O
MITO DE ULISSES e o processo de Individuação
Ivna Ariane Santos Vieira
Ao estudar mitos, estamos em busca daquilo que nos
vincula mais profundamente à nossa própria natureza e ao nosso lugar no cosmo. (Hollis, 1997).
INTRODUÇÃO
Há algum tempo, quando ainda estava na escola, ficava
fascinada nas aulas de literatura e história, quando os professores narravam
estórias de cidades, reis, rainhas e guerras. Lembro que, nesta época, minha
mente devaneava tanto nas aulas, que mesmo depois delas, inspirada pelo
assunto, conversava com meus colegas de classe sobre o tema estudado e ia
produzindo todo um contexto maior para a história relatada.
Lembro também que na época, meados da década de 80,
passava um desenho, “O Fantástico Mundo de Bob”, logo fui apelidada de Bob.
Divertia-me demais nestes devaneios. Engraçado que o tempo passou, e ainda hoje
faço todo esse movimento mental. Às vezes uma estória curtinha, acaba virando
um enredo enorme em minha mente.
Então, comecem a imaginar o que aconteceu comigo ao
estudar Psicologia Analítica. Fiquei surpresa com a descoberta de que dentro do
universo da Mitologia estão as verdadeiras histórias da humanidade. Fiquei tão
contagiada que não me contive e corri para o computador para começar a escrever.
O objetivo deste texto é escolher um mito e fazer a
análise, tomando por base uma bibliografia básica. A primeira grande questão que
surgiu foi: Qual mito irei escolher? Uma dúvida imensa percorreu meu ser. Apesar
da angustia inicial, decidi ler o material e, a partir das leituras, deixar que
algum mito, de certa forma, “me escolhesse”.
Com o passar dos dias de leitura, comecei a ficar
aflita porque, até então, não havia decidido qual mito iria analisar. Nesta
mesma noite, ao deitar, pensei: “Espero que essa noite algum sonho mostre-me o
mito que deverei trabalhar”. Estava tão exausta que logo adormeci.
De repente fiquei sentindo que o mito de Homero,
mais especificamente a passagem na qual Ulisses se amarra no mastro para passar
pelas sereias, ficou mais “viva” na minha mente. Após guardar o material,
continuei pensando na estória de Ulisses e o efeito “mundo maravilhoso de Bob”,
se instalou em mim.
O resto do dia fiquei pensando no esforço de
Ulisses, as dificuldades enfrentadas no assédio das sereias e, principalmente,
fiquei admirada com sua determinação para conseguir chegar a sua terra natal e
rever sua amada. Ele foi muito talentoso em driblar as dificuldades existentes
e sobreviver. Apesar de ter passado o dia todo pensando no mito, ainda estava
insegura a respeito da minha possível escolha. De qualquer forma, já havia uma
esperança: algo diferente começava a surgir em mim.
No outro dia, dirigindo para o trabalho, retomei
minhas divagações sobre o mito de Ulisses e, de repente, me veio a imagem do
sonho. Como num clarão, vi no formato da plateia, o barco de Ulisses e Ivete
Sangalo seria a sereia que cantava para aquele povo. Neste momento compreendi o
porquê das pessoas estarem tão desanimadas, até assustadas. Agora, tudo fazia
sentido. Fiquei impressionada! Poderia dizer até emocionada.
Diante destes fatos iniciei propriamente minha produção.
Analisarei, brevemente, à luz da Psicologia Junguiana, o canto XII do poema
épico Odisseia atribuído a Homero. Sinto-me diante de um
grande desafio. Mas, como Ulisses, precisarei encontrar minhas
estratégias para enfrentar.
ANÁLISE DO MITO
O poema épico Odisseia, atribuído a
Homero, escrito há mais de 2.800 anos, é um dos textos mais fantásticos já escritos
por um ser humano. O poema conta as aventuras do Guerreiro Ulisses, o qual
recebeu o chamado para participar da guerra de Tróia. Relata os obstáculos
enfrentados por ele ao retornar para casa, depois de duas décadas, onde sua
mulher Penélope e seu filho o esperam. Carregados de significado simbólico, os
seres fantásticos e as situações que aparecem na narrativa persistem no
imaginário popular.
Uma das passagens mais conhecidas do
poema é o encontro de Ulisses com as sereias (“as sirenas”), híbrido de mulher
e animal que usava voz doce e a sensualidade para atrair os marinheiros até as águas
repletas de rochedos, onde os navios corriam o risco de se despedaçar contra as
pedras. O herói, porém, consegue resistir a elas amarrando-se no mastro de sua
embarcação e instruindo seus marinheiros a tampar os ouvidos com mel
endurecido. Esse trecho do poema tem menos de 30 versos, é curto, se
considerarmos que a obra tem quase 12 mil. É justamente este pequeno trecho que
servirá de foco para a análise.
Homero usa a mitologia grega para criar
os cenários dos desafios que Ulisses encontrou em sua jornada. O autor cria
metáforas onde os símbolos têm fortes significados. Quando conseguimos
compreender os significados de toda a simbologia, percebemos com clareza as
virtudes que Ulisses tinha, que na verdade são as virtudes que todos nós
precisamos ter para superar os desafios da vida. Todo esse contexto ultrapassa
gerações, fazendo parte, segundo Jung, do nosso inconsciente coletivo.
Para Jung;
Uma camada mais ou menos superficial do
inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este
porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em
experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o
que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo"
pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto
é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento,
os quais são os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos... Os conteúdos do inconsciente
pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem
a intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo,
por outro lado, são chamados arquétipos. (2003, p.15-16).
Uma forma
bem conhecida de expressão dos arquétipos é encontrada no mito. O mito é uma
das formas onde os arquétipos humanos se materializam. É
nos mitos que Jung encontra o material privilegiado para analisar os mistérios
da alma, os acontecimentos anímicos, os arquétipos. “Nos mitos e contos de
fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua
combinação natural como formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno”.
(Jung, 2003, p. 214).
Por isso é tão importante estudar a
mitologia. Os mitos repletos
de lendas históricas e contos sobre deuses, deusas, batalhas heroicas e
jornadas no mundo subterrâneo,
revela-nos
os interiores da mente humana e
seus meandros multifacetados. Ali se origina, ali se manifesta. Reflete-se na
exterioridade da cultura, nasce na interioridade psíquica, no subconsciente
humano. Atemporais e eternos, os mitos estão presentes na
vida de cada ser humano, não importa em que tempo ou local. Somos todos deuses
e heróis de nossa própria história.
O que a obra Odisseia tem de específico quanto a essa questão
é a maneira pela qual Ulisses vai enfrentar o sobrenatural, e as estratégias
que ele monta para superar os perigos que encontra. Esta maneira específica
relaciona-se com aquilo que distingue Ulisses dos demais homens daquele barco.
Barco, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009)
evoca a idéia de força e de segurança numa travessia difícil. O simbolismo do
barco também pode ser comparado ao do vaso, enquanto receptáculo. Passa então a
participar do sentido da matriz feminina portadora de vida. Assim, o barco de
Ulisses simboliza a imagem da vida e o convite para a grande viagem, cujo
centro e direção cabem a ele escolher.
Ele escolher seu destino é um
detalhe fundamental no mito. Se Ulisses ouvir o canto da sereia e ceder aos
seus encantos, ele perderá sua liberdade e sua vida. Ele precisa fazer suas
escolhas, criar estratégias para concluir sua grande viagem.
Nesta grande viagem Ulisses vai precisar
ser muito mais do que um grande guerreiro que possui força e coragem em graus
elevados para combater as sereias. Isso demonstraria força e coragem, mas não
resultaria no êxito. Não seria eficaz. Ulisses, como arquétipo representante do
herói, tem a percepção de que são necessárias outras armas, e que estas não são
as armas do combate propriamente dito, mas as armas do intelecto. Isso é
decisivo para que ele saia vitorioso. Segundo Boechat (1995), o herói
arquetípico existe enquanto há tarefa externa que o constele, enquanto haja
rito de passagem ou transição centrais na estruturação da consciência.
Nosso Herói Ulisses vive um rito de
passagem, uma jornada, simbolicamente, ao passar pelas sereias. Lembrar que em todas as mitologias a “luta com o
dragão” se apresenta com três componentes principais: o herói, o dragão e o
tesouro. Neste caso: Ulisses, as sereias
e a chegada à terra natal e o encontro com sua amada esposa.
Nesta jornada há uma passagem do ego do
nível de consciência a outro mais diferenciado. O herói, atuando no eixo ego-Si-mesmo,
proporciona à consciência a energia necessária para uma adaptação ao novo
estado de ser.
A sabedoria, o arquétipo do sábio, representa
em Ulisses a tomada de consciência de que ele pode vencer a natureza e o
sobrenatural por via de uma força especificamente humana, que não se mede
fisicamente, e que seria o poder de raciocinar e de calcular as possibilidades,
de modo a fazer com que a desvantagem que ele possui inevitavelmente de início,
possa se transformar justamente no fator que lhe permitirá superar a vantagem
do inimigo.
Ulisses precisava encontrar uma estratégia
para superar as sereias. Os relatos existentes eram que naquela região da Ilha
de Capri, repleta de sereias, todos os homens que tentaram passar morreram,
seus navios naufragaram nas pedras.
Analisando esta região, observa-se que a ilha, segundo Marie-Louise Von
Franz (2012) é símbolo de isolamento. As ilhas normalmente apontam projeções de
esferas psíquicas inconscientes. O fundo da ilha, onde
se encontra os corpos mortos dos marinheiros, significa o inconsciente. Os
ossos das vítimas das sereias encontradas por Ulisses na sua travessia serviam
de alerta no sentido de ele saber o que aconteceu a quem cedeu aos impulsos do
instinto, do inconsciente. Os marinheiros não estavam fortemente ligados ao
Self e isso os impediu de continuar a jornada.
É importante observar que na história de Ulisses a ilha não é a meta do
herói, mas um estado de transição. No mar do inconsciente, a ilha representa a
parte destacada da psique consciente de Ulisses. Ela representa o complexo
autônomo, destacado do ego, com uma espécie de inteligência própria.
Marie-Louise Von Franz (2012) explica que a ilha é geralmente habitada
por seres de outro mundo - no mito em análise, as sereias. De
acordo com Lexikon (1990) as sereias eram, na mitologia grega, demônios com
corpo de pássaro e cabeça de mulher; habitam os recifes e são dotadas de um
saber sobrenatural e de um canto que perturba os sentidos; por meio dele, elas
seduziam os navegadores para em seguida matá-los e devorá-los. São
interpretadas como perigos da navegação ou, de modo geral, dos perigos
sedutores e funestos.
O diferencial, no mito, é que Ulisses
pode contar com a ajuda de Circe, a feiticeira, o arquétipo da velha sábia, a
qual preveniu Ulisses desse perigo.
O arquétipo do “velho sábio” é uma
figura arquetípica determinada, personificando o arquétipo da reflexão. Segundo
Boechat (1995):
O
sábio aparece nos mitos e lendas, aconselhando o herói, pouco antes de se
lançar na tarefa sobre humana. Personifica o masculino em seu mais alto grau de
diferenciação, o espírito que “sopra onde quer” e produz as mais sutis e
eficazes transformações psíquicas. (1995, p.40)
Para Circe, a prudência manda, pois, que
se passe por este local guardando uma distância tal que o canto não possa ser
ouvido. Mas Ulisses deseja ouvir o canto e ao mesmo tempo, salvar-se. Ele quer
conhecer o canto, satisfazer uma curiosidade que é ao mesmo tempo racional e
afetiva sem se dobrar a fatalidade, isto é, sem conformar-se ao fato de
que a felicidade e o prazer custam aos mortais à própria vida.
Ulisses sabia
o quanto era difícil enfrentar as sereias, ele tinha consciência de suas próprias
fragilidades, e por isso cria seu plano. Ele pede que seus
marinheiros o amarrem ao mastro e que eles mesmos vedem os ouvidos com cera, ao
mesmo tempo em que deverão remar com todas as forças para atravessar o mais
rapidamente possível o trecho de perigo.
Fantástico observar, que o fato de
Homero narrar que Ulisses pediu para ser amarrado no mastro do barco, vai na
contra mão dos heróis modernos.
Heróis modernos são aqueles que tem poderes especiais, eles superam qualquer
coisa, vencem quaisquer obstáculos, se auto afirmam o tempo todo; os heróis
modernos são na realidade um retrato da nossa sociedade, aonde as pessoas o
tempo inteiro tentam se mostrar melhores, mais fortes, mais competentes e mais
inteligentes.
A simbologia de Ulisses amarrado no mastro
deste barco é extremamente importante. É nele que o herói se prende para não
cair no encanto das sereias. Simbolicamente este mastro, que está no centro do
navio, representa o eixo vital do espirito, o Self do protagonista. Ulisses
precisa estar preso, ligado, comprometido, com seus objetivos de vida, para não
se deixar cair no canto da sereia (ilusões das paixões). Seu objetivo (Self) era
mais forte que sua carência (Sombra) por isso ele não se deixou levar pelo
canto.
Observe que, paradoxalmente, são as
sereias que provocam a ruptura que fez com que Ulisses adentrasse às camadas
mais profundas da psique, movimentando as forcas instintivas até então
adormecidas. Coube às sereias dar o impulso desencadeador da busca do Self,
pois, se assim não agisse, Ulisses continuaria preso a sua natureza primitiva.
A sereia simboliza o elemento mediador
(Anima) que possibilita Ulisses ir de encontro aos conteúdos interiores. De
acordo com Rabelo (2010) faz-se necessário, pois, a presença de um elemento de
confronto, para que os extremos se revelem e possa haver busca de equilíbrio que
culminará com o encontro do Self, em outras palavras, com a sua verdadeira
essência.
Von Franz (2012) fala da Anima como elemento mediador, quando diz que,
como disse Jung, a Anima é o guia para a realização do Self, mas algumas vezes
de uma maneira muito dolorosa. Segundo a autora, normalmente, a Anima não
conduz o homem diretamente ao paraíso; ela o coloca primeiro “num caldeirão
quente onde ele é muito bem cozido por um certo tempo”.
É curioso notar que Homero não descreve
as sereias. Isto porque sua descrição não é o mais importante. Homero se limita
a falar de sua bela voz, de sua capacidade de encantar e do lugar onde viviam. Isto
porque estes são os elementos fundamentais. Não é pela faceta “monstro” que as sereias
inquietam e fascinam, mas sim pela ambiguidade. Elas atraem quem as escuta para
o prazer e para a morte. Cativam suas vítimas e as põem a perder.
Seduzir, do latim seducere, significa atrair para si. As sereias usavam seu canto
para encantar. E as vítimas pagavam com a vida o prazer de desejar e ser
envolvidas. Não surpreende que as sereias de Homero sejam associadas aos supostos
perigos da feminilidade. O próprio Ulisses é, aliás, “ameaçado” por diferentes
personagens femininas da obra, que tentam dissuadi-lo a esquecer de sua mulher,
Penélope, que esperou por ele durante a jornada. As sereias encarnam
perfeitamente o papel de inimigas do afeto puro e verdadeiro.
Enfrentar as
sereias é como um “ritual de iniciação”, ao se abrir para o mundo obscuro do
Inconsciente. As sereias, com seu canto, despertam os medos e emoções ameaçadoras
(a Sombra) que precisam ser reconhecidos e domados, para o indivíduo recuperar
sua “força animal”.
Observa-se que
seu canto é um sinônimo para toda a sedução que o ser humano sofre (e muitas
vezes cai), onde a pessoa deixa de usar a razão por causa das suas necessidades
mais urgentes e acaba sendo iludido e pagando um preço caro.
Ulisses ouve o canto: como não poderia
deixar de ser, o canto exerce o seu fascínio mágico, e Ulisses deseja
desesperadamente ir ao encontro das sereias. Grita aos marinheiros que o
desamarrem, mas estes, com os ouvidos tampados de cera e concentrados em remar
fortemente, não podem atender ao seu pedido. Com isso, Ulisses torna-se o
primeiro homem a ouvir o canto e não morrer.
O fato de Ulisses desejar ouvir o canto
é extremamente simbólico, pois assim ele vive verdadeiramente a jornada do
herói. O valor do processo de passagem
de Ulisses pelas sereias está, antes, naquilo que acontece ao longo do caminho,
é a própria trajetória ou Jornada que é o destino. O confronto com o canto é
tão importante porque remete ao homem o eco de seu próprio encontro com a sombra,
de sua dualidade psíquica.
Observe que o poder da sedução das
sereias concentra-se principalmente na voz. Em grego, o termo que designa
“canto” pode significar também “grito”. De acordo com Dieguez (2012), na figura
das sereias o termo evoca prazer, gozo e orgasmo.
De forma
geral, diante da beleza do canto, os homens morriam, pois o livre-arbítrio da vítima
desaparece e o próprio indivíduo se põe em perigo. Ulisses se prendendo ao
mastro coloca-se, mesmo preso, em situação de liberdade. Ulisses não cede aos
caprichos da sereia, pois prende-se antes que elas o façam. Ou seja, ele tem a
liberdade de escolher o que deseja.
As sereias são descritas como
oniscientes. Elas sabem “tudo o que ocorre na terra fecunda” e por isso
reconhecem o herói Ulisses e chamam-no pelo nome. Assim como Narciso se
apaixonou pela própria imagem refletida no lago e se afogou, elas evocam a
vaidade de Ulisses (sua Sombra) para atraí-lo para a morte: “Vem, celebre
Ulisses, glória eterna da Grécia”, cantam, e ele fica prestes a enlouquecer.
Dieguez (2012) afirma que uma leitura
mais atenta do texto revela que as sereias utilizam expressões e palavras
semelhantes às usadas por personagens intimamente associados a Ulisses em
diferentes momentos da sua jornada. Mais que evocar proezas com a intenção de
envaidecer, a linguagem das sereias resgata memórias de momentos prazerosos.
Elas acariciam seu desejo de atenção e reconhecimento ao louvá-lo como se
houvesse se tornado um mito (sua Sombra), uma sugestão sutil e cruel de que o
herói deixará de existir no momento em que abandonar a aventura e retornar para
casa.
A
nostalgia da morte o faz querer desviar do seu destino, onde uma vida calma e
comum o espera. Observe que Ulisses não se entrega as sereias, por estar preso
ao mastro, pois o canto induz Ulisses a perder o controle (ele grita para que
os marinheiros o desamarrem) e se entregar àquelas que aparentemente sabem tudo
sobre ele. Tudo saber, sobretudo de si mesmo, implica o fim da jornada de
autoconhecimento, a perda de sentido da existência. De fato, a sabedoria das
mulheres-peixe devora e extingue quem se deixa aprisionar.
O som do
canto, desencadeando a sombra de Ulisses, permite o encontro
consigo mesmo. A sombra pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto
pudermos projetar o negativo a nossa volta. Ulisses sendo capaz de “ver” e
ouvir sua própria Sombra, suportando-a, toma consciência de que ela existe.
Vale destacar que a Sombra é uma parte viva da
personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. Não é possível
anulá-la argumentando, ou torná-la inofensiva através da racionalização. Mais
cedo ou mais tarde as contas terão que ser acertadas. A Sombra é, no entanto,
um desfiladeiro, um portal estreito cuja dolorosa exiguidade não poupa quem
quer que desça ao poço profundo.
Esse confronto com o canto promove a emancipação da consciência do Ego, de forma
que este finalmente se “torna o
herói,” ao se libertar da força do Inconsciente. No “mundo do herói”, o Ego e a
consciência alcançam a autonomia.
Veja que o herói precisa estar centrado
em seu Self (mastro do navio) para não ceder as investidas das sereias (Anima
negativa), conseguir completar sua jornada e encontrar sua Anima positiva (a
esposa), arquétipo do amante, fechando assim o ciclo do processo de
individuação.
Marie-Louise Von Franz (2012) traz esta ideia no seu livro “A Interpretação
dos Contos de Fada”. A Anima, isto é, a tonalidade feminina do inconsciente do
homem, aparece primeiramente em pele de animal, no mito em questão, como
sereia, e só depois é que ela se transforma num ser humano (Penelope, a esposa
de Ulisses).
Pelo mito
percebe-se que quanto mais Ulisses conscientiza-se da sua sombra e da Anima, tanto
mais elas perdem seu caráter impetuoso e compulsivo. Pouco a pouco o indivíduo
vai criando conscientemente os diques para evitar a inundação do caos e assim
surge um novo cosmo. Isto é, o herói
precisa contemplar ativa e conscientemente a caminhada, entrar em contato com os
elementos simbólicos, o que o levará a uma abertura e sabedoria interior.
Comparativamente, a passagem pelas
sereias é um processo tão difícil
quanto “lutar com um dragão”,
numa jornada heróica, pois culmina com a “preciosidade difícil de ser alcançada”, que no caso de Ulisses
foi chegar à sua terra natal, ou seja, concluir a jornada e alcançar o processo
de individuação.
Rabelo (2010)
cita que nas palavras de Jung (1991, p.426): “Individuação é o processo de
formação e particularização do ser individual, distinto do conjunto, da
psicologia coletiva.” Portanto, individuar-se significa tornar-se um ser único.
Em outras palavras, Jung (1982, p.49) refere-se à
individuação, como:
Um
processo de tornar-se cada vez mais o que de fato se é, um ser singular. Esse
processo ocupa toda vida, pois exige um desenvolvimento em todos os aspectos:
biológico, social e espiritual. Deve ser empreendido conscientemente e dar
lugar a realização da singularidade através de uma gradativa separação da
totalidade original, comum a todos os homens, ou seja, quanto mais indivíduo
nos tornamos, mais somos capazes de nos perceber como parte de algo maior e ao
mesmo tempo manter uma relação significativa com o coletivo da qual fazemos
parte. A Individuação vai além da simples consciência, pois abrange extratos
coletivos e universais. É o encontro com a nossa singularidade, sem perder a
consciência de nossa relação com o todo, que possibilita ao indivíduo assumir
um papel atuante e significativo no âmbito social.
Ainda, no dizer de Jung (1982, p.71), “é importante
para a meta da Individuação que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que
parece ser para si mesmo e o que é para os outros.” Estar a caminho do SELF é a meta de todo herói humano, embora jamais
possa concretizá-lo ou realizá-lo por completo. Observamos que Ulisses consegue
atingir este estágio, pois soube distinguir o que era importante para ele.
De acordo com Marie-Louise Von Franz (2012),
o herói é uma figura arquetípica que representa o
modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique
inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego
funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as
solicitações do SELF. (p.73)
É importante no mito o
contato com a morte, pois esta representa o encontro com a própria
incorporeidade, impotência, fragilidade e transitoriedade da existência, o
contato com as profundezas do inconsciente. Este provoca uma sensação de vazio,
de insegurança, de falta de sentido, de vergonha e medo, o que leva à
experiência da “morte simbólica do Ego”. O confronto com a mortalidade liberta
o Ego de suas ilusões, inflações e culpas, constituindo-o como instância
criativa.
Acredito que essa sutil relação entre prazer, perigo e morte (que a
passagem da Odisseia representa) faz com que ela mexa tanto, ainda hoje, como a
nossa imaginação. Homero foi extremamente genial ao escrever o encontro de
Ulisses com as sereias. Ficar atento aos ensinamentos do mito
pode nos ajudar a penetrarmos em nossas próprias profundezas anímicas desconhecidas,
vivendo a experiência da morte de valores e posicionamentos antigos e estéreis,
retornando depois de um processo de reordenação, com uma atitude mais saudável
em relação a nós mesmos e à vida.
O desvestimento da Persona permite uma
relação verdadeira, uma nova forma de vida, um “morrer” para “renascer”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que a aventura de Ulisses inicia com
um chamamento interior, um impulso para sair, a participação na guerra de
Tróia, e acaba, quando esse herói encontra sua contraparte, a Anima,
integrando-a à sua personalidade. Nessa caminhada, ele se confronta-se com
sua Sombra e Anima, reconhece suas limitações e também as integra. Esta
aventura termina com Ulisses atingindo o processo de individuação.
Pelo estudo observa-se que na nossa jornada pessoal o Ego pessoal tem
de passar pelos mesmos estágios arquetípicos que determinaram a evolução da
consciência, na vida da humanidade. Ele percorre uma estrada percorrida,
antes dele, pela humanidade; estrada na qual esta deixou marcas da sua
jornada, impressa na sequência arquetípica de imagens mitológicas.
Acredito que
Jung deixou um grande legado ao propor o conceito de arquétipos (ligar os
símbolos da humanidade por meio do inconsciente coletivo) e o de processo de
individuação (ao reunir todos os seres humanos na busca da auto-realização e
de totalidade). Com isso ele construiu uma ponte para as ciências humanas, aproximando
de forma coerente Ocidente e as antigas religiões do Oriente. Essa interação
foi acompanhada da compreensão de que todos os mitos das mais variadas
culturas e épocas têm seu papel estruturante da consciência individual e
coletiva
Os mitos, com sua
construção simbólica, teriam, para Jung, o papel de intermediar a relação da
vida consciente com a inconsciente. Nesta mediação se estabelece uma conexão
com a memória arcaica da humanidade, os arquétipos. Neste sentido é
impossível, para Jung, que os mitos possam cumprir a sua finalidade, sem que
eles sejam ritualizados, vivenciados, experienciados.
É importante destacar que,
contrariando o positivismo, precisamos dar ao mito, ainda hoje, um lugar de
importância como forma fundamental de todo viver humano. Ele é a primeira
leitura do mundo, e o advento de outras abordagens do real não expulsa do
homem aquilo que constituiu a raiz da sua inteligibilidade, isto é, o mito é
o ponto de partida para a compreensão do ser.
Em outras palavras, o mito não é algo que ocorreu
apenas entre povos primitivos nos primórdios da nossa civilização, nem apenas
entre os gregos da Antiguidade. O mito ainda faz parte da nossa vida
cotidiana, como uma das formas do existir humano.
Na verdade o homem
contemporâneo carece de lentes para auxiliá-lo a enxergar os deuses que o
rodeiam, e aqui deuses são manifestações arquetípicas com conteúdos
energéticos de polos opostos, que podem ativar a sombra ou trazer à luz para
mostrar o caminho da individuação.
De forma geral não podemos esquecer
que estudar
e compreender as narrativas míticas pode ser um caminho para responder às
questões mais angustiantes do homem da atualidade. Pois, estejam onde
estiverem os mitos, os símbolos cumprem sua função quando nos remetem à nossa
história pessoal, tornando-a mais clara e dando-lhe um sentido mais profundo.
A psicologia tenta auxiliar nesse caminho e a mitologia é apenas um dos
recursos utilizados para isso.
Acredito que o
conhecimento sobre os textos mitológicos é uma grande oportunidade e uma excelente
ferramenta, para os profissionais da psicologia, ampliar seu olhar, pois, todas
as questões humanas com que esse profissional vai se deparar no consultório
já estão na mitologia.
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Escrito por Ivna Vieira, estudante do Curso de Formação de Psicologia Analítica, realizado pela PROFINT - Profissionais Integrados Ltda.
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