quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Artigo VIII


O MITO DE ULISSES e o processo de Individuação
Ivna Ariane Santos Vieira

Ao estudar mitos, estamos em busca daquilo que nos vincula mais profundamente à nossa própria natureza e ao nosso lugar no cosmo. (Hollis, 1997).

            INTRODUÇÃO

Há algum tempo, quando ainda estava na escola, ficava fascinada nas aulas de literatura e história, quando os professores narravam estórias de cidades, reis, rainhas e guerras. Lembro que, nesta época, minha mente devaneava tanto nas aulas, que mesmo depois delas, inspirada pelo assunto, conversava com meus colegas de classe sobre o tema estudado e ia produzindo todo um contexto maior para a história relatada.
Lembro também que na época, meados da década de 80, passava um desenho, “O Fantástico Mundo de Bob”, logo fui apelidada de Bob. Divertia-me demais nestes devaneios. Engraçado que o tempo passou, e ainda hoje faço todo esse movimento mental. Às vezes uma estória curtinha, acaba virando um enredo enorme em minha mente.
Então, comecem a imaginar o que aconteceu comigo ao estudar Psicologia Analítica. Fiquei surpresa com a descoberta de que dentro do universo da Mitologia estão as verdadeiras histórias da humanidade. Fiquei tão contagiada que não me contive e corri para o computador para começar a escrever.
O objetivo deste texto é escolher um mito e fazer a análise, tomando por base uma bibliografia básica. A primeira grande questão que surgiu foi: Qual mito irei escolher? Uma dúvida imensa percorreu meu ser. Apesar da angustia inicial, decidi ler o material e, a partir das leituras, deixar que algum mito, de certa forma, “me escolhesse”.
Com o passar dos dias de leitura, comecei a ficar aflita porque, até então, não havia decidido qual mito iria analisar. Nesta mesma noite, ao deitar, pensei: “Espero que essa noite algum sonho mostre-me o mito que deverei trabalhar”. Estava tão exausta que logo adormeci.
De repente fiquei sentindo que o mito de Homero, mais especificamente a passagem na qual Ulisses se amarra no mastro para passar pelas sereias, ficou mais “viva” na minha mente. Após guardar o material, continuei pensando na estória de Ulisses e o efeito “mundo maravilhoso de Bob”, se instalou em mim.
O resto do dia fiquei pensando no esforço de Ulisses, as dificuldades enfrentadas no assédio das sereias e, principalmente, fiquei admirada com sua determinação para conseguir chegar a sua terra natal e rever sua amada. Ele foi muito talentoso em driblar as dificuldades existentes e sobreviver. Apesar de ter passado o dia todo pensando no mito, ainda estava insegura a respeito da minha possível escolha. De qualquer forma, já havia uma esperança: algo diferente começava a surgir em mim.
No outro dia, dirigindo para o trabalho, retomei minhas divagações sobre o mito de Ulisses e, de repente, me veio a imagem do sonho. Como num clarão, vi no formato da plateia, o barco de Ulisses e Ivete Sangalo seria a sereia que cantava para aquele povo. Neste momento compreendi o porquê das pessoas estarem tão desanimadas, até assustadas. Agora, tudo fazia sentido. Fiquei impressionada! Poderia dizer até emocionada.
Diante destes fatos iniciei propriamente minha produção. Analisarei, brevemente, à luz da Psicologia Junguiana, o canto XII do poema épico Odisseia atribuído a Homero. Sinto-me diante de um grande desafio. Mas, como Ulisses, precisarei encontrar minhas estratégias para enfrentar.









ANÁLISE DO MITO

O poema épico Odisseia, atribuído a Homero, escrito há mais de 2.800 anos, é um dos textos mais fantásticos já escritos por um ser humano. O poema conta as aventuras do Guerreiro Ulisses, o qual recebeu o chamado para participar da guerra de Tróia. Relata os obstáculos enfrentados por ele ao retornar para casa, depois de duas décadas, onde sua mulher Penélope e seu filho o esperam. Carregados de significado simbólico, os seres fantásticos e as situações que aparecem na narrativa persistem no imaginário popular.
Uma das passagens mais conhecidas do poema é o encontro de Ulisses com as sereias (“as sirenas”), híbrido de mulher e animal que usava voz doce e a sensualidade para atrair os marinheiros até as águas repletas de rochedos, onde os navios corriam o risco de se despedaçar contra as pedras. O herói, porém, consegue resistir a elas amarrando-se no mastro de sua embarcação e instruindo seus marinheiros a tampar os ouvidos com mel endurecido. Esse trecho do poema tem menos de 30 versos, é curto, se considerarmos que a obra tem quase 12 mil. É justamente este pequeno trecho que servirá de foco para a análise.
Homero usa a mitologia grega para criar os cenários dos desafios que Ulisses encontrou em sua jornada. O autor cria metáforas onde os símbolos têm fortes significados. Quando conseguimos compreender os significados de toda a simbologia, percebemos com clareza as virtudes que Ulisses tinha, que na verdade são as virtudes que todos nós precisamos ter para superar os desafios da vida. Todo esse contexto ultrapassa gerações, fazendo parte, segundo Jung, do nosso inconsciente coletivo.
Para Jung;
Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal.  Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos... Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por outro lado, são chamados arquétipos. (2003, p.15-16).

Uma forma bem conhecida de expressão dos arquétipos é encontrada no mito. O mito é uma das formas onde os arquétipos humanos se materializam. É nos mitos que Jung encontra o material privilegiado para analisar os mistérios da alma, os acontecimentos anímicos, os arquétipos. “Nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural como formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno”. (Jung, 2003, p. 214).
Por isso é tão importante estudar a mitologia. Os mitos repletos de lendas históricas e contos sobre deuses, deusas, batalhas heroicas e jornadas no mundo subterrâneo, revela-nos os interiores da mente humana e seus meandros multifacetados. Ali se origina, ali se manifesta. Reflete-se na exterioridade da cultura, nasce na interioridade psíquica, no subconsciente humano. Atemporais e eternos, os mitos estão presentes na vida de cada ser humano, não importa em que tempo ou local. Somos todos deuses e heróis de nossa própria história.
O que a obra Odisseia tem de específico quanto a essa questão é a maneira pela qual Ulisses vai enfrentar o sobrenatural, e as estratégias que ele monta para superar os perigos que encontra. Esta maneira específica relaciona-se com aquilo que distingue Ulisses dos demais homens daquele barco.
Barco, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009) evoca a idéia de força e de segurança numa travessia difícil. O simbolismo do barco também pode ser comparado ao do vaso, enquanto receptáculo. Passa então a participar do sentido da matriz feminina portadora de vida. Assim, o barco de Ulisses simboliza a imagem da vida e o convite para a grande viagem, cujo centro e direção cabem a ele escolher.
            Ele escolher seu destino é um detalhe fundamental no mito. Se Ulisses ouvir o canto da sereia e ceder aos seus encantos, ele perderá sua liberdade e sua vida. Ele precisa fazer suas escolhas, criar estratégias para concluir sua grande viagem. 
Nesta grande viagem Ulisses vai precisar ser muito mais do que um grande guerreiro que possui força e coragem em graus elevados para combater as sereias. Isso demonstraria força e coragem, mas não resultaria no êxito. Não seria eficaz. Ulisses, como arquétipo representante do herói, tem a percepção de que são necessárias outras armas, e que estas não são as armas do combate propriamente dito, mas as armas do intelecto. Isso é decisivo para que ele saia vitorioso. Segundo Boechat (1995), o herói arquetípico existe enquanto há tarefa externa que o constele, enquanto haja rito de passagem ou transição centrais na estruturação da consciência.
Nosso Herói Ulisses vive um rito de passagem, uma jornada, simbolicamente, ao passar pelas sereias. Lembrar que em todas as mitologias a “luta com o dragão” se apresenta com três componentes principais: o herói, o dragão e o tesouro.  Neste caso: Ulisses, as sereias e a chegada à terra natal e o encontro com sua amada esposa.
Nesta jornada há uma passagem do ego do nível de consciência a outro mais diferenciado. O herói, atuando no eixo ego-Si-mesmo, proporciona à consciência a energia necessária para uma adaptação ao novo estado de ser.
A sabedoria, o arquétipo do sábio, representa em Ulisses a tomada de consciência de que ele pode vencer a natureza e o sobrenatural por via de uma força especificamente humana, que não se mede fisicamente, e que seria o poder de raciocinar e de calcular as possibilidades, de modo a fazer com que a desvantagem que ele possui inevitavelmente de início, possa se transformar justamente no fator que lhe permitirá superar a vantagem do inimigo.
Ulisses precisava encontrar uma estratégia para superar as sereias. Os relatos existentes eram que naquela região da Ilha de Capri, repleta de sereias, todos os homens que tentaram passar morreram, seus navios naufragaram nas pedras.
Analisando esta região, observa-se que a ilha, segundo Marie-Louise Von Franz (2012) é símbolo de isolamento. As ilhas normalmente apontam projeções de esferas psíquicas inconscientes. O fundo da ilha, onde se encontra os corpos mortos dos marinheiros, significa o inconsciente. Os ossos das vítimas das sereias encontradas por Ulisses na sua travessia serviam de alerta no sentido de ele saber o que aconteceu a quem cedeu aos impulsos do instinto, do inconsciente. Os marinheiros não estavam fortemente ligados ao Self e isso os impediu de continuar a jornada.
É importante observar que na história de Ulisses a ilha não é a meta do herói, mas um estado de transição. No mar do inconsciente, a ilha representa a parte destacada da psique consciente de Ulisses. Ela representa o complexo autônomo, destacado do ego, com uma espécie de inteligência própria.
Marie-Louise Von Franz (2012) explica que a ilha é geralmente habitada por seres de outro mundo - no mito em análise, as sereias. De acordo com Lexikon (1990) as sereias eram, na mitologia grega, demônios com corpo de pássaro e cabeça de mulher; habitam os recifes e são dotadas de um saber sobrenatural e de um canto que perturba os sentidos; por meio dele, elas seduziam os navegadores para em seguida matá-los e devorá-los. São interpretadas como perigos da navegação ou, de modo geral, dos perigos sedutores e funestos.
O diferencial, no mito, é que Ulisses pode contar com a ajuda de Circe, a feiticeira, o arquétipo da velha sábia, a qual preveniu Ulisses desse perigo.  
O arquétipo do “velho sábio” é uma figura arquetípica determinada, personificando o arquétipo da reflexão. Segundo Boechat (1995):

O sábio aparece nos mitos e lendas, aconselhando o herói, pouco antes de se lançar na tarefa sobre humana. Personifica o masculino em seu mais alto grau de diferenciação, o espírito que “sopra onde quer” e produz as mais sutis e eficazes transformações psíquicas. (1995, p.40)
Para Circe, a prudência manda, pois, que se passe por este local guardando uma distância tal que o canto não possa ser ouvido. Mas Ulisses deseja ouvir o canto e ao mesmo tempo, salvar-se. Ele quer conhecer o canto, satisfazer uma curiosidade que é ao mesmo tempo racional e afetiva sem se dobrar a fatalidade,  isto é, sem conformar-se ao fato de que a felicidade e o prazer custam aos mortais à própria vida.
Ulisses sabia o quanto era difícil enfrentar as sereias, ele tinha consciência de suas próprias fragilidades, e por isso cria seu plano. Ele pede que seus marinheiros o amarrem ao mastro e que eles mesmos vedem os ouvidos com cera, ao mesmo tempo em que deverão remar com todas as forças para atravessar o mais rapidamente possível o trecho de perigo.
Fantástico observar, que o fato de Homero narrar que Ulisses pediu para ser amarrado no mastro do barco, vai na contra mão dos heróis modernos.
Heróis modernos são aqueles que tem poderes especiais, eles superam qualquer coisa, vencem quaisquer obstáculos, se auto afirmam o tempo todo; os heróis modernos são na realidade um retrato da nossa sociedade, aonde as pessoas o tempo inteiro tentam se mostrar melhores, mais fortes, mais competentes e mais inteligentes.
A simbologia de Ulisses amarrado no mastro deste barco é extremamente importante. É nele que o herói se prende para não cair no encanto das sereias. Simbolicamente este mastro, que está no centro do navio, representa o eixo vital do espirito, o Self do protagonista. Ulisses precisa estar preso, ligado, comprometido, com seus objetivos de vida, para não se deixar cair no canto da sereia (ilusões das paixões). Seu objetivo (Self) era mais forte que sua carência (Sombra) por isso ele não se deixou levar pelo canto.
Observe que, paradoxalmente, são as sereias que provocam a ruptura que fez com que Ulisses adentrasse às camadas mais profundas da psique, movimentando as forcas instintivas até então adormecidas. Coube às sereias dar o impulso desencadeador da busca do Self, pois, se assim não agisse, Ulisses continuaria preso a sua natureza primitiva.
A sereia simboliza o elemento mediador (Anima) que possibilita Ulisses ir de encontro aos conteúdos interiores. De acordo com Rabelo (2010) faz-se necessário, pois, a presença de um elemento de confronto, para que os extremos se revelem e possa haver busca de equilíbrio que culminará com o encontro do Self, em outras palavras, com a sua verdadeira essência.
Von Franz (2012) fala da Anima como elemento mediador, quando diz que, como disse Jung, a Anima é o guia para a realização do Self, mas algumas vezes de uma maneira muito dolorosa. Segundo a autora, normalmente, a Anima não conduz o homem diretamente ao paraíso; ela o coloca primeiro “num caldeirão quente onde ele é muito bem cozido por um certo tempo”.
É curioso notar que Homero não descreve as sereias. Isto porque sua descrição não é o mais importante. Homero se limita a falar de sua bela voz, de sua capacidade de encantar e do lugar onde viviam. Isto porque estes são os elementos fundamentais.  Não é pela faceta “monstro” que as sereias inquietam e fascinam, mas sim pela ambiguidade. Elas atraem quem as escuta para o prazer e para a morte. Cativam suas vítimas e as põem a perder.
Seduzir, do latim seducere, significa atrair para si. As sereias usavam seu canto para encantar. E as vítimas pagavam com a vida o prazer de desejar e ser envolvidas. Não surpreende que as sereias de Homero sejam associadas aos supostos perigos da feminilidade. O próprio Ulisses é, aliás, “ameaçado” por diferentes personagens femininas da obra, que tentam dissuadi-lo a esquecer de sua mulher, Penélope, que esperou por ele durante a jornada. As sereias encarnam perfeitamente o papel de inimigas do afeto puro e verdadeiro.
Enfrentar as sereias é como um “ritual de iniciação”, ao se abrir para o mundo obscuro do Inconsciente. As sereias, com seu canto, despertam os medos e emoções ameaçadoras (a Sombra) que precisam ser reconhecidos e domados, para o indivíduo recuperar sua “força animal”.
Observa-se que seu canto é um sinônimo para toda a sedução que o ser humano sofre (e muitas vezes cai), onde a pessoa deixa de usar a razão por causa das suas necessidades mais urgentes e acaba sendo iludido e pagando um preço caro.
Ulisses ouve o canto: como não poderia deixar de ser, o canto exerce o seu fascínio mágico, e Ulisses deseja desesperadamente ir ao encontro das sereias. Grita aos marinheiros que o desamarrem, mas estes, com os ouvidos tampados de cera e concentrados em remar fortemente, não podem atender ao seu pedido. Com  isso, Ulisses torna-se o primeiro homem a ouvir o canto e não morrer.
O fato de Ulisses desejar ouvir o canto é extremamente simbólico, pois assim ele vive verdadeiramente a jornada do herói. O valor do processo de passagem de Ulisses pelas sereias está, antes, naquilo que acontece ao longo do caminho, é a própria trajetória ou Jornada que é o destino. O confronto com o canto é tão importante porque remete ao homem o eco de seu próprio encontro com a sombra, de sua dualidade psíquica. 
Observe que o poder da sedução das sereias concentra-se principalmente na voz. Em grego, o termo que designa “canto” pode significar também “grito”. De acordo com Dieguez (2012), na figura das sereias o termo evoca prazer, gozo e orgasmo.
De forma geral, diante da beleza do canto, os homens morriam, pois o livre-arbítrio da vítima desaparece e o próprio indivíduo se põe em perigo. Ulisses se prendendo ao mastro coloca-se, mesmo preso, em situação de liberdade. Ulisses não cede aos caprichos da sereia, pois prende-se antes que elas o façam. Ou seja, ele tem a liberdade de escolher o que deseja.
As sereias são descritas como oniscientes. Elas sabem “tudo o que ocorre na terra fecunda” e por isso reconhecem o herói Ulisses e chamam-no pelo nome. Assim como Narciso se apaixonou pela própria imagem refletida no lago e se afogou, elas evocam a vaidade de Ulisses (sua Sombra) para atraí-lo para a morte: “Vem, celebre Ulisses, glória eterna da Grécia”, cantam, e ele fica prestes a enlouquecer.
Dieguez (2012) afirma que uma leitura mais atenta do texto revela que as sereias utilizam expressões e palavras semelhantes às usadas por personagens intimamente associados a Ulisses em diferentes momentos da sua jornada. Mais que evocar proezas com a intenção de envaidecer, a linguagem das sereias resgata memórias de momentos prazerosos. Elas acariciam seu desejo de atenção e reconhecimento ao louvá-lo como se houvesse se tornado um mito (sua Sombra), uma sugestão sutil e cruel de que o herói deixará de existir no momento em que abandonar a aventura e retornar para casa.
 A nostalgia da morte o faz querer desviar do seu destino, onde uma vida calma e comum o espera. Observe que Ulisses não se entrega as sereias, por estar preso ao mastro, pois o canto induz Ulisses a perder o controle (ele grita para que os marinheiros o desamarrem) e se entregar àquelas que aparentemente sabem tudo sobre ele. Tudo saber, sobretudo de si mesmo, implica o fim da jornada de autoconhecimento, a perda de sentido da existência. De fato, a sabedoria das mulheres-peixe devora e extingue quem se deixa aprisionar.
O som do canto, desencadeando a sombra de Ulisses, permite o encontro consigo mesmo. A sombra pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto pudermos projetar o negativo a nossa volta. Ulisses sendo capaz de “ver” e ouvir sua própria Sombra, suportando-a, toma consciência de que ela existe.
Vale destacar que a Sombra é uma parte viva da personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. Não é possível anulá-la argumentando, ou torná-la inofensiva através da racionalização. Mais cedo ou mais tarde as contas terão que ser acertadas. A Sombra é, no entanto, um desfiladeiro, um portal estreito cuja dolorosa exiguidade não poupa quem quer que desça ao poço profundo.
Esse confronto com o canto promove a emancipação da consciência do Ego, de forma que este finalmente se “torna o herói,” ao se libertar da força do Inconsciente. No “mundo do herói”, o Ego e a consciência alcançam a autonomia.
Veja que o herói precisa estar centrado em seu Self (mastro do navio) para não ceder as investidas das sereias (Anima negativa), conseguir completar sua jornada e encontrar sua Anima positiva (a esposa), arquétipo do amante, fechando assim o ciclo do processo de individuação.
Marie-Louise Von Franz (2012) traz esta ideia no seu livro “A Interpretação dos Contos de Fada”. A Anima, isto é, a tonalidade feminina do inconsciente do homem, aparece primeiramente em pele de animal, no mito em questão, como sereia, e só depois é que ela se transforma num ser humano (Penelope, a esposa de Ulisses).
  Pelo mito percebe-se que quanto mais Ulisses conscientiza-se da sua sombra e da Anima, tanto mais elas perdem seu caráter impetuoso e compulsivo. Pouco a pouco o indivíduo vai criando conscientemente os diques para evitar a inundação do caos e assim surge um novo cosmo. Isto é, o herói precisa contemplar ativa e conscientemente a caminhada, entrar em contato com os elementos simbólicos, o que o levará a uma abertura e sabedoria interior.
Comparativamente, a passagem pelas sereias é um processo tão difícil quanto “lutar com um dragão”, numa jornada heróica, pois culmina com a “preciosidade difícil de ser alcançada”, que no caso de Ulisses foi chegar à sua terra natal, ou seja, concluir a jornada e alcançar o processo de individuação.
Rabelo (2010) cita que nas palavras de Jung (1991, p.426): “Individuação é o processo de formação e particularização do ser individual, distinto do conjunto, da psicologia coletiva.” Portanto, individuar-se significa tornar-se um ser único.
Em outras palavras, Jung (1982, p.49) refere-se à individuação, como:
Um processo de tornar-se cada vez mais o que de fato se é, um ser singular. Esse processo ocupa toda vida, pois exige um desenvolvimento em todos os aspectos: biológico, social e espiritual. Deve ser empreendido conscientemente e dar lugar a realização da singularidade através de uma gradativa separação da totalidade original, comum a todos os homens, ou seja, quanto mais indivíduo nos tornamos, mais somos capazes de nos perceber como parte de algo maior e ao mesmo tempo manter uma relação significativa com o coletivo da qual fazemos parte. A Individuação vai além da simples consciência, pois abrange extratos coletivos e universais. É o encontro com a nossa singularidade, sem perder a consciência de nossa relação com o todo, que possibilita ao indivíduo assumir um papel atuante e significativo no âmbito social.

            Ainda, no dizer de Jung (1982, p.71), “é importante para a meta da Individuação que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros.” Estar a caminho do SELF é a meta de todo herói humano, embora jamais possa concretizá-lo ou realizá-lo por completo. Observamos que Ulisses consegue atingir este estágio, pois soube distinguir o que era importante para ele.
De acordo com Marie-Louise Von Franz (2012),
o herói é uma figura arquetípica que representa o modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF. (p.73)
É importante no mito o contato com a morte, pois esta representa o encontro com a própria incorporeidade, impotência, fragilidade e transitoriedade da existência, o contato com as profundezas do inconsciente. Este provoca uma sensação de vazio, de insegurança, de falta de sentido, de vergonha e medo, o que leva à experiência da “morte simbólica do Ego”. O confronto com a mortalidade liberta o Ego de suas ilusões, inflações e culpas, constituindo-o como instância criativa.

Acredito que essa sutil relação entre prazer, perigo e morte (que a passagem da Odisseia representa) faz com que ela mexa tanto, ainda hoje, como a nossa imaginação. Homero foi extremamente genial ao escrever o encontro de Ulisses com as sereias. Ficar atento aos ensinamentos do mito pode nos ajudar a penetrarmos em nossas próprias profundezas anímicas desconhecidas, vivendo a experiência da morte de valores e posicionamentos antigos e estéreis, retornando depois de um processo de reordenação, com uma atitude mais saudável em relação a nós mesmos e à vida. O desvestimento da Persona permite uma relação verdadeira, uma nova forma de vida, um “morrer” para “renascer”.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que a aventura de Ulisses inicia com um chamamento interior, um impulso para sair, a participação na guerra de Tróia, e acaba, quando esse herói encontra sua contraparte, a Anima, integrando-a à sua personalidade. Nessa caminhada, ele se confronta-se com sua Sombra e Anima, reconhece suas limitações e também as integra. Esta aventura termina com Ulisses atingindo o processo de individuação.
Pelo estudo observa-se que na nossa jornada pessoal o Ego pessoal tem de passar pelos mesmos estágios arquetípicos que determinaram a evolução da consciência, na vida da humanidade. Ele percorre uma estrada percorrida, antes dele, pela humanidade; estrada na qual esta deixou marcas da sua jornada, impressa na sequência arquetípica de imagens mitológicas.
Acredito que Jung deixou um grande legado ao propor o conceito de arquétipos (ligar os símbolos da humanidade por meio do inconsciente coletivo) e o de processo de individuação (ao reunir todos os seres humanos na busca da auto-realização e de totalidade). Com isso ele construiu uma ponte para as ciências humanas, aproximando de forma coerente Ocidente e as antigas religiões do Oriente. Essa interação foi acompanhada da compreensão de que todos os mitos das mais variadas culturas e épocas têm seu papel estruturante da consciência individual e coletiva
Os mitos, com sua construção simbólica, teriam, para Jung, o papel de intermediar a relação da vida consciente com a inconsciente. Nesta mediação se estabelece uma conexão com a memória arcaica da humanidade, os arquétipos. Neste sentido é impossível, para Jung, que os mitos possam cumprir a sua finalidade, sem que eles sejam ritualizados, vivenciados, experienciados.
É importante destacar que, contrariando o positivismo, precisamos dar ao mito, ainda hoje, um lugar de importância como forma fundamental de todo viver humano. Ele é a primeira leitura do mundo, e o advento de outras abordagens do real não expulsa do homem aquilo que constituiu a raiz da sua inteligibilidade, isto é, o mito é o ponto de partida para a compreensão do ser.
            Em outras palavras, o mito não é algo que ocorreu apenas entre povos primitivos nos primórdios da nossa civilização, nem apenas entre os gregos da Antiguidade. O mito ainda faz parte da nossa vida cotidiana, como uma das formas do existir humano.
Na verdade o homem contemporâneo carece de lentes para auxiliá-lo a enxergar os deuses que o rodeiam, e aqui deuses são manifestações arquetípicas com conteúdos energéticos de polos opostos, que podem ativar a sombra ou trazer à luz para mostrar o caminho da individuação.
De forma geral não podemos esquecer que estudar e compreender as narrativas míticas pode ser um caminho para responder às questões mais angustiantes do homem da atualidade. Pois, estejam onde estiverem os mitos, os símbolos cumprem sua função quando nos remetem à nossa história pessoal, tornando-a mais clara e dando-lhe um sentido mais profundo. A psicologia tenta auxiliar nesse caminho e a mitologia é apenas um dos recursos utilizados para isso.
Acredito que o conhecimento sobre os textos mitológicos é uma grande oportunidade e uma excelente ferramenta, para os profissionais da psicologia, ampliar seu olhar, pois, todas as questões humanas com que esse profissional vai se deparar no consultório já estão na mitologia.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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HOLLIS, James; “Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna”;  São Paulo. Paulus, 1997

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JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 3ª ed., Petrópolis: Vozes, 2003.
______________ . O eu e O Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982.
______________. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

LEXIKOM, Herder. Dicionário de símbolos. São Paulo: Cultrix, 1990.

MULLER, Lutz. Todos nascemos para ser Heróis. São Paulo – Editora Cultrix, 1987.

PEARSON, Carol S. O Despertar do Herói Interior: A presença dos doze arquétipos nos processos de autodescoberta e de transformação do mundo. 10° ed. São Paulo: Pensamento, 1998.

RAMALHO, Cybele Maria Rabelo Ramalho. Psicodrama da Jornada do Herói Interior: Articulando Psicologia Analítica e Psicodrama. Aracaju, 2008

RABELO, Ana Elizabeth C. B. Individuação: Adão alienado, Cristo reconciliado. São Paulo: Iglu, 2010.

VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: estruturas míticas para
escritores. 2º Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006

VON FRANZ, M.L. A Interpretação dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro, Achiamé, 2012.


Escrito por Ivna Vieira, estudante do Curso de Formação de Psicologia Analítica, realizado pela PROFINT - Profissionais Integrados Ltda.



quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Artigo VII


O Patinho Feio – Uma análise Junguiana
Ivna Ariane Santos Vieira


Os contos não são para serem entendidos, mas para serem sentidos, lidos com os olhos do coração e da alma. (Corumba & Ramalho, 2008, p. 15)
INTRODUÇÃO
Era uma vez”... Todo mundo, com certeza, ao ouvir esse pequeno trecho já imagina que o que está por vir é o clima mágico de uma narrativa, uma história, um conto de fadas.
O fato dos contos começarem com o “Era uma Vez” mostra que o tempo e o lugar nos contos são sempre evidentes. “O ‘Era uma vez’ ou algo semelhante, significa fora de tempo e de espaço – a ‘terra de ninguém’ do inconsciente coletivo”. (Franz, 2012, p.48).
A leitura de um conto de fadas nos remete a um clima de fantasia, onde tudo é possível. Não importa onde estejamos, a voz da contadora de histórias nos transporta para um tempo e espaço mágicos.
Marie Louise Von Franz (2012) chama a atenção para o fato de que sempre aparece algum problema no início da história do conto, obviamente, porque se assim não fosse, não haveria história. A partir daí, então, define-se o problema, o enigma, e procura-se entender sua natureza.
A decifração do enigma presente nos contos é o que a Psicologia Analítica chama de realização do Self. É um “tesouro” que precisa ser conquistado. A conclusão desta jornada em busca do tesouro é o processo de Individuação.
A busca deste tesouro acontece desde os primórdios da sociedade. Franz (2012) afirma que há muito tempo o ser humano busca esse sentido para sua existência e uma prova real desta busca são os diversos contos que sobrevivem até hoje. Tão antigos como a própria humanidade, os contos de fadas acompanham a evolução do homem, e por serem considerados uma expressão artística coletiva, nos ensinam, intuitivamente, muito sobre o comportamento deste ser humano.
Para Corumba e Ramalho (2008) os contos de fadas, tal como os sonhos, nos falam de tudo que vivenciamos, respondem nossas questões sobre a vida, narram o que fazemos e como fazemos. São cheios de imagens que, decifradas, abrem caminho, senão para o autoconhecimento e a compreensão de questões universais, pelo menos servem para nos despertar questionamentos nestas direções.
Esse é, segundo as autoras, o nosso maior interesse pela leitura dos contos de fadas, ir em busca da descoberta de seus significados e a decifração do enigma de seus heróis. Como todos nós somos heróis do cotidiano, temos por tarefa primordial decifrar nossos enigmas pessoais e os contos podem nos auxiliar de modo singular nesta tarefa.
Na decifração dos enigmas pessoais, os heróis e vilões dos contos são nossos heróis e vilões interiores, nossas fadas e bruxas que, muitas vezes, nos tornam vulneráveis. O herói funciona como um exemplo de coragem e esperança durante a etapa do enfrentamento de uma dada situação ou etapa da vida. Por meio dos contos, o homem quase sempre é levado a trilhar por caminhos íngremes da imaginação, culminando num final feliz, o que faz transpor para a realidade a possibilidade de também vencer desafios.
O ser que representa o herói se mostra dotado de audácia e coragem extraordinária e, mesmo depois de sua suposta destruição, ele retorna ao mundo com muito mais forças para enfrentar as dificuldades. Este regresso geralmente é muito doloroso para se enfrentar sozinho, razão pela qual os heróis dos contos recebem, na maioria dos casos, o auxílio de um sábio, de uma fada, de um mágico, entre outros. O regresso do herói é sempre um triunfo, caracterizando-se no conto como “um novo dia”, o “nascer o sol”, o “nascer de novo”.
Marie Louise (2012) diz que “o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF” (p. 73). Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego funcionando de acordo com as solicitações do SELF.
Corumba (2008) destaca que segundo Jung,

os contos de fadas constituem a manifestação mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Eles são a expressão dos arquétipos na sua forma mais clara, o que permite uma abordagem científica das estruturas organizadoras da psique humana. Os contos revelam expressões de um fenômeno psíquico desconhecido, o qual Jung chama de Self, que é ao mesmo tempo, a totalidade psíquica do individuo e o centro regulador da psique. (...). O conto de fadas é a melhor expressão dos arquétipos e seu sentido esta no conjunto de temas que desencadeia a história. (p.23).

Marie Louise (2012) cita Jung, quando diz que “são nos contos de fadas onde melhor se pode estudar a anatomia comparada da psique” (p.25). Vimos na mitologia greco-romano, que as lendas e os mitos revelam as estruturas básicas da psique humana por meio de grande quantidade de material cultural ali existente. Entretanto, nos contos de fadas, existe um material cultural consciente culturalmente muito menos específico e, consequentemente, oferecendo uma imagem mais nítida das estruturas da psique.

Ainda para a autora acima citada, os contos de fadas estão:

“além das diferenças culturais e raciais, podendo assim migrar facilmente de um país para outro. A linguagem dos contos de fada parece ser a linguagem internacional de toda espécie humana – de idades, raças e culturas.” (2012, p.35).

Carlos São Paulo (apud Corumba e Ramalho, 2008) destaca a importância de nos familiarizarmos com essas realidades da vida quando criança. Caso isso não aconteça, teremos dificuldades e seremos forçados a fazê-lo quando adultos; caso contrário, correremos o risco, provavelmente, de desperdiçarmos a oportunidade de nos desenvolvermos plenamente como seres humanos. Isto porque os contos de fadas são capazes de nos levar a entender padrões que coordenam nosso comportamento, nos permitindo ampliar a margem da consciência e, assim, influir de forma leve e prazerosa em decisões importantes que o destino apresenta.
A escolha do conto a ser analisado neste texto foi extremamente simples, já que a autora possuía um encanto especial por um conto, possivelmente por identificação com a história do mesmo. Sendo assim, o propósito deste trabalho é apresentar a análise do conto “O Patinho Feio”, de Hans Christian Andersen, estabelecendo-se uma ponte entre alguns conceitos da Psicologia Analítica Junguiana.
A história de Hans Christian Andersen “O Patinho Feio”, publicada pela primeira vez em 1845, é um retrato autobiográfico do autor. Trata do arquétipo do ser incomum e desvalido. De acordo com Estés (1999) o autor escreveu dezenas de histórias sobre o arquétipo do órfão. Ele foi um importante defensor da criança perdida e negligenciada, e dava imenso apoio à ideia da procura e descoberta do nosso próprio grupo.

ANÁLISE DO CONTO “O PATINHO FEIO”
Resumidamente, o conto trata da história de um filhote de cisne que foi chocado por uma pata. Sem saber de sua verdadeira identidade, ele passa a ser hostilizado pela família e por outras aves. Após muita humilhação decide ir embora e, durante essa jornada rumo à descoberta de sua identidade, é também humilhado e mal recebido. Após o inverno ele vai nadar no lago quando se reúne com um bando de cisnes e é reconhecido “o mais belo”.
“O Patinho Feio” tem muitas versões, todas contendo os mesmos núcleos de significados. De acordo com Clarissa Pinkola (1999) os significados básicos que nos chamam a atenção e interessam são:
O patinho da história representa a natureza selvagem, que, quando forçada a enfrentar circunstâncias pouco propícias, luta instintivamente para continuar viva apesar de tudo (resiliência do Patinho, ou seja, sua enorme capacidade de se recuperar após acontecimentos traumáticos). A natureza selvagem sabe instintivamente aguentar e resistir, às vezes com elegância, às vezes sem muito estilo, mas resistindo assim mesmo.
Quando a vibração específica da alma de um indivíduo que tem tanto uma identidade instintiva quanto uma espiritual, é cercada de aceitação e reconhecimento psíquico, a pessoa sente a vida e a força como nunca sentiu antes. Descobrir com certeza qual é a sua verdadeira família psíquica proporciona ao indivíduo a vitalidade e a sensação de pertencer a um todo.
Tentarei, a título de facilitar e sistematizar a análise do conto, ir trazendo gradativamente passagens da obra e, logo em seguida, fazer a ponte com a teoria Junguiana.
A primeira etapa do conto traz, como ideia geral, a temática da revolta. A narrativa inicia-se com o trecho: Quando o sol brilhou sobre o lago, a mamãe Pata orgulhosamente fez quá-quá. Ela estava muito feliz por causa de seus seis ovos que tinha chocado, e agora estava rodeada por seis patinhos lindos e fofinhos. (Inside, 2006, p. 4)
Pode-se partir do pressuposto de que o sol é a indicação do nascimento do Patinho. De acordo com Alt (2000), o sol e os seus raios estão relacionados à purificação, à iluminação e à fecundidade, ou seja, à origem da vida. Na teoria Junguiana, são encontrados diversos simbolismos atribuídos ao sol. Tanto na mitologia quanto na religião e na alquimia, o sol representa Deus, o “Grande Pai” de todas as criaturas do Universo.
Somente o ovo maior continuava inteiro no ninho. A mamãe Pata esperou bastante, e de repente, CRAC, o ovo se abriu e dentro dele saiu um patinho cinza. (Inside, 2006, p.4). Neste trecho do conto observa-se o início da angústia do personagem ao sair de um ambiente que lhe oferece conforto e proteção, como o ovo, para um ambiente possivelmente estranho e ameaçador. Esse sair do ovo pode representar também o mostrar-se ao mundo com suas singularidades.
Conforme Alt (2000), o ovo representa a auto geração, é através da percepção do ovo que o personagem se transforma em arquiteto de seu próprio mundo, é como se fosse Deus, criador de um mundo originado dele mesmo.
A cor cinza também pode simbolizar a doença, o ser diferente dos outros, o ser discriminado.
Seus irmãos e irmãs estavam felizes na fazenda, mas o Patinho Feio não. (Inside, 2006, p.5). O personagem do conto não conseguia se adaptar ao ambiente. Para Von Franz (2012) tudo que é novo acarreta medo, desconfiança, terror e consequentemente a impossibilidade de renovação. Não havendo a flexibilidade para mudanças, o ego endurece, propiciando a resistência.
Logo no início da história fica evidente que o Patinho Feio sente-se muito discriminado e rejeitado por todos. Até mesmo o seu núcleo familiar não aceita a condição de ele ser diferente dos outros.
Essa situação é terrível porque o Patinho na realidade não fez nada que justificasse esse comportamento, a não ser ter a aparência diferente e agir um pouco diferente dos outros. Na verdade temos, nesse caso, um Patinho com um enorme complexo psicológico.
Neste aspecto, fica evidente que, de acordo com Clarissa Pinkola Estés (1999) o Self básico da psique foi ferido desde cedo e, assim, o indivíduo acredita que as imagens negativas dele mesmo, refletidas pela família e pela cultura, são não só totalmente verdadeiras, mas também totalmente isentas de preconceito, de influencia da opinião e de preferências pessoais. O indivíduo começa a acreditar que ele é fraco, feio e inaceitável, e que isso continuará a ser verdade, não importa o esforço que ele faça para reverter a situação.
De acordo com a autora, nem a alma, nem a psique do indivíduo, podem aceitar essa situação. A pressão no sentido de se “adequar” pode perseguir o indivíduo até que ela fuja para longe, para um mundo oculto ou para vaguear muito tempo à procura de um lugar para se abrigar e viver em paz.
As questões do indivíduo rejeitado geralmente são duplas: a íntima e pessoal, e a externa e cultural.

Quando a cultura define detalhadamente no que consiste o sucesso ou a perfeição desejável sob qualquer aspecto, na aparência, na altura, na força, na forma física, no poder aquisitivo, na economia, na masculinidade, na feminilidade, na atitude de bom filho, no bom comportamento, na crença religiosa, existem ditames correspondentes e tendência à avaliação na Psique de todos os seus membros. (Estés, 1999, p.130).

A rejeição materna ao Patinho, tão evidente nesta primeira etapa, é um fenômeno chamado pela Psicologia Junguiana de complexo materno. Jung explica que um complexo é uma reunião de imagens e ideias, conglomeradas em torno de um núcleo derivado de um ou mais arquétipos, e caracterizadas por uma tonalidade emocional comum. Quando entram em ação, os complexos contribuem para o comportamento e são marcados pelo afeto, quer uma pessoa esteja ou não consciente deles.
A mãe pata do conto tem alguns atributos que geram um complexo materno no Patinho. Para facilitar a compreensão, analisarei, individualmente, cada atributo com o auxílio do capítulo 6 do livro de Clarissa Pinkola Estés “Mulheres que correm com os lobos” (1999).
De acordo com a autora, esses atributos da mãe Pata perpassam pelo fato dela ser ao mesmo tempo uma mãe ambivalente, uma mãe prostrada e uma mãe-criança ou mãe sem mãe. Com o exame dessas estruturas maternas, podemos começar a avaliar se o complexo materno interior sustenta com firmeza nossas qualidades exclusivas, ou se ele está precisando de um ajuste já há muito atrasado. Vamos ver, a seguir, o significado desses termos.
Uma mãe ambivalente é uma mãe dividida em termos psíquicos, o que faz com que ela seja puxada em várias direções diferentes, o que é a própria definição de ambivalência. A mãe pata quer cuidar do filho, mas isso começa a prejudicar sua segurança na própria comunidade. “A princípio sua mãe o defendia, mas com o tempo até ela se cansou daquilo tudo”. (Estés, 1999, p. 126).
Observa-se que quando o indivíduo tem essa imagem de mãe ambivalente na sua própria Psique, ele pode se descobrir cedendo com muita facilidade, com medo de firmar uma posição, de exigir respeito, de afirmar seu direito a fazê-lo, de aprender, de viver de seu próprio modo.
No caso especifico da mulher, quer essas questões tenham origem numa imagem interna ou na cultura externa, para que ela exerça a função da maternidade superando as restrições desse tipo de mãe internalizada, precisaria adquirir algumas qualidades ditas heroicas, abrigá-las, liberá-las na hora certa e defender a si mesma e àquilo no que acredita. A autora afirma que não há um jeito de preparar a pessoa para isso, a não ser inspirar profundamente para ganhar coragem e agir. Desde tempos imemoriais, o que foi considerado um ato de heroísmo foi a cura para uma atitude ambivalente paralisante.
Passando para o atributo da mãe prostrada, esta mãe caracteriza-se pela desistência em cuidar do seu filho diferente. No conto, é quando a mãe pata exclama para o patinho que preferia que ele desaparecesse. “Como eu queria que você fosse embora – exclamou exasperada” (Estés, 1999, p. 126).
De acordo com a autora, quando uma mãe desiste de cuidar de seu filho, isso significa que ela perdeu o sentido de si mesma. Ela pode ser uma mãe perversamente narcisista que se sente no direito de ser criança também. É provável que ela tenha sido isolada do seu Self selvagem e que tenha entrado em prostração, forçada por alguma ameaça real, de ordem psíquica ou física.
Assim, quando o indivíduo tem um constructo de mãe prostrada dentro de sua Psique e/ou da sua cultura, ele é indeciso quanto ao seu valor. Ele pode considerar que as escolhas entre cumprir exigências exteriores e as exigências da alma são questões de vida ou morte, o que é uma sensação relativamente normal para a pessoa “diferente”, mas o que não é normal é ficar sentado chorando, sem fazer nada.
No caso do indivíduo com o constructo de uma mãe criança ou de mãe sem mãe na sua Psique, sofre de pressentimentos ingênuos, de uma falta de experiência e, em especial, de uma redução da sua capacidade instintiva para imaginar o que irá acontecer.
Uma mulher com uma mãe criança interna assume a aura de uma criança que finge ser mãe.  Ela não é capaz de orientar e apoiar seu filho, mas como as crianças da fazenda na história do Patinho Feio, que sentem uma alegria intensa por ter um animalzinho em casa, mas não sabem cuidar direito dele, a mãe-criança tortura seu filho com diversas formas de atenção destrutiva e, em alguns casos, falta de atenção.
Como explica Clarissa (1999), às vezes a mãe frágil é ela mesma, um cisne criado no meio dos patos. Ela não conseguiu descobrir sua identidade verdadeira cedo o suficiente para ajudar sua prole.
Embora possamos interpretar a mãe na história como um símbolo da nossa própria mãe exterior, a maioria dos adultos tem agora uma mãe interior, como sua mãe verdadeira. Trata-se de um aspecto da Psique que atua e reage de um modo idêntico ao da experiência da infância de um indivíduo com sua própria mãe. Além do mais, essa mãe interior compõe-se não só da experiência da mãe pessoal, mas também de outras figuras maternas de nossas vidas, bem como as imagens da “mãe boa” e da “mãe perversa” exibidas pela nossa cultura, na época da nossa infância.
Para a maioria dos adultos, se houve algum problema com a mãe concreta no passado, e elas não existem mais, ainda há uma copia da mãe na Psique, que age, reage e fala igual à tenra infância. Muito embora a cultura do indivíduo possa ter desenvolvido um raciocínio consciente do papel das mães, a mãe interior terá os mesmos valores e ideias a respeito de como uma mãe deve ser e agir que vigoravam na cultura na nossa infância.
Seguindo a história, chegamos a uma segunda etapa do conto: diante de tanta rejeição, um dia, o patinho feio decidiu ir embora. Passou pela porteira da fazenda, seguiu pelo caminho o mais rápido que suas patas desajustadas conseguiam. (Inside, 2006, p.5).
Para Corso & Corso (2006) “boa parte das histórias infantis acontecem na floresta ou inclui a tarefa de atravessá-la” (p.37). Essa situação comum nos contos é caracterizada quando o personagem foge de casa para um lugar bem longe: a floresta, por exemplo, onde toda a aventura acontecerá.
Para Von Franz (2012) a fuga para lugares distantes significa a busca de aproximação do inconsciente, sendo a solidão o caminho para esse encontro. Algo que centralizava os interesses externos passa a centralizar os interesses internos, indicando ao indivíduo o caminho da transformação e da oportunidade de encontro com o verdadeiro Self.

Uma floresta é uma região onde a visibilidade é limitada, onde as pessoas se perdem, onde animais selvagens e perigos inesperados podem aparecer; como o mar, a floresta é um símbolo do inconsciente. (...) Além disso, a floresta, o mundo vegetal, é uma forma orgânica que extrai a vida diretamente da terra e transforma o solo (“...); pode-se traçar um paralelo em relação à vida do corpo e sua íntima conexão com o inconsciente.” (Franz, 2012, p. 148).

No mundo interior do Patinho, a fuga de casa representava um futuro melhor.
O Patinho Feio correu muito, até encontrar um grande pântano. Estava com frio e com medo, mas logo encontrou um lugar carregado com nuvens pesadas, por causa do outono. O Patinho Feio estava muito triste e se sentia só, pois não tinha amigos. Sempre que encontrava outras aves e animais, todos riam dele e o mandavam embora, por ele ser tão grande e feio. (Inside, 2006, p. 6)
A fuga de casa e a tentativa de se encaixar num grupo podem representar a busca do processo de adaptação do Patinho. Esta etapa da história mobiliza possíveis sentimentos de abandono e solidão.
O inverno chegou e, uma noite, o vento do norte soprou tão frio que o lago congelou. “Um dia de manhã, o patinho se descobriu preso no gelo e foi aí que ele sentiu que ia morrer (...). Felizmente, um lavrador passou por ali e libertou o Patinho, quebrando o gelo com seu cajado”. (Estés, 1999, p. 127).
Nesta passagem, a representação simbólica está relacionada com a sensação angustiante de aprisionamento. Na história, o fazendeiro se fez passar por um suposto salvador, mas logo em seguida deu o Patinho para seus netos, que riam dele e o maltratavam, acentuando ainda mais seu sentimento de raiva e rejeição e fazendo com que fugisse novamente.
A ideia do congelamento nos remete a ideia de isolamento. Da mesma forma como o Patinho que fica preso no gelo do lago, o indivíduo pode se isolar e congelar. Nesta frieza o indivíduo perde sua criatividade, para os relacionamentos, para a própria vida.
Na psicologia Junguiana um ser humano congelado significa que ele está sem sentimentos, em especial para consigo mesmo, mas também para com os outros. Embora esse seja um mecanismo de autoproteção, ele prejudica a psique-alma, porque a alma não reage ao gelo, mas ao calor.
Uma atitude gélida apagará o fogo criativo. Esse é um problema grave, mas a história do conto nos dá uma idéia. O gelo precisa ser quebrado, e a alma, retirada do congelamento. Portanto, a solução é agir. Temos a mensagem implícita: Aja como o Patinho. Siga em frente, supere tudo. Exerça sua arte. Sabe-se que o que está em movimento não se congela. Por isso, mexa-se. Vá em frente. Isso mostra o grande poder de resiliência do Patinho.
Na parte da história em que o lavrador leva o pato para casa, existe uma valiosa reflexão. A pessoa que talvez possa nos tirar do gelo, que talvez até mesmo nos liberte em termos psíquicos da nossa insensibilidade, não vai, necessariamente, ser aquela a cujo grupo pertencemos.
Quem quer que seja essa pessoa que nos tira do gelo, é ela quem nos sustenta, nos puxa do fundo, nos mostra a passagem secreta, o esconderijo, o meio de escapar. E essa chegada, quando estamos por baixo e nos sentimos numa tempestade sombria ou numa calmaria sinistra, é o que nos empurra pelo canal que leva ao próximo passo, à próxima fase do aprendizado de ganhar força no isolamento. Embora essa situação não seja algo que se deseje a ninguém por nenhum motivo, seu efeito acaba levando a uma profunda amplidão e clareza na psique.
Observe que o Patinho vai de um lugar a outro buscando um lugar onde pousar, repousar e ser aceito. Apesar de não estar plenamente desenvolvido seu instinto para detectar exatamente aonde ir, o instinto de vaguear até encontrar o que ele precisa, está em perfeito funcionamento. No entanto, Clarissa (1999) explica que, às vezes ocorre uma espécie de patologia na síndrome do Patinho Feio. Continuamos batendo nas portas erradas, mesmo depois de más experiências.

É difícil imaginar como se poderia esperar que uma pessoa soubesse quais portas são as certas se ela, para começar, nunca chegou, a saber, o que é uma porta certa. No entanto, as portas erradas são aquelas que fazem com que voltemos a nos sentir proscritos. (Estés, 1999, p.137)

Sendo assim, quando o indivíduo, com o objetivo de abrandar seu isolamento, procura amor nos lugares errados, reencenando um comportamento frustrante, está na realidade causando mal ainda maior, porque a ferida original não está sendo tratada e a cada incursão ela ganha novas feridas.
Para Estés (1999) existem diversas soluções para essas más escolhas. O indivíduo precisa conseguir parar e examinar seu próprio coração, para ver nele uma necessidade de que suas habilidades, seus dons e suas limitações fossem respeitosamente reconhecidos e aceitos. É preciso que o indivíduo seja franco diante de suas feridas, e assim consiga reconhecer o remédio adequado, fortalecendo sua vida, em vez de enfraquecê-la.
Como o Patinho Feio, o indivíduo precisa aprender a evitar situações em que possa agir certo, mas mesmo assim dar a impressão errada. O patinho, por exemplo, sabe nadar bem, mas não tem a aparência devida. Por outro lado, o indivíduo pode ter a aparência perfeita e não conseguir agir corretamente.
Isso fica explícito no conto, no momento que o patinho começa agir como um pateta, aquele que não consegue fazer nada certo. “Ele voou até os caibros do telhado, fazendo com que toda poeira caísse na manteiga e, quando ia saindo todo molhado e grudento, caiu no barril de farinha de trigo” (Estés, 1999, p.128)
 Obviamente muitas pessoas já passaram por isso. Por mais que o indivíduo tente, não consegue fazer nada certo. Tenta melhorar, em vez disso, piora. Observe que, na verdade, não era para o Patinho ter entrado naquela casa. Mas esse tipo de situação acontece quando se está desesperado. Vai-se ao lugar errado em busca da coisa errada.
Clarissa Pinkola nos alerta que embora seja útil abrir canais até mesmo para aqueles grupos aos quais não pertencemos e seja importante tentar ser gentil, é também imperioso não nos esforçarmos demais, não acreditar demais que se agirmos corretamente, se conseguirmos conter todos os impulsos e contrações da criatura selvagem, poderemos realmente passar por indivíduos educados, recatados, contidos e reprimidos.
Para Jung, cada um destes papéis que precisamos encenar para nos adequar é uma persona, uma máscara para o nosso Eu. Jung usou este termo para mostrar a maneira como uma pessoa adapta-se ao mundo; é sua máscara, sua maneira de ser socialmente. Essa máscara é necessária para nos adaptarmos à vida e sobrevivermos em sociedade.
Pode ocorrer de o indivíduo utilizar a persona de tal maneira que ele vive como gostaria de ser, e não o que realmente é. Com essa atitude podemos esquecer de nosso “ego”, nosso verdadeiro Eu. Quando alguém se identifica somente com a persona e esquece-se do ego, tende a ficar frio e vazio.
No caso da figura feminina podemos observar que:

É esse tipo de atitude, aquele tipo de desejo do ego de integrar-se a todo custo, que destrói o vínculo com a Mulher Selvagem na psique. E então, em vez de uma mulher vital, temos uma mulher simpática, a quem foram arrancadas as garras. Temos, então, uma mulher bem comportada, com boas intenções, nervosa, ofegante no anseio de ser boa. Não, é melhor, mais elegante e muito mais profundo ser o que somos e como somos, deixando que os outros também o sejam (Estés, 1999, p.138).
           
A Anima é formada no âmbito do mundo interno, ela guia a atitude interna, no mundo inconsciente, e por isso é formada diante da estrutura coletiva do inconsciente do indivíduo, aquela formada pelas categorias e possibilidades herdadas durante a evolução psíquica da história da humanidade. É nesta realidade que se encontra a característica arquetípica da Anima, por meio da qual preenchemos com nossas experiências individuais as possibilidades femininas herdadas de nossos ancestrais.
Na vida do homem, a primeira pessoa com quem experimenta a imagem de Anima é a mãe, sendo que para a mulher, o Animus é vivenciado por meio dos modelos masculinos do inconsciente da mãe, e depois do pai, a partir de dois anos. Não por acaso, os preconceitos e expectativas do homem com relação à mulher e da mulher com relação aos modelos masculinos estão diretamente relacionados com suas experiências com os pais.
Para entender melhor estes conceitos, Jung (2008) no livro “Tipos Psicológicos”, conceituou em oposição à imagem interna (Anima e Animus), uma imagem perante o mundo externo, chamada de Persona. Esta seria nossa postura perante a sociedade em geral, seja no trabalho, na faculdade ou em outros grupos sociais. Quanto mais dissociada de nosso eu interior, mais será utilizada como uma máscara, por meio da qual vestiremos qualidades que na realidade não possuímos, mas que não obstante atribuímos à nossa personalidade social. Sobre a Persona e a Anima, Jung diz que:

assim como a experiência diária nos autoriza a falar de uma personalidade externa, também nos autoriza a aceitar a existência de uma personalidade interna. Este é o modo como alguém comporta em relação aos processos psíquicos internos, é atitude interna, o caráter que apresenta ao inconsciente. Denomino persona a atitude externa, o caráter externo; e a atitude interna denomino anima, alma. (2008, p.391)

Por este motivo, Jung, em tipos psicológicos, fala da complementaridade da anima com relação à persona,
o tirano, atormentado por maus sonhos, pressentimentos sombrios e receios interiores, é figura típica. Externamente cruel, duro e inacessível, é internamente vulnerável a qualquer sombra, sujeito a qualquer humor, como se fosse o ser menos autônomo e mais maleável. (2008, p. 392).

Tentei trazer esse breve resumo destes conceitos de Jung, para que fiquemos atentos e tenhamos a compreensão, pela Psicologia Analítica, do comprometimento pelo qual o Patinho foi exposto na sua relação com sua mãe e seu pai ausente. Veja que partimos do conto e a ampliamos. Quantos adultos foram crianças que vivenciaram essa problemática de rejeição, de falta de cuidado. Sendo assim, podemos nos questionar: Como está sua relação com sua Anima/Animus e /ou Persona? Aproveito para, mais uma vez, destacar a importância da compreensão dos contos. Observe a riqueza simbólica que uma história, a priori infantil e simples, tem.  
Na terceira etapa do conto observamos a representação do enfrentamento pelo Patinho Feio. Observe que até agora no conto o Patinho é levado a arriscar a vida por um fio. Ele já se sentiu só, frio, congelado, acuado, perseguido. Já atiraram nele, já desistiram dele. Ele já se sentiu desnutrido, longe, fora de todos os limites, no limiar entre a vida e a morte, e sem saber o que iria acontecer depois.
Nessa hora vem a parte mais importante da história: chega a primavera, começa a vida nova, uma reviravolta, uma nova oportunidade de tentar. Depois do inverno, sempre vem a Primavera. Então, certa manhã, ele acordou e viu o sol brilhando, e os pássaros cantando. A primavera tinha chegado. De repente, três grandes pássaros pousaram no lago. Eles eram como os belos pássaros que o Patinho Feio tinha visto no outono. (Inside, 2006, p. 7)
Na teoria Junguiana, o número três tem fundamental importância para a interpretação dos contos de fada. Em relação ao simbolismo do número três, Von Franz (2012), destaca:
O número três é considerado masculino (todos os números ímpares o são). Na realidade, ele é o primeiro número masculino, pois o número um não é considerado como número, pois o um é a coisa única e consequentemente, não é unidade contável. Logo, o três é o primeiro número ímpar – masculino – e representa o dinamismo do número um [...]. O três, em geral, relaciona-se com o curso do movimento, e, portanto, com o tempo, pois não há tempo sem movimento (p. 104).

Conforme Von Franz (2012), para que haja movimento, é necessário que existam dois polos para que a energia circule de um para o outro. Sendo assim, surge o número três, ou seja, o terceiro pólo, com a função de unir e regularizar a tensão dos dois pólos opostos. O elemento três relaciona-se com o tempo e o movimento, razões pelas quais os contos de fadas dividem-se em três etapas, sendo a quarta etapa o desfecho da estória, um final feliz ou um final trágico. Neste sentido percebe-se o número três como representação simbólica da posição de enfrentamento de um indivíduo.
Quando os três cisnes se aproximaram dele, o Patinho Feio abaixou a cabeça envergonhado. Tinha certeza de que eles o perseguiram por causa de sua feiura. Mas quando viu seu reflexo na água clara do lago, teve uma grande surpresa. Não era mais um Patinho Feio, era um lindo cisne. Sempre fora um cisne. (Inside, 2006, p. 7)
Não podemos esquecer da importância do símbolo do pato e do cisne neste processo. Pela psicologia analítica compreende-se que a escolha desses animais não foi por acaso. O pato é um animal fronteiriço, ele vive tanto na água quanto na terra. Ele é, por isso, um mediador entre os dois mundos: consciente e inconsciente.
Já o cisne é um animal que simboliza a fidelidade, a origem da vida e dos seres humanos, alternando entre o elemento feminino fecundado ou o elemento masculino fecundador. Portanto, podemos observar que no conto o processo de individuação é o encontro com a totalidade, representada pelo cisne. Já que ele sintetiza as duas luzes, solar e lunar, se mostrando um ser andrógino. Essa é a meta do processo de individuação: o equilíbrio dessas duas luzes, dessas duas forças: masculina e feminina.
No momento final do conto, o Patinho Feio se uniu ao grupo de cisnes e finalmente pôde ser feliz. Esse momento pode caracterizar a passagem da condição de doença para a condição de saúde, como também à volta para casa. Na teoria Junguiana, a cura se dá a partir da estruturação do Self; simbolizando o encontro com o verdadeiro “eu”. “Todas as espécies de contos, de uma forma ou de outra, circundam o mesmo conteúdo – o SELF” (Franz, 2012, p. 227)

Este movimento de realização do Self é chamado por Jung de processo de individuação, sendo um caminho contínuo. Para o autor, na obra o eu e o inconsciente:

é impossível chegar a uma consciência aproximada do si-mesmo, porque por mais que ampliemos nosso campo de consciência, sempre haverá uma quantidade indeterminada e indeterminável de material inconsciente, que pertence à totalidade do si-mesmo. Este é o motivo pelo qual o si-mesmo sempre constituirá uma grandeza que nos ultrapassa. (2008, p.53)
E ainda:
Quanto mais conscientes nos tornamos de nós mesmos através do autoconhecimento, atuando consequentemente, tanto mais se reduzirá a camada do inconsciente pessoal que recobre o inconsciente coletivo. Desta forma, vai emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho, susceptível e pessoal do eu, aberta para a livre participação de um mundo mais amplo de interesses objetivos (2008, p.53).

Assim, vemos que por ser um processo, a individuação é constante, não é um lugar em que o indivíduo chega, mas um processo que passa a viver, de forma contínua, justamente porque o inconsciente é imensurável. Além disso, individuação está diretamente relacionada à diferenciação do coletivo, integrando o inconsciente pessoal, reconhecendo o inconsciente coletivo e, posteriormente, se diferenciando deste.
Vimos como o nosso herói, o Patinho Feio, depois de um árduo esforço, orienta-se e ganha firmeza e autoconhecimento, valores que ele desenvolve através de seu esforço de se tornar consciente no processo de individuação, contando sempre com seu instinto.
Observe, que, em todo conto, o Patinho está em busca da sua individualidade. É uma tendência ou sentido de desenvolvimento, que se separa de uma dada coletividade. E esse desenvolvimento da personalidade é simultaneamente um desenvolvimento da sociedade. A repressão da individualidade pela predominância de ideias de organizações coletivas significa a decadência moral da sociedade.
O conto mostra, em um nível simbólico, não só o desenvolvimento da individualidade do Patinho, mas também de uma família e uma sociedade. Ao final do conto, o Patinho se descobre um belo cisne e encontra o seu grupo e uma mãe e irmãos que o aceitam.
É importante notar que o Patinho não só descobriu seus dons, como também passou a ser aceito. Ele encontrou seus semelhantes. Na verdade, ele transformou o seu entorno e a sua família. Por isso, a descoberta de sua individualidade, também mobiliza os outros nessa descoberta.

CONCLUSÃO
A história do Patinho Feio emociona a todos, pois mostra a busca de identidade e de pertencimento, algo que em determinado momento todos já sentimos, em maior ou menor grau.
Interessante observar que o conto não é caracterizado por grandes façanhas ou pelo discurso do personagem. Nesta história não existem “vilões” e “vingança”. O ato heroico do personagem surge como modelo de força e determinação para alguém que se encontra doente. É a possibilidade de mudança de doença para a cura, ou seja, é a possibilidade de viver o tão sonhado “final feliz”.
O Patinho Feio é uma das poucas histórias a incentivar sucessivas gerações de “gente diferente” a aguentar até encontrar a sua turma. Somente a partir da tomada de consciência, pela identificação do indivíduo com o personagem do Patinho, que ele consegue fortalecer o ego e resgatar o “herói” perdido nas camadas do inconsciente.
Temos que nos dar a chance, assim como O Patinho Feio fez, de forjar uma couraça protetora chamada resiliência. Esta couraça salvadora e transformadora seria capaz de proteger o “eu”, inseguro e abandonado, transformando-o em um “eu-belo”, corajoso e que se sente amado.
A tradução dos sentimentos profundos no indivíduo através do conto permite que eles possam ser utilizados como recurso terapêutico por seu potencial de mediar os conflitos psíquicos.
É claro que essa pequena análise não alcança a profundidade do conto. Cada vez que se lê a história mais detalhes aparecem. A abordagem Junguiana representa a oportunidade de uma nova maneira de analisar e utilizar os contos. A proposta não é a de chegar a uma conclusão definitiva ou a um fechamento, mas de abrir uma porta, pelo caminho que Jung nos mostra, para o tesouro de conhecimento do ser humano que os contos podem oferecer.
A história de “O Patinho Feio” é uma prova de que, ao entender e resignificar os acontecimentos de nossas vidas, podemos transformar a lama em que afundamos, em poesia. Do campo poético para a vida, as pessoas resilientes mostram que é possível enfrentar o abandono e a carência afetiva até encontrarem sentido nas páginas de suas histórias pessoais. Ao serem nutridos com amor, histórias e ressignificações, Patinhos Feios tem a chance real de um dia se descobrirem Cisnes.
Assim deixo a mensagem para todos que se sentirem Patinhos Feios no mundo, de que se certifiquem, a partir de agora, de perder menos tempo com aquilo que os outros não lhe deram e de dedicar mais tempo à procura das pessoas com que você se sinta bem. Devemos nos levantar e sair à procura do lugar a que pertencemos. Nada se pode fazer sem um esforço, e para progredirmos precisaremos passar pela “noite escura da alma” e encarar nossos medos. Só assim é possível encontrar nosso valor interno e renascer. Desejo um final feliz para todos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 2012.


Escrito por Ivna Vieira, estudante do Curso de Formação de Psicologia Analítica, realizado pela PROFINT - Profissionais Integrados Ltda.