana, como esclarece Rabelo (2010), na sua vida social e pessoal. 
              Jung (1987) nos diz que esta experiência foi sacralizada e enrijecida dentro de uma construção mental inflexível onde seu exercício e repetição transformaram-se em rito e instituição imutável. Acredito que é a partir desta ideia que ele diferencia a experiência original do “religare” e do numinoso com a religião enquanto instituição. Também me parece ser esse aspecto o que gera interpretação equivocada de leigos ao afirmarem que Jung trata do assunto sob um aspecto místico.
              Há um trecho neste livro que considero fundamental para a nossa prática enquanto psicólogos, pois ele diz que não devemos tomar um credo religioso e, como tal, possuidor de verdade exclusiva e eterna. Deste modo, não é isto que deve ser tomado como ponto de partida, mas a psicologia do homo religiousus, ou seja, daquele que observa certos fatores que agem sobre ele; deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso. Jung escreveu que a melhora de seus pacientes, em muitas ocasiões, ocorria através da recuperação do senso de religião, pois, como esclarece Rabelo (2010), a experiência do numinoso baseia-se na ativação de forças arquetípicas (entendo que na psicologia analítica significa que são imagens e emoções que são derivadas do inconsciente coletivo e da sua relação com o inconsciente pessoal) da própria psique. Estas forças agem dirigindo o Ego para o Self.  
 Hall apud Rabelo (2010) nos lembra que Jung preferia deixar as questões relativas ao Deus metafísico aos teólogos, pois teve o cuidado de distinguir as manifestações psicológicas das teológicas.
Jung (1987) fala que a experiência religiosa é algo de absoluto e é indiferente o que pensa o mundo a este respeito, pois aquele que a tem (a experiência) possui um tesouro que se converteu numa fonte de vida para tal pessoa.  
              No livro de Dorst (2015), autora que fala do tema Espiritualidade e Transcendência, reuniu os diversos textos e livros de Jung sobre o tema religião, espiritualidade e transcendência. A autora elucida que a espiritualidade se refere a todas as formas de religiosidade, independentemente de confissões e igrejas, e abrange uma pluralidade de fenômenos religiosos. Portanto, independe das tradições e remete às dimensões profundas da experiência que não são mais perceptíveis em muitas formas de religião. A autora Junguiana esclarece que nas obras de Jung o termo “espiritualidade” como é usada hoje em dia, não era usual na época dele. Assim, Religião e “religiosidade” eram as designações estabelecidas e com a preocupação de desenvolver uma psicologia da “experiência religiosa”, sendo esta um fenômeno psíquico.
              No que diz respeito ao termo transcendência, a autora supracitada explica que Jung cita “função transcendente” psicológica para se referir à união de conteúdos conscientes e inconscientes através de uma transição de uma mentalidade para outra.
              Deste modo, a transcendência da psique refere-se segundo Dorst (2015), às experiências espirituais de conexão com o divino, com o absoluto, que vão além da consciência cotidiana, mas que tudo o que pode ser apreendido e percebido com os sentidos e o mundo invisível do inconsciente faz parte de uma totalidade indivisível, uma realidade una chamada por Jung de unus mundus.
              Jung (1987) refere que a “religião” ou “confissão”, como ele prefere chamar, tem a finalidade de “substituir a experiência imediata por um grupo adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados” (p. 48). Neste último aspecto ele cita a Igreja, enquanto instituição religiosa, como a mantenedora do dogma e ritual que define se a experiência imediata provém de Deus ou do diabo, se deve ser repelida ou aceita. Contudo, Jung diz que tratou de diversos pacientes que vivenciaram uma experiência imediata, mas não queriam se submeter à decisão da autoridade eclesiástica e os acompanhou em crises, conflitos e medos de enlouquecer. Sobre este aspecto ele ressalta a importância do dogma e dos ritos, ao menos enquanto método de higiene, apoiando, com isso, um meio defensivo contra um grave risco.
No tocante aos símbolos religiosos, este surge nos textos citados neste trabalho muitas vezes relacionados aos sonhos. Apenas para ilustrar, me detenho nas citações de Jung (1987) acerca da simbologia do número quatro (4) ou quaternário que surge em setenta e um (71) dos quatrocentos (400) sonhos de um de seus clientes. O número quatro (4) alude a uma ideia ligada à tetraktys dos pitagóricos. Tal símbolo possui caráter numinoso, “sacro”. Jung elucida que para estudiosos das ciências naturais e filósofos da natureza de muitos séculos atrás discutiam o problema da quadratura do círculo que constituía uma projeção psicológica de coisas antigas e inconscientes. Mas sabia-se que o círculo significava a divindade; a esfera continha o número quatro que simbolizava as partes, as qualidades e os aspectos do Uno.
No tocante a interpretação de sonhos e símbolos é necessária certa inteligência, como alerta Dorst (2015), pois ela exige um crescente conhecimento da individualidade do sonhador bem como um autoconhecimento sempre maior por parte do intérprete. Entendo que num contexto de psicoterapia, esse conhecimento deve existir tanto por parte do cliente quanto do psicoterapeuta, mas sobre este último é reforçado a premissa de que o profissional deve investir muito na sua terapia pessoal.
Quanto à essência do símbolo, Rabelo (2010) cita que Jung se referia a uma união da verdade racional com a irracional, pois ele deve conter ambos os lados. Enriquece este entendimento com a citação de Mircea Eliade quando ele diz que o símbolo revela algo mais profundo e enquanto elemento religioso toca nas estruturas do mistério da vida que é sentido como a dimensão sacramental da existência humana.
Jung (1987) diz que tanto ele como outros colegas viram diversos casos onde os sonhos e as visões traziam este simbolismo, cujo método comparativo com outros povos e épocas, mostra que a quaternidade é uma representação de um Deus que se manifesta na sua criação. Ele conclui que o símbolo produzido espontaneamente nos sonhos dos homens modernos indica algo semelhante – o Deus interior. Diante da longa experiência dele e de colegas com tais observações, ele diz que não é mais possível pôr em dúvida tal existência. Neste caso ele fala da existência de uma imagem arquetípica de Deus e “é tudo o que se pode dizer, psicologicamente, acerca de Deus” (p.64).
              Há outros aspectos discutidos com profundidade por Jung no seu livro “Psicologia e Religião” sobre o simbolismo da quaternidade, bem como acerca de outros símbolos associados tais como a Trindade, a relação do quarto aspecto com a representação do demônio, da terra, da mulher; cada um com base em estudos de filósofos medievais, outros em alquimistas. Contudo, não pretendo esgotar tais aspectos neste texto.
O que também busco ressaltar aqui é que Jung nos chama a atenção para conhecermos alguns aspectos de nossa Sombra. Rabelo (2010) explica que na psicologia analítica se tem o entendimento de que esta é inerente à psique, mas pertence ao universo inconsciente. Porém, mesmo sendo reprimida ou negligenciada, não pode ser eliminada. A Sombra abarca qualidades que rejeitamos e que permanecem dentro de nós como uma segunda personalidade. A autora diz:
“Quando a sombra é projetada, o indivíduo não percebe as sinistras intenções nela existentes, como o inimigo velado da dúvida interior ou as baixas motivações da voracidade e do auto engrandecimento que têm estado por detrás de inúmeras atrocidades” (p. 64). É interessante notar que a Sombra pode ultrapassar os limites do pessoal e alongar-se na ‘Sombra Coletiva’. Isto pode acontecer quando homens ditos civilizados, reunidos em massa, acabam por se portar dentro de padrões inferiores de comportamento” (p. 30).
              Quanto a este assunto, Jung me parece muito atual em relação à realidade que vivemos, embora se referisse a outra situação e época (fim da década de 30 do século XX). Para melhor ilustrar coloco abaixo os trechos do livro “Psicologia e Religião”:
 “Observe-se a incrível crueldade de nosso mundo supostamente civilizado – tudo isto tem sua origem na essência humana e em sua situação espiritual! Observe-se os meios diabólicos de destruição! Foram inventados por gentlemans inofensivos, cidadãos pacatos e respeitados (...). Mas, como cada um está cegamente convencido de não ser mais do que uma simples consciência, muito humilde e sem importância, que cumpre suas obrigações, ganhando seu modesto sustento, ninguém percebe que toda a massa racionalmente organizada a que se dá o nome de Estado ou Nação é impelida por um poder aparentemente impessoal, invisível, mas terrível, cuja ação ninguém pode deter. Em geral, tenta-se explicar esse poder terrível pelo medo diante da nação vizinha, que se supõe estar possuída por um demônio maligno (...). Projeta seu próprio estado no vizinho. Torna-se então um dever sagrado possuir canhões e os gases mais venenosos” (p. 54).                            
              E não é isso que vivemos nos dias atuais? O homem moderno que não vai em busca do “si-mesmo” e ainda lança partes do seu inconsciente correspondente à “Sombra” projetadas no mundo externo, muitas vezes potencializando ações maléficas e destrutivas atribuindo às outras Nações ou Estados o mal que na realidade está encrustado em cada um que apenas projeta?
              Alinhando essa análise com a citação de Dorst (2015) sobre textos de Jung nas obras completas, destaco:
“É preciso ocupar-se consigo mesmo senão não há como tornar-se alguém, senão nem é possível desenvolver-se. (...) Quanto mais alguém se torna consciente de si mesmo mediante o autoconhecimento e o agir correspondente, tanto mais desaparece aquela camada do inconsciente pessoal acumulada sobre o inconsciente coletivo. (...) Essa consciência ampliada não é mais aquele emaranhado sensível e egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições pessoais, que precisa ser compensado ou então também corrigido por tendências contrárias pessoais e inconscientes, mas é uma função relacional vinculada ao objeto, ao mundo, a qual transfere o indivíduo para dentro de uma comunhão incondicional, compromissiva e indissolúvel com o mundo” (p. 32).    
              A autora, Dorst (2015), sintetiza todo este entendimento dizendo que o indivíduo está ameaçado por perigos mortais que ele mesmo criou e que lhe fogem ao controle. Daí compara a humanidade a um indivíduo em que, na condição atual, está sendo arrastada por forças inconscientes. Considera muito problemático manter a ideia de que “os nossos adversários” estão completamente errados do ponto de vista moral e filosófico, esperando que os mesmos se arrependam e reconheçam seus erros em vez de fazermos (enquanto ocidente) um sério esforço para reconhecermos nossas sombras e suas maquinações traiçoeiras. Arremata de modo bem atual aos últimos acontecimentos no mundo[i][1], de que na prática fazemos o mesmo que eles, só com a desvantagem de não vermos nem querermos ver o que praticamos sob o manto de nossas boas maneiras.
Como nos diz Rabelo (2010), quando a pessoa alcança a busca efetiva do Self (si-mesmo) e entra em contato com a totalidade, ele passa a carregar consigo também um aspecto pior, defeitos reconhecidos e que não são possíveis de se desligar destes, mas que justamente por isso faz a pessoa preservar um senso ético. Deste modo, o objetivo não é alcançar a perfeição, pois totalidade psíquica quer dizer certo equilíbrio alcançado entre consciente e inconsciente, produzindo-se uma situação de certa paz e plenitude. Todos os autores colocam a palavra “certo ou certa” no sentido de “não muito definido ou exato” porque essa totalidade (Self) é sempre um processo e não um resultado acabado, definitivo. Por isso, iniciei o parágrafo com o termo “alcança a busca”, pois é isso o que importa.
Enfim, é necessário ler mais algumas vezes os textos de Jung para compreender melhor o assunto. Esse texto só pinça alguns aspectos citados por ele e outros autores que se baseiam nele. Trago uma tímida explanação sobre o meu olhar e entendimento acerca deste tema. Considero imprudente tecer opiniões amplas e firmes sem uma leitura mais aprofundada. Por isso recomendo aos leitores (me incluo nessa recomendação) deste simplório texto a se entregarem ao estudo do tema em Jung, na sua vasta obra.

REFREÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DORST, B. Espiritualidade e transcendência / C.G. Jung; seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 

JUNG, C.G. Psicologia e Religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987 (Obras Completas de C.G. Jung; v.11/1).

RABELO, A.E.C.B. Individuação: Adão alienado, Cristo reconciliado. São Paulo: Iglu, 2010.


[1] A edição desse livro é de 2015, mas é naturalmente anterior ao fato ocorrido na sexta-feira 13 de novembro do corrente ano em Paris, mas não sei ao certo se anterior ou posterior ao ocorrido em abril deste mesmo ano em Garissa, Quênia. Neste último, terroristas que tomaram o campus, na fronteira com a Somália, integravam o Al-Shabaab, grupo somali ligado à Al-Qaeda e combatido pelo Quênia desde o fim de 2011. Consideravam a universidade “um território muçulmano”, que precisava se libertar “dos infiéis”. Daí a ação sanguinária. Os extremistas acabaram assassinados durante o cerco policial. Entre os 148 mortos, contavam-se 142 estudantes (fonte: http://operamundi.uol.com.br/blog/samuel/perguntas/por-que-minha-fraternidade-e-tao-seletiva/). 





quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Artigo IX


PSICOLOGIA E RELIGIÃO
Ivna Ariane Santos Vieira


“A religião constitui, sem dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana.” (Jung, 2012, p.17).

INTRODUÇÃO

Atualmente vivemos uma grande incerteza no tocante aos assuntos religiosos e com isso, observa-se que o homem moderno sente, cada vez mais, falta de apoio nas confissões religiosas tradicionais. A perspectiva religiosa desenvolvida por Jung permite-nos uma compreensão mais profunda dos valores tradicionais e confere um novo sentido às formas cristalizadas e esclerosadas.
A problemática religiosa ocupou um lugar central na sua obra. Quase todos os escritos de Jung, especialmente os dos últimos anos, tratam do fenômeno religioso. Na verdade, o que ele entende por religião não se vincula a determinadas confissões. Trata-se, de uma observação acurada e conscienciosa daquilo que Rudolf Otto chamou de numinosum.
            É importante entender que essa definição vale para todas as formas de religião, inclusive para as primitivas, e corresponde à atitude respeitosa e tolerante de Jung em relação às religiões não cristãs.
            Jung recebeu muitas críticas por seu envolvimento com a religião. Isso porque as pessoas, na verdade, não entendiam o seu trabalho e o criticavam sem nem mesmo conhecer sua teoria.
            Seu maior mérito foi o de haver reconhecido como conteúdos arquétipos da alma humana, as representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião.
             








O CONCEITO DE RELIGIÃO EM JUNG


O fascínio que o tema religião exercia em Jung era tão grande, que boa parte de suas obras podem ser consideradas uma tentativa de se compreender o fenômeno religioso.
O psicólogo suíço desde muito cedo foi confrontado com o fenômeno religioso, desde a influência protestante de seu pai até as inúmeras experiências com o transcendente.
Jung tenta compreender os fenômenos religiosos pelo viés da psicologia. Sua tarefa foi mostrar o que a psicologia, ou melhor, o ramo da psicologia médica que ele representa, tem a ver com religião ou pode dizer sobre a mesma.

Subtende-se que todo o tipo de psicologia que se ocupa da estrutura psicológica da personalidade humana deve pelo menos constatar que a religião, além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, é também um assunto importante para grande número de indivíduos. (Jung, 2012, p.17).

Apenas para citar algumas obras do autor que abordam diretamente a relação entre psicologia e religião, temos ao longo de suas Obras Completas: Psicologia e Religião, Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade, O Símbolo da Transformação na Missa, Resposta à Jó, Psicologia da Religião Oriental, sem contar as outras obras como Aion, Estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo, e o prefácio do I Ching, de Richard Wilhelm.
Na obra Psicologia e Religião, Jung trata deste tema demonstrando a presença dos arquétipos nos símbolos religiosos, e a consequência psicológica destes sobre o modelo que ele desenvolve. Jung se utiliza de uma série de sonhos de um homem moderno, para revelar-nos a função exercida pela psique inconsciente.
Em Interpretações Psicológicas do Dogma da Trindade, Jung analisa este importante dogma cristão e critica o fato de a Trindade não ser um símbolo adequado ao processo de individuação. Para ele, os três elementos (Pai, Filho e o Espírito Santo) não comporta de forma satisfatória o todo da psique. A Trindade exclui o quarto elemento, ou seja, os aspectos materiais e femininos, renegando-os a sombra.
Na obra Símbolo de Transformação da Missa, o autor destaca essa cerimônia religiosa como um elemento de forte relevância psicológica, e afirma que a missa pode ser classificada como um rito de processo de individuação.
Em Psicologia e Religião Oriental, logo de início, coloca a diferença tipológica, caracterizando o oriental como tipo introvertido e o ocidental como tipo extrovertido. Essa diferença é o principal fator que marca a diversidade da experiência religiosa e da compreensão da religião nesses dois contextos de mundo.
Na obra de Jung também estão presentes textos relacionados ao livro tibetano da grande libertação, notas sobre a Ioga e o Ocidente, considerações em torno da Psicologia da Meditação Oriental e o prefácio de I Ching: O livro das transformações, de Richard Wilhelm.
O auge das considerações sobre religião nos estudos do autor é o texto Resposta a Jó. Nos textos anteriores o foco era demonstrar que a psicologia e religião não eram inimigas e que possuíam pontos em comum. Em Resposta a Jó, a perspectiva parece ser um tanto diferente, pois vemos uma especulação declarada no campo da teologia. Jung, seguindo a trilha de Jó, tenta enfrentar o problema do bem e do mal vividos amargamente por esse personagem bíblico.
Este breve panorama de suas obras, que abordam diretamente a relação entre psicologia e religião, serve apenas para termos uma ideia da grandiosidade do estudo deste autor. Não é objetivo deste trabalho aprofundar a discussão destas obras. O objetivo deste texto é falar, brevemente, sobre o que é religião para Jung, e é na introdução da obra Psicologia e Religião que encontramos a melhor definição deste conceito.
O livro Psicologia e Religião (Ocidental e Oriental) é o volume 11/1 das obras completas. Este livro é a transcrição de três conferências sobre o tema da psicologia da religião dadas na Universidade de Yale.

Religião é – como diz o vocábulo latino religere - uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de “numinoso”, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causados por ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. De qualquer modo, tal como o consensus gentium, a doutrina religiosa mostra-nos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo. O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é, pelo menos, a regra universal. (2012, p.19)

E na continuação, Jung afirma que:
Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego ordinário do termo: religio, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados (2012, p. 20).
Logo em seguida, Jung afirma querer deixar bem claro que com o termo “religião” ele não se refere a uma determinada profissão de fé religiosa. Ele inclusive cita Cicero, em nota de rodapé, “religião é aquilo que nos incute zelo e um sentimento de reverência por uma certa natureza de ordem superior que chamamos divina” (p.20).
Para Jung, a verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso, e, por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. Assim, podemos dizer, portanto, que o termo “religião” designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso.
O numem ou numinoso, segundo Otto, é “ente sobrenatural, do qual ainda não há noção mais precisa” (Otto, 2007, p.28). É válido notar que, de acordo com essa definição, duas expressões - ainda e não há - mantêm a idéia paradoxal da dificuldade de conceituar de fato e a possibilidade de se conhecer o ente conceituado. As duas expressões juntas indicam que a experiência está ali, pode ser percebida, pode ser até conceituada, mas existe uma realidade além, imensurável, imprevisível.
Otto destaca a possibilidade de uma experiência religiosa, de algo que se encontra em estado latente, que pode ou não se manifestar, de uma religião inerente ao ser humano, presente em estado de possibilidade. Para Otto “o sentimento do numinoso é desse tipo. Ele eclode do fundo d’alma, da mais profunda, base da psique” (2007, p.151).
Observe então o destaque da religião como uma característica da psique. Jung defende que qualquer que seja a natureza da religião, não resta a menor dúvida de que seu aspecto psíquico, empiricamente constatável, reside nessas manifestações do inconsciente. Em determinado trecho de Psicologia e Religião, Jung faz uma consideração sobre a questão dos sonhos e pontua que se o resultado da investigação favorece a hipótese do inconsciente, os sonhos deverão ser tidos como possíveis fontes de informações das tendências religiosas do inconsciente.
Essa semelhança entre a experiência pelo ego do Self e a experiência de conteúdos numinosos tem implicações fundamentais na teoria de Jung, que se espelham no conceito de individuação. Tal conceito representa a meta, o fim último da personalidade, em forma de processo: tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais última e incomparável, significa também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo (Self)
A própria meta da vida é, pois, considerada como uma aproximação entre ego e self; nesse sentido, a meta envolve necessariamente uma experiência numinosa, e, portanto, religiosa. Um aproximar do ego em direção ao centro da personalidade total, que se manifesta como imagens da divindade. Esta meta só é possível através do funcionamento da função religiosa, uma fidelidade, uma entrega ou uma submissão a um fator superior ou a um princípio convincente em outros termos, através da manutenção consciente de uma atitude de religio.
Nise da Silveira (1983) reforça a afirmação de que Jung considera todas as religiões válidas na medida em que recolhem e conservam as imagens simbólicas oriundas das profundezas do inconsciente e as elaboram em seus dogmas, promovendo assim conexões com as estruturas básicas da vida psíquica. A vivência religiosa implica uma atitude do indivíduo de abertura ao inconsciente e seu mundo simbólico, ressaltada por Jung como uma postura necessária.
Não foi alvo deste texto, mas gostaria de explicar, caso não seja possível inferir, que Jung deu pouca atenção ao Deus transcendente ao universo (exterior) e prendeu-se apenas à imanência (presença interior), cuja tendência foi se tornar polarizada nos termos das crenças metafísicas dos teólogos contra a visão de Jung sobre a realidade de Deus na psique.
Acho que é importante considerarmos essa observação, já que Jung usou a palavra “Deus” mais de seis mil vezes em seus escritos. Um dos seus conceitos fundamentais diz que é apenas através da psique que podemos estabelecer que Deus age sobre nós. Jung afirma que há um arquétipo da completude no inconsciente coletivo da psique que se manifesta espontaneamente através dos sonhos, etc., e parece ocupar uma posição central que “o faz aproximar-se do Deus-imagem”.
Observa-se que Jung atribui à necessidade religiosa uma ânsia humana por completude no inconsciente. Essas imagens alçam-se nas profundezas da natureza psíquica, independente da mente consciente. Assim, quando Jung usa a palavra Deus, refere-se ao Deus-imagem na psique, o que não prova a existência física de Deus. Ou seja, um símbolo não é realidade física, embora seja uma realidade psíquica.
Rabelo ressalta a posição de Jung sobre a experiência do Divino, quando diz:
incorreria em um erro lamentável quem considerasse minhas observações como uma espécie de demonstração da existência de Deus. Elas demonstram somente a existência de uma imagem arquetípica de Deus (...) como a vivência deste arquétipo tem muitas vezes, e inclusive, em alto grau, a qualidade do numinoso, cabe-lhe a categoria de experiência religiosa. (2010, p. 93).
As concepções religiosas eram de tamanha importância para Jung, que fundamentado no seu trabalho de psicoterapeuta, menciona a importância da religiosidade para o ser humano, ao afirmar:

Entre todos os meus doentes mentais na segunda metade da vida, isto é, tendo mais de trinta anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por ter perdido aquilo que uma religião viva sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum curou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto, está claro, não depende absolutamente de adesão a um credo particular ou de tornar-se membro de uma igreja (Jung apud Silveira, 1983, p. 142).

            Silveira (1983), chama a atenção para o fato de que Jung reconhece todos os deuses possíveis e imagináveis, sob a condição única de que sejam ou tenham sido atuantes no psiquismo do homem.
Jung alerta que o psicólogo, que se coloca numa posição puramente científica, não deve considerar a pretensão de todo credo religioso: a de ser o possuidor da verdade exclusiva e eterna. Uma vez que este profissional trata da experiência religiosa primordial, deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso, abstraindo o que as confissões fizeram com ele.

Como sou médico e especialista em doenças nervosas e mentais, não tomo como ponto de partida qualquer credo religioso, mas sim a psicologia do homo religiosus, do homem que considera e observa cuidadosamente certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral (Jung, 2012, p.22).

Por fim, gostaria de trazer duas passagens do capítulo três do livro Psicologia e Religião, as quais resumem bem o pensamento e o esforço de Jung para promover o entendimento da religião. Sem contar que considero duas passagens lindas nas quais Jung se mostra extremamente poético.
Na primeira delas Jung afirma não esperar que nenhum cristão crente, nem os beati possidentes (felizes donos) da fé, sigam o curso de suas “ideias absurdas”.  Ele afirma dirigir-se para as numerosas pessoas para as quais a luz se apagou, o mistério submergiu e Deus morreu. Segundo ele, para a maioria dessas pessoas não há um retorno possível e nem se sabe se o retorno seria o melhor. Ele afirma que para compreender as coisas religiosas, no momento presente, o caminho seria o da psicologia. E ele prossegue explicando:

Daí meu empenho de dissolver as formas de pensar historicamente petrificadas e transformá-las em concepções da experiência imediata. É certamente, uma empresa difícil reencontrar o ponto que liga a concepção do dogma com a experiência imediata dos arquétipos psicológicos, mas o estudo dos símbolos naturais do inconsciente nos oferece os materiais necessários. (2012, p.111)

E mais a frente ele coloca a razão pela qual ele leva a sério os símbolos criados pelo inconsciente. Para Jung os símbolos são os únicos capazes de convencer o espírito crítico do homem moderno. Eles convencem subjetivamente, por serem imponentes, convincentes.
O que cura a neurose deve ser tão convincente quanto à própria neurose, e como esta é demasiado real, a experiência benéfica deve ser dotada de uma realidade equivalente. (...) Ninguém pode saber o que são as coisas derradeiras e essenciais. Por isso, devemos toma-las tais como sentimos. E se uma experiência desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais plena ou mais significativa para nós, como para aqueles que amamos, então poderemos dizer com toda a tranquilidade: “Foi uma graça de Deus”. (2012, p.131).

E finaliza:
Com isto, não demonstramos qualquer verdade sobre-humana, e devemos reconhecer com toda a humildade que a experiência religiosa extra ecclesiam (fora da igreja é subjetiva e se acha sujeita ao perigo de erros incontáveis. A aventura espiritual de nosso tempo consiste na entrega da consciência humana ao indeterminado e indeterminável, embora nos pareça, e não sem motivos, que o ilimitado também é regido por aquelas leis anímicas que o homem não imaginou, e cujo conhecimento adquiriu pela “gnose” no simbolismo do dogma cristão, e contra o qual só os tolos e imprudentes se rebelam; nunca, porém, os amantes da alma. (2012, p.131).
CONSIDERAÇÕES FINAIS


            Observa-se, pela breve análise, que Jung não foi teólogo nem metafísico, mas examinou a importância simbólica e psicológica da experiência religiosa em grande profundidade, sem fazer nenhuma afirmação sobre a verdade objetiva ou sobre a falsidade de qualquer credo. Jung, na verdade, analisou as implicações que surgem na esfera psíquica pessoal e coletiva através do estudo dos símbolos.
O conjunto dos fatos analisados, por si, já demonstram a importância da religiosidade na construção e na organização da sociedade. É possível perceber que Jung estabelece uma hermenêutica psicológica para a religião, inserindo-a como possibilidade de estudo quando abordada como uma experiência profunda e pessoal.
Acredito ser fundamental compreender que Jung reconheceu como verdadeira a necessidade espiritual que anseia pela completude, e aceitou imagens de completude sendo oferecidas pelo inconsciente, saindo das profundezas de sua natureza psíquica, independente da mente consciente. Energias espirituais do inconsciente servem ao que ele chama de processo de individuação, no qual o Self real de uma pessoa a faz esforçar-se para se tornar o que pretende ser.
Assim, em outras palavras, entende-se que tocar o aspecto religioso da psique é o próprio objetivo da terapia. A aproximação ao numinoso é a verdadeira terapia, visto que se nos atemos às experiências numinosas, somos libertados da maldição da patologia. Isto porque as imagens arquetípicas trazem em si, por suas características, um fator organizador e curador – dado também pela questão do sentido e significado inerentes a elas.
Portanto, essencialmente, o objetivo da psicoterapia Junguiana constitui-se em um confronto com os materiais inconscientes, a fim de que haja uma assimilação destes pela consciência. Tal confronto com o “substrato escuro do eu” pode chegar a um ponto em que imagens de cunho arquetípico emergem, com toda a carga numinosa que lhes é característica, o que é por definição uma experiência religiosa.
Logo, a questão religiosa não pode ser ignorada por uma teoria psicológica e muito menos distorcida. Precisamos ter o olhar atento e compreender o fenômeno. A crítica leiga que tenta colocar Jung como mago, místico, filósofo, teológico, irreal e a-científico faz, na verdade, uma crítica preconceituosa. Jung estudou as religiões de uma maneira científica. Ele não fazia religião dentro da ciência psicológica. Ele levou a ciência para dentro da religião. Muito importante destacar isso. Jung foi estudar como a religião funcionava e funciona para os indivíduos. Ele foi ver qual a importância disso para o sujeito. Mas ele não trouxe a religião para dentro da terapia. O que Jung fez foi levar a ciência em busca de conhecimentos a respeito da religião.





REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Psicologia e religião Ocidental e Oriental. Volume 11/1. 11°ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
OTTO, Rudolf. O Sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Trad. de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal EST, 2007.

RABELO, Ana Elisabeth Castelo Branco. Individuação: Adão alienado, Cristo Reconciliado. São Paulo, Ed. Iglu, 2010.
SILVEIRA, Nice da. Jung: vida e obra. 8° ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Artigo VIII


O MITO DE ULISSES e o processo de Individuação
Ivna Ariane Santos Vieira

Ao estudar mitos, estamos em busca daquilo que nos vincula mais profundamente à nossa própria natureza e ao nosso lugar no cosmo. (Hollis, 1997).

            INTRODUÇÃO

Há algum tempo, quando ainda estava na escola, ficava fascinada nas aulas de literatura e história, quando os professores narravam estórias de cidades, reis, rainhas e guerras. Lembro que, nesta época, minha mente devaneava tanto nas aulas, que mesmo depois delas, inspirada pelo assunto, conversava com meus colegas de classe sobre o tema estudado e ia produzindo todo um contexto maior para a história relatada.
Lembro também que na época, meados da década de 80, passava um desenho, “O Fantástico Mundo de Bob”, logo fui apelidada de Bob. Divertia-me demais nestes devaneios. Engraçado que o tempo passou, e ainda hoje faço todo esse movimento mental. Às vezes uma estória curtinha, acaba virando um enredo enorme em minha mente.
Então, comecem a imaginar o que aconteceu comigo ao estudar Psicologia Analítica. Fiquei surpresa com a descoberta de que dentro do universo da Mitologia estão as verdadeiras histórias da humanidade. Fiquei tão contagiada que não me contive e corri para o computador para começar a escrever.
O objetivo deste texto é escolher um mito e fazer a análise, tomando por base uma bibliografia básica. A primeira grande questão que surgiu foi: Qual mito irei escolher? Uma dúvida imensa percorreu meu ser. Apesar da angustia inicial, decidi ler o material e, a partir das leituras, deixar que algum mito, de certa forma, “me escolhesse”.
Com o passar dos dias de leitura, comecei a ficar aflita porque, até então, não havia decidido qual mito iria analisar. Nesta mesma noite, ao deitar, pensei: “Espero que essa noite algum sonho mostre-me o mito que deverei trabalhar”. Estava tão exausta que logo adormeci.
De repente fiquei sentindo que o mito de Homero, mais especificamente a passagem na qual Ulisses se amarra no mastro para passar pelas sereias, ficou mais “viva” na minha mente. Após guardar o material, continuei pensando na estória de Ulisses e o efeito “mundo maravilhoso de Bob”, se instalou em mim.
O resto do dia fiquei pensando no esforço de Ulisses, as dificuldades enfrentadas no assédio das sereias e, principalmente, fiquei admirada com sua determinação para conseguir chegar a sua terra natal e rever sua amada. Ele foi muito talentoso em driblar as dificuldades existentes e sobreviver. Apesar de ter passado o dia todo pensando no mito, ainda estava insegura a respeito da minha possível escolha. De qualquer forma, já havia uma esperança: algo diferente começava a surgir em mim.
No outro dia, dirigindo para o trabalho, retomei minhas divagações sobre o mito de Ulisses e, de repente, me veio a imagem do sonho. Como num clarão, vi no formato da plateia, o barco de Ulisses e Ivete Sangalo seria a sereia que cantava para aquele povo. Neste momento compreendi o porquê das pessoas estarem tão desanimadas, até assustadas. Agora, tudo fazia sentido. Fiquei impressionada! Poderia dizer até emocionada.
Diante destes fatos iniciei propriamente minha produção. Analisarei, brevemente, à luz da Psicologia Junguiana, o canto XII do poema épico Odisseia atribuído a Homero. Sinto-me diante de um grande desafio. Mas, como Ulisses, precisarei encontrar minhas estratégias para enfrentar.









ANÁLISE DO MITO

O poema épico Odisseia, atribuído a Homero, escrito há mais de 2.800 anos, é um dos textos mais fantásticos já escritos por um ser humano. O poema conta as aventuras do Guerreiro Ulisses, o qual recebeu o chamado para participar da guerra de Tróia. Relata os obstáculos enfrentados por ele ao retornar para casa, depois de duas décadas, onde sua mulher Penélope e seu filho o esperam. Carregados de significado simbólico, os seres fantásticos e as situações que aparecem na narrativa persistem no imaginário popular.
Uma das passagens mais conhecidas do poema é o encontro de Ulisses com as sereias (“as sirenas”), híbrido de mulher e animal que usava voz doce e a sensualidade para atrair os marinheiros até as águas repletas de rochedos, onde os navios corriam o risco de se despedaçar contra as pedras. O herói, porém, consegue resistir a elas amarrando-se no mastro de sua embarcação e instruindo seus marinheiros a tampar os ouvidos com mel endurecido. Esse trecho do poema tem menos de 30 versos, é curto, se considerarmos que a obra tem quase 12 mil. É justamente este pequeno trecho que servirá de foco para a análise.
Homero usa a mitologia grega para criar os cenários dos desafios que Ulisses encontrou em sua jornada. O autor cria metáforas onde os símbolos têm fortes significados. Quando conseguimos compreender os significados de toda a simbologia, percebemos com clareza as virtudes que Ulisses tinha, que na verdade são as virtudes que todos nós precisamos ter para superar os desafios da vida. Todo esse contexto ultrapassa gerações, fazendo parte, segundo Jung, do nosso inconsciente coletivo.
Para Jung;
Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal.  Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos... Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por outro lado, são chamados arquétipos. (2003, p.15-16).

Uma forma bem conhecida de expressão dos arquétipos é encontrada no mito. O mito é uma das formas onde os arquétipos humanos se materializam. É nos mitos que Jung encontra o material privilegiado para analisar os mistérios da alma, os acontecimentos anímicos, os arquétipos. “Nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural como formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno”. (Jung, 2003, p. 214).
Por isso é tão importante estudar a mitologia. Os mitos repletos de lendas históricas e contos sobre deuses, deusas, batalhas heroicas e jornadas no mundo subterrâneo, revela-nos os interiores da mente humana e seus meandros multifacetados. Ali se origina, ali se manifesta. Reflete-se na exterioridade da cultura, nasce na interioridade psíquica, no subconsciente humano. Atemporais e eternos, os mitos estão presentes na vida de cada ser humano, não importa em que tempo ou local. Somos todos deuses e heróis de nossa própria história.
O que a obra Odisseia tem de específico quanto a essa questão é a maneira pela qual Ulisses vai enfrentar o sobrenatural, e as estratégias que ele monta para superar os perigos que encontra. Esta maneira específica relaciona-se com aquilo que distingue Ulisses dos demais homens daquele barco.
Barco, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009) evoca a idéia de força e de segurança numa travessia difícil. O simbolismo do barco também pode ser comparado ao do vaso, enquanto receptáculo. Passa então a participar do sentido da matriz feminina portadora de vida. Assim, o barco de Ulisses simboliza a imagem da vida e o convite para a grande viagem, cujo centro e direção cabem a ele escolher.
            Ele escolher seu destino é um detalhe fundamental no mito. Se Ulisses ouvir o canto da sereia e ceder aos seus encantos, ele perderá sua liberdade e sua vida. Ele precisa fazer suas escolhas, criar estratégias para concluir sua grande viagem. 
Nesta grande viagem Ulisses vai precisar ser muito mais do que um grande guerreiro que possui força e coragem em graus elevados para combater as sereias. Isso demonstraria força e coragem, mas não resultaria no êxito. Não seria eficaz. Ulisses, como arquétipo representante do herói, tem a percepção de que são necessárias outras armas, e que estas não são as armas do combate propriamente dito, mas as armas do intelecto. Isso é decisivo para que ele saia vitorioso. Segundo Boechat (1995), o herói arquetípico existe enquanto há tarefa externa que o constele, enquanto haja rito de passagem ou transição centrais na estruturação da consciência.
Nosso Herói Ulisses vive um rito de passagem, uma jornada, simbolicamente, ao passar pelas sereias. Lembrar que em todas as mitologias a “luta com o dragão” se apresenta com três componentes principais: o herói, o dragão e o tesouro.  Neste caso: Ulisses, as sereias e a chegada à terra natal e o encontro com sua amada esposa.
Nesta jornada há uma passagem do ego do nível de consciência a outro mais diferenciado. O herói, atuando no eixo ego-Si-mesmo, proporciona à consciência a energia necessária para uma adaptação ao novo estado de ser.
A sabedoria, o arquétipo do sábio, representa em Ulisses a tomada de consciência de que ele pode vencer a natureza e o sobrenatural por via de uma força especificamente humana, que não se mede fisicamente, e que seria o poder de raciocinar e de calcular as possibilidades, de modo a fazer com que a desvantagem que ele possui inevitavelmente de início, possa se transformar justamente no fator que lhe permitirá superar a vantagem do inimigo.
Ulisses precisava encontrar uma estratégia para superar as sereias. Os relatos existentes eram que naquela região da Ilha de Capri, repleta de sereias, todos os homens que tentaram passar morreram, seus navios naufragaram nas pedras.
Analisando esta região, observa-se que a ilha, segundo Marie-Louise Von Franz (2012) é símbolo de isolamento. As ilhas normalmente apontam projeções de esferas psíquicas inconscientes. O fundo da ilha, onde se encontra os corpos mortos dos marinheiros, significa o inconsciente. Os ossos das vítimas das sereias encontradas por Ulisses na sua travessia serviam de alerta no sentido de ele saber o que aconteceu a quem cedeu aos impulsos do instinto, do inconsciente. Os marinheiros não estavam fortemente ligados ao Self e isso os impediu de continuar a jornada.
É importante observar que na história de Ulisses a ilha não é a meta do herói, mas um estado de transição. No mar do inconsciente, a ilha representa a parte destacada da psique consciente de Ulisses. Ela representa o complexo autônomo, destacado do ego, com uma espécie de inteligência própria.
Marie-Louise Von Franz (2012) explica que a ilha é geralmente habitada por seres de outro mundo - no mito em análise, as sereias. De acordo com Lexikon (1990) as sereias eram, na mitologia grega, demônios com corpo de pássaro e cabeça de mulher; habitam os recifes e são dotadas de um saber sobrenatural e de um canto que perturba os sentidos; por meio dele, elas seduziam os navegadores para em seguida matá-los e devorá-los. São interpretadas como perigos da navegação ou, de modo geral, dos perigos sedutores e funestos.
O diferencial, no mito, é que Ulisses pode contar com a ajuda de Circe, a feiticeira, o arquétipo da velha sábia, a qual preveniu Ulisses desse perigo.  
O arquétipo do “velho sábio” é uma figura arquetípica determinada, personificando o arquétipo da reflexão. Segundo Boechat (1995):

O sábio aparece nos mitos e lendas, aconselhando o herói, pouco antes de se lançar na tarefa sobre humana. Personifica o masculino em seu mais alto grau de diferenciação, o espírito que “sopra onde quer” e produz as mais sutis e eficazes transformações psíquicas. (1995, p.40)
Para Circe, a prudência manda, pois, que se passe por este local guardando uma distância tal que o canto não possa ser ouvido. Mas Ulisses deseja ouvir o canto e ao mesmo tempo, salvar-se. Ele quer conhecer o canto, satisfazer uma curiosidade que é ao mesmo tempo racional e afetiva sem se dobrar a fatalidade,  isto é, sem conformar-se ao fato de que a felicidade e o prazer custam aos mortais à própria vida.
Ulisses sabia o quanto era difícil enfrentar as sereias, ele tinha consciência de suas próprias fragilidades, e por isso cria seu plano. Ele pede que seus marinheiros o amarrem ao mastro e que eles mesmos vedem os ouvidos com cera, ao mesmo tempo em que deverão remar com todas as forças para atravessar o mais rapidamente possível o trecho de perigo.
Fantástico observar, que o fato de Homero narrar que Ulisses pediu para ser amarrado no mastro do barco, vai na contra mão dos heróis modernos.
Heróis modernos são aqueles que tem poderes especiais, eles superam qualquer coisa, vencem quaisquer obstáculos, se auto afirmam o tempo todo; os heróis modernos são na realidade um retrato da nossa sociedade, aonde as pessoas o tempo inteiro tentam se mostrar melhores, mais fortes, mais competentes e mais inteligentes.
A simbologia de Ulisses amarrado no mastro deste barco é extremamente importante. É nele que o herói se prende para não cair no encanto das sereias. Simbolicamente este mastro, que está no centro do navio, representa o eixo vital do espirito, o Self do protagonista. Ulisses precisa estar preso, ligado, comprometido, com seus objetivos de vida, para não se deixar cair no canto da sereia (ilusões das paixões). Seu objetivo (Self) era mais forte que sua carência (Sombra) por isso ele não se deixou levar pelo canto.
Observe que, paradoxalmente, são as sereias que provocam a ruptura que fez com que Ulisses adentrasse às camadas mais profundas da psique, movimentando as forcas instintivas até então adormecidas. Coube às sereias dar o impulso desencadeador da busca do Self, pois, se assim não agisse, Ulisses continuaria preso a sua natureza primitiva.
A sereia simboliza o elemento mediador (Anima) que possibilita Ulisses ir de encontro aos conteúdos interiores. De acordo com Rabelo (2010) faz-se necessário, pois, a presença de um elemento de confronto, para que os extremos se revelem e possa haver busca de equilíbrio que culminará com o encontro do Self, em outras palavras, com a sua verdadeira essência.
Von Franz (2012) fala da Anima como elemento mediador, quando diz que, como disse Jung, a Anima é o guia para a realização do Self, mas algumas vezes de uma maneira muito dolorosa. Segundo a autora, normalmente, a Anima não conduz o homem diretamente ao paraíso; ela o coloca primeiro “num caldeirão quente onde ele é muito bem cozido por um certo tempo”.
É curioso notar que Homero não descreve as sereias. Isto porque sua descrição não é o mais importante. Homero se limita a falar de sua bela voz, de sua capacidade de encantar e do lugar onde viviam. Isto porque estes são os elementos fundamentais.  Não é pela faceta “monstro” que as sereias inquietam e fascinam, mas sim pela ambiguidade. Elas atraem quem as escuta para o prazer e para a morte. Cativam suas vítimas e as põem a perder.
Seduzir, do latim seducere, significa atrair para si. As sereias usavam seu canto para encantar. E as vítimas pagavam com a vida o prazer de desejar e ser envolvidas. Não surpreende que as sereias de Homero sejam associadas aos supostos perigos da feminilidade. O próprio Ulisses é, aliás, “ameaçado” por diferentes personagens femininas da obra, que tentam dissuadi-lo a esquecer de sua mulher, Penélope, que esperou por ele durante a jornada. As sereias encarnam perfeitamente o papel de inimigas do afeto puro e verdadeiro.
Enfrentar as sereias é como um “ritual de iniciação”, ao se abrir para o mundo obscuro do Inconsciente. As sereias, com seu canto, despertam os medos e emoções ameaçadoras (a Sombra) que precisam ser reconhecidos e domados, para o indivíduo recuperar sua “força animal”.
Observa-se que seu canto é um sinônimo para toda a sedução que o ser humano sofre (e muitas vezes cai), onde a pessoa deixa de usar a razão por causa das suas necessidades mais urgentes e acaba sendo iludido e pagando um preço caro.
Ulisses ouve o canto: como não poderia deixar de ser, o canto exerce o seu fascínio mágico, e Ulisses deseja desesperadamente ir ao encontro das sereias. Grita aos marinheiros que o desamarrem, mas estes, com os ouvidos tampados de cera e concentrados em remar fortemente, não podem atender ao seu pedido. Com  isso, Ulisses torna-se o primeiro homem a ouvir o canto e não morrer.
O fato de Ulisses desejar ouvir o canto é extremamente simbólico, pois assim ele vive verdadeiramente a jornada do herói. O valor do processo de passagem de Ulisses pelas sereias está, antes, naquilo que acontece ao longo do caminho, é a própria trajetória ou Jornada que é o destino. O confronto com o canto é tão importante porque remete ao homem o eco de seu próprio encontro com a sombra, de sua dualidade psíquica. 
Observe que o poder da sedução das sereias concentra-se principalmente na voz. Em grego, o termo que designa “canto” pode significar também “grito”. De acordo com Dieguez (2012), na figura das sereias o termo evoca prazer, gozo e orgasmo.
De forma geral, diante da beleza do canto, os homens morriam, pois o livre-arbítrio da vítima desaparece e o próprio indivíduo se põe em perigo. Ulisses se prendendo ao mastro coloca-se, mesmo preso, em situação de liberdade. Ulisses não cede aos caprichos da sereia, pois prende-se antes que elas o façam. Ou seja, ele tem a liberdade de escolher o que deseja.
As sereias são descritas como oniscientes. Elas sabem “tudo o que ocorre na terra fecunda” e por isso reconhecem o herói Ulisses e chamam-no pelo nome. Assim como Narciso se apaixonou pela própria imagem refletida no lago e se afogou, elas evocam a vaidade de Ulisses (sua Sombra) para atraí-lo para a morte: “Vem, celebre Ulisses, glória eterna da Grécia”, cantam, e ele fica prestes a enlouquecer.
Dieguez (2012) afirma que uma leitura mais atenta do texto revela que as sereias utilizam expressões e palavras semelhantes às usadas por personagens intimamente associados a Ulisses em diferentes momentos da sua jornada. Mais que evocar proezas com a intenção de envaidecer, a linguagem das sereias resgata memórias de momentos prazerosos. Elas acariciam seu desejo de atenção e reconhecimento ao louvá-lo como se houvesse se tornado um mito (sua Sombra), uma sugestão sutil e cruel de que o herói deixará de existir no momento em que abandonar a aventura e retornar para casa.
 A nostalgia da morte o faz querer desviar do seu destino, onde uma vida calma e comum o espera. Observe que Ulisses não se entrega as sereias, por estar preso ao mastro, pois o canto induz Ulisses a perder o controle (ele grita para que os marinheiros o desamarrem) e se entregar àquelas que aparentemente sabem tudo sobre ele. Tudo saber, sobretudo de si mesmo, implica o fim da jornada de autoconhecimento, a perda de sentido da existência. De fato, a sabedoria das mulheres-peixe devora e extingue quem se deixa aprisionar.
O som do canto, desencadeando a sombra de Ulisses, permite o encontro consigo mesmo. A sombra pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto pudermos projetar o negativo a nossa volta. Ulisses sendo capaz de “ver” e ouvir sua própria Sombra, suportando-a, toma consciência de que ela existe.
Vale destacar que a Sombra é uma parte viva da personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. Não é possível anulá-la argumentando, ou torná-la inofensiva através da racionalização. Mais cedo ou mais tarde as contas terão que ser acertadas. A Sombra é, no entanto, um desfiladeiro, um portal estreito cuja dolorosa exiguidade não poupa quem quer que desça ao poço profundo.
Esse confronto com o canto promove a emancipação da consciência do Ego, de forma que este finalmente se “torna o herói,” ao se libertar da força do Inconsciente. No “mundo do herói”, o Ego e a consciência alcançam a autonomia.
Veja que o herói precisa estar centrado em seu Self (mastro do navio) para não ceder as investidas das sereias (Anima negativa), conseguir completar sua jornada e encontrar sua Anima positiva (a esposa), arquétipo do amante, fechando assim o ciclo do processo de individuação.
Marie-Louise Von Franz (2012) traz esta ideia no seu livro “A Interpretação dos Contos de Fada”. A Anima, isto é, a tonalidade feminina do inconsciente do homem, aparece primeiramente em pele de animal, no mito em questão, como sereia, e só depois é que ela se transforma num ser humano (Penelope, a esposa de Ulisses).
  Pelo mito percebe-se que quanto mais Ulisses conscientiza-se da sua sombra e da Anima, tanto mais elas perdem seu caráter impetuoso e compulsivo. Pouco a pouco o indivíduo vai criando conscientemente os diques para evitar a inundação do caos e assim surge um novo cosmo. Isto é, o herói precisa contemplar ativa e conscientemente a caminhada, entrar em contato com os elementos simbólicos, o que o levará a uma abertura e sabedoria interior.
Comparativamente, a passagem pelas sereias é um processo tão difícil quanto “lutar com um dragão”, numa jornada heróica, pois culmina com a “preciosidade difícil de ser alcançada”, que no caso de Ulisses foi chegar à sua terra natal, ou seja, concluir a jornada e alcançar o processo de individuação.
Rabelo (2010) cita que nas palavras de Jung (1991, p.426): “Individuação é o processo de formação e particularização do ser individual, distinto do conjunto, da psicologia coletiva.” Portanto, individuar-se significa tornar-se um ser único.
Em outras palavras, Jung (1982, p.49) refere-se à individuação, como:
Um processo de tornar-se cada vez mais o que de fato se é, um ser singular. Esse processo ocupa toda vida, pois exige um desenvolvimento em todos os aspectos: biológico, social e espiritual. Deve ser empreendido conscientemente e dar lugar a realização da singularidade através de uma gradativa separação da totalidade original, comum a todos os homens, ou seja, quanto mais indivíduo nos tornamos, mais somos capazes de nos perceber como parte de algo maior e ao mesmo tempo manter uma relação significativa com o coletivo da qual fazemos parte. A Individuação vai além da simples consciência, pois abrange extratos coletivos e universais. É o encontro com a nossa singularidade, sem perder a consciência de nossa relação com o todo, que possibilita ao indivíduo assumir um papel atuante e significativo no âmbito social.

            Ainda, no dizer de Jung (1982, p.71), “é importante para a meta da Individuação que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros.” Estar a caminho do SELF é a meta de todo herói humano, embora jamais possa concretizá-lo ou realizá-lo por completo. Observamos que Ulisses consegue atingir este estágio, pois soube distinguir o que era importante para ele.
De acordo com Marie-Louise Von Franz (2012),
o herói é uma figura arquetípica que representa o modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF. (p.73)
É importante no mito o contato com a morte, pois esta representa o encontro com a própria incorporeidade, impotência, fragilidade e transitoriedade da existência, o contato com as profundezas do inconsciente. Este provoca uma sensação de vazio, de insegurança, de falta de sentido, de vergonha e medo, o que leva à experiência da “morte simbólica do Ego”. O confronto com a mortalidade liberta o Ego de suas ilusões, inflações e culpas, constituindo-o como instância criativa.

Acredito que essa sutil relação entre prazer, perigo e morte (que a passagem da Odisseia representa) faz com que ela mexa tanto, ainda hoje, como a nossa imaginação. Homero foi extremamente genial ao escrever o encontro de Ulisses com as sereias. Ficar atento aos ensinamentos do mito pode nos ajudar a penetrarmos em nossas próprias profundezas anímicas desconhecidas, vivendo a experiência da morte de valores e posicionamentos antigos e estéreis, retornando depois de um processo de reordenação, com uma atitude mais saudável em relação a nós mesmos e à vida. O desvestimento da Persona permite uma relação verdadeira, uma nova forma de vida, um “morrer” para “renascer”.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que a aventura de Ulisses inicia com um chamamento interior, um impulso para sair, a participação na guerra de Tróia, e acaba, quando esse herói encontra sua contraparte, a Anima, integrando-a à sua personalidade. Nessa caminhada, ele se confronta-se com sua Sombra e Anima, reconhece suas limitações e também as integra. Esta aventura termina com Ulisses atingindo o processo de individuação.
Pelo estudo observa-se que na nossa jornada pessoal o Ego pessoal tem de passar pelos mesmos estágios arquetípicos que determinaram a evolução da consciência, na vida da humanidade. Ele percorre uma estrada percorrida, antes dele, pela humanidade; estrada na qual esta deixou marcas da sua jornada, impressa na sequência arquetípica de imagens mitológicas.
Acredito que Jung deixou um grande legado ao propor o conceito de arquétipos (ligar os símbolos da humanidade por meio do inconsciente coletivo) e o de processo de individuação (ao reunir todos os seres humanos na busca da auto-realização e de totalidade). Com isso ele construiu uma ponte para as ciências humanas, aproximando de forma coerente Ocidente e as antigas religiões do Oriente. Essa interação foi acompanhada da compreensão de que todos os mitos das mais variadas culturas e épocas têm seu papel estruturante da consciência individual e coletiva
Os mitos, com sua construção simbólica, teriam, para Jung, o papel de intermediar a relação da vida consciente com a inconsciente. Nesta mediação se estabelece uma conexão com a memória arcaica da humanidade, os arquétipos. Neste sentido é impossível, para Jung, que os mitos possam cumprir a sua finalidade, sem que eles sejam ritualizados, vivenciados, experienciados.
É importante destacar que, contrariando o positivismo, precisamos dar ao mito, ainda hoje, um lugar de importância como forma fundamental de todo viver humano. Ele é a primeira leitura do mundo, e o advento de outras abordagens do real não expulsa do homem aquilo que constituiu a raiz da sua inteligibilidade, isto é, o mito é o ponto de partida para a compreensão do ser.
            Em outras palavras, o mito não é algo que ocorreu apenas entre povos primitivos nos primórdios da nossa civilização, nem apenas entre os gregos da Antiguidade. O mito ainda faz parte da nossa vida cotidiana, como uma das formas do existir humano.
Na verdade o homem contemporâneo carece de lentes para auxiliá-lo a enxergar os deuses que o rodeiam, e aqui deuses são manifestações arquetípicas com conteúdos energéticos de polos opostos, que podem ativar a sombra ou trazer à luz para mostrar o caminho da individuação.
De forma geral não podemos esquecer que estudar e compreender as narrativas míticas pode ser um caminho para responder às questões mais angustiantes do homem da atualidade. Pois, estejam onde estiverem os mitos, os símbolos cumprem sua função quando nos remetem à nossa história pessoal, tornando-a mais clara e dando-lhe um sentido mais profundo. A psicologia tenta auxiliar nesse caminho e a mitologia é apenas um dos recursos utilizados para isso.
Acredito que o conhecimento sobre os textos mitológicos é uma grande oportunidade e uma excelente ferramenta, para os profissionais da psicologia, ampliar seu olhar, pois, todas as questões humanas com que esse profissional vai se deparar no consultório já estão na mitologia.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Escrito por Ivna Vieira, estudante do Curso de Formação de Psicologia Analítica, realizado pela PROFINT - Profissionais Integrados Ltda.