O NASCIMENTO DE VÊNUS/AFRODITE
Análise
do mito: Lauzanne Leão Ferreira
O Mito
A véspera
do nascimento de Afrodite fora um dia violento. O firmamento, tingindo-se subitamente de um vermelho vítreo, enchera de espanto toda a Criação.
Crono, munido de sua foice,
enfrentara o próprio
pai Urano, num embate
cruel pelo poder do Universo.
Com um golpe certeiro, o jovem deus arrancara fora a
genitália do pai, tornando-se o novo soberano
do mundo. Um urro colossal
varrera os Céus, como o estrondo tremendo de um infinito trovão,
quando Urano fora
atingido.
O fecundo
Órgão do deus
deposto, caindo do alto, mergulhara nas águas profundas, próximo a ilha
de Chipre. Assim,
Urano (Céu), depois
de haver fecundado incessantemente Geia (Terra)
— dando origem
à estirpe dos deuses
olímpicos —, fecundava agora, ainda
que de maneira excêntrica e inesperada, o próprio
Mar. Durante toda a noite
o mar revolveu-se violentamente.
A espuma
do mar, unida
ao sangue do deus caído,
subia ao alto em grandes
ondas, como se Iançasse ao vento
os seus leves
e espumosos véus.
Mas quando a Noite recolheu finalmente o seu grande manto estrelado, dando lugar a Eos, que já tingia
o firmamento com seus dedos
cor-de-rosa, percebeu-se que as
águas daquele mar pareciam agora outras, completamente diferentes. O borbulhar
imenso das ondas anunciava que algo
estava prestes a surgir.
Das margens
da ilha de Chipre, algumas
ninfas reunidas apontavam temerosas para um trecho agitado do
mar: O mar
está prestes a parir algo!
— disse uma
delas. — Será algum monstro
pavoroso? — disse outra, temerosa. Mas nem bem o sol lançara
sobre a patina
azulada do mar os
seus primeiros raios,
viu-se a espuma, que
parecia subir das profundezas, cessar
de borbulhar. Um grande silêncio
pairou sobre tudo.
— Sintam este perfume delicioso! Disse uma das ninfas. As outras, erguendo-se nas pontas dos pés,
aspiraram a brisa
fresca e olorosa
que vinha do alto-mar. Nunca
as flores daquela
ilha haviam produzido um aroma tão
penetrante e, ao mesmo tempo, tão discreto; tão doce e, ao mesmo tempo, tão provocantemente acre,
tão natural e, ao mesmo
tempo, tão sofisticado.
De repente, do espelho sereno
das águas — nunca, ate
então, o mar
tivera aquela lisura
perfeita de um grande lago adormecido — começou a elevar-se o corpo de alguém. — Vejam, é a cabeça
de uma mulher!
— gritou
uma das ninfas.
Sim, era uma bela cabeça
— a mais bela cabeça
feminina que a natureza pudera criar desde que o mundo abandonara a noite trevosa
do Caos. Um rosto perfeito; Os traços eram arredondados onde a beleza
exigia que se arredondassem, aquilinos
onde a audácia pedia que se
alinhassem e simétricos onde a harmonia
exigia que se emparelhassem. O restante do corpo foi surgindo
aos poucos:
Os ombros lisos
e simétricos, os seios perfeitos e idênticos — tão iguais que nem o mais consumado artista saberia dizer
qual era o modelo e qual a sua replica
perfeita. Sua cintura, com duas curvas
perfeitas e fechadas, parecia talhada para realçar o umbigo perfeito, O qual
acomodava delicadamente, como
um encantador pingente, uma minúscula e faiscante pérola.
E, logo
abaixo, um véu triangular — loiro e aveludado véu — tecido com os mais
delicados e dourados
fios, agitava-se delicadamente, esbatido
pela brisa da manhã. Nenhum
humano podia saber ainda o que ele ocultava — seu segredo mais cobiçado, que somente a poucos seria revelado. Algumas
aves marinhas surgiram, arrastando uma grande concha,
a qual depositaram ao lado da deusa — sim, era uma deusa — para que ela, como em um trono, se assentasse. Um marulhar de peixes saltitantes a cercava, enquanto golfinhos puxavam seu elegante
carro aquático até as areias
da praia cipriota. Nem bem a deusa colocara os pés na ilha, e toda ela verdejou
e coloriu-se como nunca antes havia sido.
Por onde ela passava, brotavam do próprio
solo maços aromáticos de flores multicores, os pássaros todos entoavam um concerto de vozes perfeitamente harmoniosas e os animais quedavam-se sobre a relva
com as cabeças pendidas, para receber o afago daquela
mão alva e sedosa. — Quem é você,
mulher mais que perfeita? — perguntou-lhe, finalmente, a ninfa que primeiro recuperara o dom da fala. — Sou aquela
nascida da espuma do mar e do sêmen
divino — respondeu a deusa,
com uma voz cristalina e docemente
áspera, envolta num hálito que superava em delícia ao de todas
as flores que seus pés
haviam feito brotar.
No mesmo
dia, a extraordinária notícia do nascimento de criatura tão bela chegou
ao Olimpo, e os deuses ordenaram que as Horas
e as Graças a fossem
recepcionar. Ainda mais
enfeitada pelas mãos
destas caprichosas divindades, apresentou-se a nova
deusa diante de seus pares
no grandioso salão
do Olimpo, sendo imediatamente acolhida e festejada
pelos deuses. Mas quando todos ainda se perguntavam quem seria, afinal, aquela criatura
encantadora, um descuido
— seria mesmo?
— pôs fim a todas
as indagações. Pois o véu que a envolvia, descendo-Ihe ate os pés, revelara
o que nenhum dos embelezamentos artificiais
pudera antes realçar: a sua infinita
beleza original. — É Afrodite, sim, a mais bela das deusas!
— disse o coro
unânime das vozes.
Fonte: http://www.mitologia.templodeapolo.net/mitos_ver.asp?Cod_mito=1&value=Nascimento%20de%20Afrodite&mit=Mitologia%20Gr ega&prot=Afrodite&lnd=
ANÁLISE SOBRE O MITO DO NASCIMENTO DE AFRODITE
Questionamentos e reflexões
Os mitos trazem
arquétipos importantes que transitam no inconsciente
coletivo da humanidade. “O Nascimento de Afrodite” sempre me chamou atenção e para mim expõe um mistério. Por que um ser que representa o Amor e a Plenitude vem a partir de uma ação
tão violenta? Porque Vênus/Afrodite surge
após um conflito
sangrento entre Pai e Filho,
com anuência da Mãe? Há uma quebra,
efetivamente, que ocorre
nesse triângulo. Urano
é o Céu e Gaia
a Terra, dois aspectos que se espelham e complementam entre si a polaridade da Criação. Urano,
o masculino (Pai). Gaia, o feminino (Mãe).
Crono, o filho,
também compreendido como
Saturno, o ceifador. Aquele que ceifa destrói e modifica toda uma estrutura. Um equilíbrio
é desfeito e, com o abalo, Céu e Terra são desvinculados. O filho,
na geometria da trindade, geralmente é o ponto
de equilíbrio entre
as polaridades Pai/Mãe.
Mas Crono não estabiliza, e, sim, desestrutura o Todo. O filho enfrenta
e mata o pai, e desse
enfrentamento surge
do profundo do inconsciente, representado pelo Mar, a linda Afrodite,
a Deusa do Amor. Num universo desestruturado, o Amor é a única possibilidade de restaurar o equilíbrio
perdido? Afrodite
é o oposto do próprio
irmão, Cronos. Enquanto Cronos/Saturno faz morrer
o que precisa, Afrodite faz renascer da dor um novo florescimento, uma nova forma
de existir e, com isto, transforma o mundo a sua volta.
Toda a Beleza
é resgatada, porque
onde Afrodite “o Amor” toca
o desabrochar se instala. Assim
como Cronos, Afrodite
também possui o aspecto de transformadora,
o que a torna uma alquimista. Mas, o universo
de atuação da Deusa é de outra ordem...
Cronos, o Ceifador
Esta é uma das ações
mais significativas nesse
mito! A castração de Cronos sobre Urano,
que ao fazê-lo, retira deste
um potencial. O que significa esta ação? O que foi de fato removido? A Ação de Urano
sobre Gaia também
vale uma reflexão, porque, a seu modo, também
é castrador, tendo em vista que retira dela a sua potência de gestora e criadora, onde prevalece a sua
vontade de onipotência. Gaia representa o Ventre de Toda a Criação. Sua potência e essência principal reside no aspecto
de gestadora e manifestadora no aspecto físico.
É o poder do Ventre
Feminino. Há pequenas
variações em textos
que retratam este mito. Alguns referem-se a esta ação de uma forma um pouco diferente: Urano fertiliza
Gaia, mas mantém os filhos
dentro, presos em seu ventre.
E a dor de não procriar chega a tal ponto
que Gaia dá ao filho
mais novo a gadanha
(foice), e é a partir
da ação de Cronos que toda criação e liberdade
se manifesta. Ele ceifa o aspecto negativo de Urano, sua instabilidade e rompantes súbitos
e violentos. Foi necessária uma ação dolorosa para promover uma
mudança em toda a estrutura, desfazendo o impasse e, principalmente, “ceifando” de Urano
o controle excessivo e a postura
de repressão sobre
o feminino (Gaia).
A morte do Pai também
é uma mudança e libertação significativa de um padrão
de dependência para
esse filho. E a consequência é o nascimento de uma força feminina
do Inconsciente, a Anima (Afrodite).
A dinâmica do “espelho”
Afrodite
representa ainda um mistério mais profundo, porque
ela vem das profundezas do inconsciente (Mar).
É a própria “Anima” (Alma).
Retomando o Mito, vemos
que foi a partir
do falo de Urano, cortado
e jogado ao Mar, que as águas são fertilizadas e deste processo
nasce um ser em pura perfeição. Antes de Afrodite
emergir, paira um silêncio, e as águas cessam o movimento, tornando-se toda a
superfície como um grande espelho. O “espelho” é um elemento interessante que
sempre vem associado como a um “portal” de conexão entre
“realidades” diferentes. Um grande
mistério que Afrodite representa com Maestria. Urano
é o Céu, que ao ser castrado
pela ação de Cronos, gera do
profundo do inconsciente, Afrodite. O Mar é um grande
espelho que reflete
o Céu. E nesse diálogo
surge a dinâmica de reintegração do Self pela Anima ou Animus. O externo que reflete o interno, diálogo
este que sustenta a compreensão de “Sincronicidade” tão falada
por Jung e tão difícil de ser racionalmente explicada, mas que subjetivamente é vivenciada e percebida. Mas Jung estava
tão convencido da existência desse
princípio que empreendeu um grande esforço
junto ao físico
Wolfgang
Pauli na compreensão lógica do fenômeno. No conceito de Sincronicidade de Jung, este
fenômeno que
associo a este símbolo “espelho” é muito
importante, porque existe
algo do que é vivenciado no interno que reflete
no externo, criando
situações como um imã de experiências. Quanto
mais existir a consciência
de si mesmo, maior a
percepção da SINCRONICIDADE e do mistério dos “reflexos”, é o que a experiência me mostra.
Jung percebeu que algo unia as experiências da psique aos fatos da realidade
física: “A mente
(psique) não pode
ser totalmente diferente da matéria, pois
de que maneira
ela poderia
mover a matéria? A matéria não poderia ser estranha à mente, pois como ela poderia produzir
a mente? Matéria e alma existem
no mesmo mundo,
e cada uma compartilha com a outra”.
Esta associação entre a
Physis e a Psyche levou Jung a constatar que Física e Psicologia são
complementares. Ou seja, o mundo interno e o mundo externo possuem uma relação
de complementaridade.
“A ‘conformidade’ dos processos dos pensamentos físicos
e psicológicos pode ser
tomada como sincrônicos”.
Afrodite e a Integração do Self
No início, falei
sobre a quebra
de ligação entre
Céu e Terra que Cronos
promove com a ação de Ceifador. O equilíbrio entre
as polaridades é desfeito. Interessante como a dinâmica
do Universo está
sempre ocorrendo pelo Caos e posterior Reequilíbrio. Como nada pode permanecer estático ou não haveria
possibilidade de evolução
e transformação, o Caos é fundamental
dentro desse
processo, e Cronos
o faz com perfeição, dando
a Urano a possibilidade de mudar e descobrir um novo potencial. E esta nova possibilidade vem a partir
da emergência da Anima, Afrodite, um ser que representa, acima
de tudo, a vibração plena
do Amor. E este Amor de Afrodite
vem com uma intensidade tamanha que, apenas
a sua ação de presença
modifica tudo ao seu redor,
o que demonstra que a Deusa
é, acima de tudo, “sentir
a vida com intensidade”. Porque quando se trata de Afrodite, nada é superficial ou
distante, mas com profundidade e entrega. E como “espelho” do inconsciente, Afrodite traz todos os
aspectos do inconsciente que precisam ser transformados e integrados. Só o olhar
da deusa, ao penetrar naquela
alma, repercutia todo o tipo de reação em deuses e
mortais. Talvez
por isso o Amor encante, mas também atemorize, porque ao sermos
tocados no mais profundo, nos sentimos
expostos e frágeis.
E nunca sabemos de que forma este “mais profundo” pode se revelar.
Afrodite trouxe à tona o melhor e o pior nos mitos
que são contados. Como dominava o mar do
inconsciente, foi a Anima de vários deuses,
e a todos promoveu o processo necessário. Por esta característica, alguns analistas junguianos a destacam como a “Deusa
alquimista”, e aquela
que reintegra o Self e retoma o equilíbrio dos opostos. Mas quem disse que essa é uma tarefa simples?
Integração do Self é um processo de mergulho interior
e transformação intensa!
E, uma vez olhando no “espelho”,
Afrodite atua dentro do seu poder e impõe as tarefas
necessárias para que a transformação aconteça. A doce e frágil Psique
tem muito a falar sobre
isso!
“Coloco Afrodite, deusa do amor
e da beleza, numa categoria toda sua como
deusa alquímica, designação apropriada para o processo
extraordinário ou poder
de transformação que ela, sozinha, teve. Na mitologia grega,
Afrodite foi uma
presença impressionante que motivou os mortais e as
divindades a se apaixonarem e conceberem nova vida” (“As
Deusas e a Mulher: nova psicologia das mulheres”, Jean Shinoda Bolen).