Don Juan DeMarco: Reflexões sobre a
conexão Puer/Senex
Murilo Lima
Don Juan DeMarco é um
filme de 1995, escrito e dirigido por Jeremy Leven e estrelado pelos vencedores
do Oscar Marlon Brando e Faye Dunaway, e pelo ainda não tão famoso Johnny Depp.
O filme conta a estória do psicólogo
Jack Mickler (Brando) que, às vésperas da sua aposentadoria, é designado para
salvar o jovem suicida John Arnold De Marco (Depp), que acredita ser D. Juan, o
maior amante do mundo. Ao se identificar com os delírios do jovem, o psicólogo convence-o
a desistir do suicídio e, a medida em que o submete a tratamento, um processo
de transformação se estabelece na vida de Mickler. O homem obeso e desiludido
com a vida torna-se um sedutor e reacende o romance de seu problemático
casamento. Vemos então uma representação da dinâmica das expressões da vivência
do homem no tempo.
A
conexão entre os arquétipos (1) do
Velho e do Novo, o Pai e o Filho, o Passado e o Futuro, o Senex e o Puer, se
apresenta em vários mitos ao longo da história da humanidade, entre eles o do
jovem Ícaro, que ao fugir do labirinto do Minotauro com asas artificiais de
penas de gaivota e cera de mel de abelhas, ignora os avisos de seu velho pai
Dédalo, para não voar muito perto do sol e despenca para a morte no mar Egeu.
Os mitos, símbolos das
experiências humanas, têm sido analisados de diferentes maneiras, dependendo
das perspectivas da cultura, da época ou do indivíduo. Para Carl G. Jung o mito
é uma expressão do inconsciente coletivo universal. Ele acreditava que as
qualidades psicológicas inatas são comuns a todos os seres humanos e determinam
como as pessoas vivem suas vidas. Esse manancial coletivo do inconsciente era
composto por arquétipos como o Herói, o Tolo, a Grande Mãe, a Eterna Criança
(Puer Aeternus), o Velho (Senex), entre outros. Jung defendeu que estas imagens
estariam embutidas no inconsciente, mas a depender da jornada de vida pessoal
do indivíduo – seu processo de individuação - a forma e o contorno dessas
imagens arquetípicas, seriam expressas de maneira diferente. Às vezes, apenas
um arquétipo dominaria, depois outro, em diferentes períodos da vida do indivíduo.
Em determinados momentos eles agiriam simultaneamente. Para Jung, o fato de os
mitos por todo o mundo conterem muitos temas e arquétipos semelhantes reflete a
existência de um inconsciente coletivo ou universal.
Ora, Don Juan é um personagem folclórico e literário que apareceu pela
primeira vez em 1630 com a obra El Burlador de Sevilla, atribuída ao dramaturgo
espanhol Tirso de Molina. A partir daí Don Juan torna-se símbolo da
libertinagem e se apresenta como herói/vilão em diversos
romances, peças teatrais e poemas, incluindo também a ópera Don Giovanni (1787)
de W. A. Mozart. A recorrência a este tema em tantas formas de
arte remete, portanto, às afirmações de Jung de que qualquer forma de arte
(pintura, livros, mitos, etc.) são veículos para a expressão de processos do
inconsciente coletivo. Como afirma a psicóloga Gabriela Prado (2), pode-se considerar o Don Juan “como uma necessidade da humanidade em
expressar e elaborar problemáticas essencialmente humanas”. E
que problemáticas seriam estas?
Muito já foi dito sobre o “dom-juanismo” e os problemas no processo de elaboração do complexo de Édipo, decorrentes das
fixações na figura materna. Muito já foi dito também sobre as questões de
transferência e contratransferência entre o paciente e terapeuta evidenciadas
no filme ou sobre a simbologia da máscara usada pela personagem de Johnny Depp
e os mecanismos de defesa que são usados para protegê-lo da dura realidade que
viveu.
No entanto, o que mais me chama a
atenção nos estudos da dinâmica dos arquétipos do Puer e do Senex, é a
realidade nua e crua dos aspectos negativos dos mesmos nos dias de hoje. Vivemos
numa sociedade em que se privilegia e valoriza de forma exacerbada a juventude.
A mídia em suas variadas formas, a cultura pop, a internet – incluindo as redes
sociais – há muito nos encorajam a ignorar e até mesmo desvalorizar os aspectos
ligados ao processo do envelhecer. Os aspectos positivos do arquétipo do Senex
(A sabedoria, o equilíbrio, a experiência) são frequentemente esquecidos. Como resultado,
vemos principalmente a geração dos
jovens nascidos a partir dos anos 80, a chamada Geração Y, vivendo a conexão Puer/Senex de
forma assimétrica e patológica. Criados para se sentirem especiais, muitos
desses jovens vivem uma Síndrome de Peter Pan: não querem crescer e assumir
responsabilidades pessoais e profissionais. Muitos integrantes dessa
“Geração
Canguru”, que aos
30 anos ou
mais ainda não saiu
de
casa, vivem em crise e são
infelizes e frustrados no trabalho e na vida
pessoal.
Enquanto buscam o
lado mais prazeroso da vida representam uma “vida editada
perfeita” no meio
digital, onde todos são felizes e desfrutam dos prazeres de
uma utopia abstrata pueril.
Por outro lado, homens na meia idade tentam fugir dos sinais físicos da
maturidade e buscam se (re)encontrar em relações e casos amorosos quase que
incestuosos com pessoas mais jovens numa relação assimétrica ou unilateral e
negativa com o arquétipo do Puer. O resultado, muitas vezes, são as neuroses,
vidas, relações e lares destruídos.
É necessário resgatar a
função transcendente em nossa vida cotidiana e em nossos padrões de
comportamento. É urgente identificar e integrar os aspectos mais positivos do
Puer e do Senex, pois as dinâmicas destes arquétipos são necessárias em
qualquer etapa da vida. Os jovens precisam saber e reconhecer que os velhos são
os guardiões de conhecimento e dos mistérios, eles preservam a cultura e os
saberes antigos, nos dão o senso de identidade e de origem. Os velhos, por
outro lado, não podem prescindir da energia, vitalidade e criatividade dos
jovens. Seu desejo pelo inédito garante a renovação da vida. Como dito pela
psicóloga e professora Cybele Ramalho, “Para Jung, a Criança é o futuro em potencial, indica
o aspecto de devir e de fluxo do psiquismo humano. Para Cristo, para atingirmos
o Reino dos Céus, devemos nos tornar como crianças. Este Reino, Jung chamou de
arquétipo do Self, a vivência metafórica da totalidade e da plenitude”.
Na ficção
de Don Juan DeMarco, o diretor e roteirista Jeremy Leven, nos apresenta a
representação de uma dinâmica mais saudável da relação entre Puer e Senex. A
alma madura do Senex Mickler vivencia a força da ativação do aspecto Puer de sua alma, através do jovem
DeMarco. Isto o faz resgatar
a alegria e leveza de viver. O paciente “cura”
o psiquiatra (uma importante inversão em relação ao mito original de Don Juan)
estimulando-o a cultivar uma vida amorosa mais criativa e saudável. Uma conexão positiva e produtiva que
é sempre possível ainda que não seja fácil ou rápida. Como bem disse o médico,
professor e analista jungiano Carlos São Paulo, “Na verdade, sustentar a tensão entre os opostos deus-diabo, puer-senex, cronos-aion,
rítmo-repouso, criação-destruição, etc., é uma jornada épica para transcender o
caos e a ordem, depois de percebê-los indissociáveis. Ou seja, que um não surge
sem o outro, assim como a felicidade não existe sem a infelicidade. Essa é a
condição de nos libertarmos da necessidade de saber o que é certo e o que é
errado e a aceitar que ambos são verdadeiros. A magia consiste em optar por
todos eles”. Isto exige sacrifícios, força de vontade e responsabilidade: por
si mesmo e por sua jornada no processo de se tornar um indivíduo mais completo
e consciente.
Não por acaso, Leven, que é casado com uma psicoterapeuta é psicólogo e atuou por anos no State Hospital de Northampton, em
Massachusetts, antes de entrar para o mundo da produção cinematográfica. Ele
chegou a recusar cerca de dois milhões de dólares pelo roteiro de Don Juan
DeMarco e insistiu em ser ele mesmo o diretor do filme. Um claro sinal de que
ele sabia o que estava fazendo e de queria ser responsável pelo destino de sua
obra. Este é o exemplo que devemos seguir e aplicá-lo em relação ao destino de
nossa obra, que é a nossa vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) Arquétipos: Modelos ou
imagens de crenças e valores
comportamentais básicos do ser humano manifestados nas crenças religiosas,
mitológicas ou no comportamento inconsciente dos indivíduos.
SÃO PAULO, Carlos. Puer-Senex na
Psicologia Masculina. Disponível em
Comunicação
em mesa redonda, após a exibição do filme, promovida pelo Instituto de Medicina
Psicossomática do Rio de Janeiro, na Casa de Cultura Lauro Alvim- Rio, abril de
1997 postado no site: http://www.jung-rj.com.br/artigos/donjuan.htm
Comunicação em mesa redonda, após a exibição do
filme, promovida pelo Instituto de Medicina Psicossomática do Rio de Janeiro,
na Casa de Cultura Lauro Alvim- Rio, abril de 1997 postado no site: www.ajb.org.br/jung-rj/artigos/docs/donjuan.doc
Resenha Crítica por Murilo Lima, estudante do Curso de Formação de Psicologia Analítica, realizado pela PROFINT - Profissionais Integrados Ltda.