quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Artigo X


Psicologia Analítica e Religião: um breve esboço de leituras acerca do tema
Sheila de Araújo Barboza 

Esse texto traz uma síntese do pensamento de Jung sobre a Religião, bem como minhas breves impressões a respeito. Para tanto utilizei a leitura dos livros: “Psicologia e Religião” do próprio Jung, “C.G. Jung: Espiritualidade e Transcendência” de Brigitte Dorst e “Individuação: Adão Alienado, Cristo Reconciliado” de Ana Elizabeth C.B. Rabelo, para compor e fundamentar tal escrita.
              Jung (1987), trata o fenômeno religioso com uma perspectiva empírica,  ressaltando que observa os fenômenos e se abstém de qualquer abordagem metafísica ou filosófica. Portanto, trata-se de uma Psicologia empírica. Para ele a psique possui uma função religiosa e isto quer dizer que possuímos uma capacidade inata de produzir símbolos significativos e tocantes, sendo naturalmente dotado de um senso do sagrado. 
              O termo Religião (religere) é entendido por ele como uma acurada e conscienciosa observação do numinoso. Este último (numinoso) é relativo a divindade, independe da vontade da pessoa e pode ser uma presença invisível que produz uma modificação especial na consciência. Deste modo, “religião designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso” (Jung, 1987, p. 10). A religião está presente na natureza humana, como esclarece Rabelo (2010), na sua vida social e pessoal. 
              Jung (1987) nos diz que esta experiência foi sacralizada e enrijecida dentro de uma construção mental inflexível onde seu exercício e repetição transformaram-se em rito e instituição imutável. Acredito que é a partir desta ideia que ele diferencia a experiência original do “religare” e do numinoso com a religião enquanto instituição. Também me parece ser esse aspecto o que gera interpretação equivocada de leigos ao afirmarem que Jung trata do assunto sob um aspecto místico.
              Há um trecho neste livro que considero fundamental para a nossa prática enquanto psicólogos, pois ele diz que não devemos tomar um credo religioso e, como tal, possuidor de verdade exclusiva e eterna. Deste modo, não é isto que deve ser tomado como ponto de partida, mas a psicologia do homo religiousus, ou seja, daquele que observa certos fatores que agem sobre ele; deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso. Jung escreveu que a melhora de seus pacientes, em muitas ocasiões, ocorria através da recuperação do senso de religião, pois, como esclarece Rabelo (2010), a experiência do numinoso baseia-se na ativação de forças arquetípicas (entendo que na psicologia analítica significa que são imagens e emoções que são derivadas do inconsciente coletivo e da sua relação com o inconsciente pessoal) da própria psique. Estas forças agem dirigindo o Ego para o Self.  
 Hall apud Rabelo (2010) nos lembra que Jung preferia deixar as questões relativas ao Deus metafísico aos teólogos, pois teve o cuidado de distinguir as manifestações psicológicas das teológicas.
Jung (1987) fala que a experiência religiosa é algo de absoluto e é indiferente o que pensa o mundo a este respeito, pois aquele que a tem (a experiência) possui um tesouro que se converteu numa fonte de vida para tal pessoa.  
              No livro de Dorst (2015), autora que fala do tema Espiritualidade e Transcendência, reuniu os diversos textos e livros de Jung sobre o tema religião, espiritualidade e transcendência. A autora elucida que a espiritualidade se refere a todas as formas de religiosidade, independentemente de confissões e igrejas, e abrange uma pluralidade de fenômenos religiosos. Portanto, independe das tradições e remete às dimensões profundas da experiência que não são mais perceptíveis em muitas formas de religião. A autora Junguiana esclarece que nas obras de Jung o termo “espiritualidade” como é usada hoje em dia, não era usual na época dele. Assim, Religião e “religiosidade” eram as designações estabelecidas e com a preocupação de desenvolver uma psicologia da “experiência religiosa”, sendo esta um fenômeno psíquico.
              No que diz respeito ao termo transcendência, a autora supracitada explica que Jung cita “função transcendente” psicológica para se referir à união de conteúdos conscientes e inconscientes através de uma transição de uma mentalidade para outra.
              Deste modo, a transcendência da psique refere-se segundo Dorst (2015), às experiências espirituais de conexão com o divino, com o absoluto, que vão além da consciência cotidiana, mas que tudo o que pode ser apreendido e percebido com os sentidos e o mundo invisível do inconsciente faz parte de uma totalidade indivisível, uma realidade una chamada por Jung de unus mundus.
              Jung (1987) refere que a “religião” ou “confissão”, como ele prefere chamar, tem a finalidade de “substituir a experiência imediata por um grupo adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados” (p. 48). Neste último aspecto ele cita a Igreja, enquanto instituição religiosa, como a mantenedora do dogma e ritual que define se a experiência imediata provém de Deus ou do diabo, se deve ser repelida ou aceita. Contudo, Jung diz que tratou de diversos pacientes que vivenciaram uma experiência imediata, mas não queriam se submeter à decisão da autoridade eclesiástica e os acompanhou em crises, conflitos e medos de enlouquecer. Sobre este aspecto ele ressalta a importância do dogma e dos ritos, ao menos enquanto método de higiene, apoiando, com isso, um meio defensivo contra um grave risco.
No tocante aos símbolos religiosos, este surge nos textos citados neste trabalho muitas vezes relacionados aos sonhos. Apenas para ilustrar, me detenho nas citações de Jung (1987) acerca da simbologia do número quatro (4) ou quaternário que surge em setenta e um (71) dos quatrocentos (400) sonhos de um de seus clientes. O número quatro (4) alude a uma ideia ligada à tetraktys dos pitagóricos. Tal símbolo possui caráter numinoso, “sacro”. Jung elucida que para estudiosos das ciências naturais e filósofos da natureza de muitos séculos atrás discutiam o problema da quadratura do círculo que constituía uma projeção psicológica de coisas antigas e inconscientes. Mas sabia-se que o círculo significava a divindade; a esfera continha o número quatro que simbolizava as partes, as qualidades e os aspectos do Uno.
No tocante a interpretação de sonhos e símbolos é necessária certa inteligência, como alerta Dorst (2015), pois ela exige um crescente conhecimento da individualidade do sonhador bem como um autoconhecimento sempre maior por parte do intérprete. Entendo que num contexto de psicoterapia, esse conhecimento deve existir tanto por parte do cliente quanto do psicoterapeuta, mas sobre este último é reforçado a premissa de que o profissional deve investir muito na sua terapia pessoal.
Quanto à essência do símbolo, Rabelo (2010) cita que Jung se referia a uma união da verdade racional com a irracional, pois ele deve conter ambos os lados. Enriquece este entendimento com a citação de Mircea Eliade quando ele diz que o símbolo revela algo mais profundo e enquanto elemento religioso toca nas estruturas do mistério da vida que é sentido como a dimensão sacramental da existência humana.
Jung (1987) diz que tanto ele como outros colegas viram diversos casos onde os sonhos e as visões traziam este simbolismo, cujo método comparativo com outros povos e épocas, mostra que a quaternidade é uma representação de um Deus que se manifesta na sua criação. Ele conclui que o símbolo produzido espontaneamente nos sonhos dos homens modernos indica algo semelhante – o Deus interior. Diante da longa experiência dele e de colegas com tais observações, ele diz que não é mais possível pôr em dúvida tal existência. Neste caso ele fala da existência de uma imagem arquetípica de Deus e “é tudo o que se pode dizer, psicologicamente, acerca de Deus” (p.64).
              Há outros aspectos discutidos com profundidade por Jung no seu livro “Psicologia e Religião” sobre o simbolismo da quaternidade, bem como acerca de outros símbolos associados tais como a Trindade, a relação do quarto aspecto com a representação do demônio, da terra, da mulher; cada um com base em estudos de filósofos medievais, outros em alquimistas. Contudo, não pretendo esgotar tais aspectos neste texto.
O que também busco ressaltar aqui é que Jung nos chama a atenção para conhecermos alguns aspectos de nossa Sombra. Rabelo (2010) explica que na psicologia analítica se tem o entendimento de que esta é inerente à psique, mas pertence ao universo inconsciente. Porém, mesmo sendo reprimida ou negligenciada, não pode ser eliminada. A Sombra abarca qualidades que rejeitamos e que permanecem dentro de nós como uma segunda personalidade. A autora diz:
“Quando a sombra é projetada, o indivíduo não percebe as sinistras intenções nela existentes, como o inimigo velado da dúvida interior ou as baixas motivações da voracidade e do auto engrandecimento que têm estado por detrás de inúmeras atrocidades” (p. 64). É interessante notar que a Sombra pode ultrapassar os limites do pessoal e alongar-se na ‘Sombra Coletiva’. Isto pode acontecer quando homens ditos civilizados, reunidos em massa, acabam por se portar dentro de padrões inferiores de comportamento” (p. 30).
              Quanto a este assunto, Jung me parece muito atual em relação à realidade que vivemos, embora se referisse a outra situação e época (fim da década de 30 do século XX). Para melhor ilustrar coloco abaixo os trechos do livro “Psicologia e Religião”:
 “Observe-se a incrível crueldade de nosso mundo supostamente civilizado – tudo isto tem sua origem na essência humana e em sua situação espiritual! Observe-se os meios diabólicos de destruição! Foram inventados por gentlemans inofensivos, cidadãos pacatos e respeitados (...). Mas, como cada um está cegamente convencido de não ser mais do que uma simples consciência, muito humilde e sem importância, que cumpre suas obrigações, ganhando seu modesto sustento, ninguém percebe que toda a massa racionalmente organizada a que se dá o nome de Estado ou Nação é impelida por um poder aparentemente impessoal, invisível, mas terrível, cuja ação ninguém pode deter. Em geral, tenta-se explicar esse poder terrível pelo medo diante da nação vizinha, que se supõe estar possuída por um demônio maligno (...). Projeta seu próprio estado no vizinho. Torna-se então um dever sagrado possuir canhões e os gases mais venenosos” (p. 54).                            
              E não é isso que vivemos nos dias atuais? O homem moderno que não vai em busca do “si-mesmo” e ainda lança partes do seu inconsciente correspondente à “Sombra” projetadas no mundo externo, muitas vezes potencializando ações maléficas e destrutivas atribuindo às outras Nações ou Estados o mal que na realidade está encrustado em cada um que apenas projeta?
              Alinhando essa análise com a citação de Dorst (2015) sobre textos de Jung nas obras completas, destaco:
“É preciso ocupar-se consigo mesmo senão não há como tornar-se alguém, senão nem é possível desenvolver-se. (...) Quanto mais alguém se torna consciente de si mesmo mediante o autoconhecimento e o agir correspondente, tanto mais desaparece aquela camada do inconsciente pessoal acumulada sobre o inconsciente coletivo. (...) Essa consciência ampliada não é mais aquele emaranhado sensível e egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições pessoais, que precisa ser compensado ou então também corrigido por tendências contrárias pessoais e inconscientes, mas é uma função relacional vinculada ao objeto, ao mundo, a qual transfere o indivíduo para dentro de uma comunhão incondicional, compromissiva e indissolúvel com o mundo” (p. 32).    
              A autora, Dorst (2015), sintetiza todo este entendimento dizendo que o indivíduo está ameaçado por perigos mortais que ele mesmo criou e que lhe fogem ao controle. Daí compara a humanidade a um indivíduo em que, na condição atual, está sendo arrastada por forças inconscientes. Considera muito problemático manter a ideia de que “os nossos adversários” estão completamente errados do ponto de vista moral e filosófico, esperando que os mesmos se arrependam e reconheçam seus erros em vez de fazermos (enquanto ocidente) um sério esforço para reconhecermos nossas sombras e suas maquinações traiçoeiras. Arremata de modo bem atual aos últimos acontecimentos no mundo[i][1], de que na prática fazemos o mesmo que eles, só com a desvantagem de não vermos nem querermos ver o que praticamos sob o manto de nossas boas maneiras.
Como nos diz Rabelo (2010), quando a pessoa alcança a busca efetiva do Self (si-mesmo) e entra em contato com a totalidade, ele passa a carregar consigo também um aspecto pior, defeitos reconhecidos e que não são possíveis de se desligar destes, mas que justamente por isso faz a pessoa preservar um senso ético. Deste modo, o objetivo não é alcançar a perfeição, pois totalidade psíquica quer dizer certo equilíbrio alcançado entre consciente e inconsciente, produzindo-se uma situação de certa paz e plenitude. Todos os autores colocam a palavra “certo ou certa” no sentido de “não muito definido ou exato” porque essa totalidade (Self) é sempre um processo e não um resultado acabado, definitivo. Por isso, iniciei o parágrafo com o termo “alcança a busca”, pois é isso o que importa.
Enfim, é necessário ler mais algumas vezes os textos de Jung para compreender melhor o assunto. Esse texto só pinça alguns aspectos citados por ele e outros autores que se baseiam nele. Trago uma tímida explanação sobre o meu olhar e entendimento acerca deste tema. Considero imprudente tecer opiniões amplas e firmes sem uma leitura mais aprofundada. Por isso recomendo aos leitores (me incluo nessa recomendação) deste simplório texto a se entregarem ao estudo do tema em Jung, na sua vasta obra.

REFREÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DORST, B. Espiritualidade e transcendência / C.G. Jung; seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 

JUNG, C.G. Psicologia e Religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987 (Obras Completas de C.G. Jung; v.11/1).

RABELO, A.E.C.B. Individuação: Adão alienado, Cristo reconciliado. São Paulo: Iglu, 2010.


[1] A edição desse livro é de 2015, mas é naturalmente anterior ao fato ocorrido na sexta-feira 13 de novembro do corrente ano em Paris, mas não sei ao certo se anterior ou posterior ao ocorrido em abril deste mesmo ano em Garissa, Quênia. Neste último, terroristas que tomaram o campus, na fronteira com a Somália, integravam o Al-Shabaab, grupo somali ligado à Al-Qaeda e combatido pelo Quênia desde o fim de 2011. Consideravam a universidade “um território muçulmano”, que precisava se libertar “dos infiéis”. Daí a ação sanguinária. Os extremistas acabaram assassinados durante o cerco policial. Entre os 148 mortos, contavam-se 142 estudantes (fonte: http://operamundi.uol.com.br/blog/samuel/perguntas/por-que-minha-fraternidade-e-tao-seletiva/). 





quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Artigo IX


PSICOLOGIA E RELIGIÃO
Ivna Ariane Santos Vieira


“A religião constitui, sem dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana.” (Jung, 2012, p.17).

INTRODUÇÃO

Atualmente vivemos uma grande incerteza no tocante aos assuntos religiosos e com isso, observa-se que o homem moderno sente, cada vez mais, falta de apoio nas confissões religiosas tradicionais. A perspectiva religiosa desenvolvida por Jung permite-nos uma compreensão mais profunda dos valores tradicionais e confere um novo sentido às formas cristalizadas e esclerosadas.
A problemática religiosa ocupou um lugar central na sua obra. Quase todos os escritos de Jung, especialmente os dos últimos anos, tratam do fenômeno religioso. Na verdade, o que ele entende por religião não se vincula a determinadas confissões. Trata-se, de uma observação acurada e conscienciosa daquilo que Rudolf Otto chamou de numinosum.
            É importante entender que essa definição vale para todas as formas de religião, inclusive para as primitivas, e corresponde à atitude respeitosa e tolerante de Jung em relação às religiões não cristãs.
            Jung recebeu muitas críticas por seu envolvimento com a religião. Isso porque as pessoas, na verdade, não entendiam o seu trabalho e o criticavam sem nem mesmo conhecer sua teoria.
            Seu maior mérito foi o de haver reconhecido como conteúdos arquétipos da alma humana, as representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião.
             








O CONCEITO DE RELIGIÃO EM JUNG


O fascínio que o tema religião exercia em Jung era tão grande, que boa parte de suas obras podem ser consideradas uma tentativa de se compreender o fenômeno religioso.
O psicólogo suíço desde muito cedo foi confrontado com o fenômeno religioso, desde a influência protestante de seu pai até as inúmeras experiências com o transcendente.
Jung tenta compreender os fenômenos religiosos pelo viés da psicologia. Sua tarefa foi mostrar o que a psicologia, ou melhor, o ramo da psicologia médica que ele representa, tem a ver com religião ou pode dizer sobre a mesma.

Subtende-se que todo o tipo de psicologia que se ocupa da estrutura psicológica da personalidade humana deve pelo menos constatar que a religião, além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, é também um assunto importante para grande número de indivíduos. (Jung, 2012, p.17).

Apenas para citar algumas obras do autor que abordam diretamente a relação entre psicologia e religião, temos ao longo de suas Obras Completas: Psicologia e Religião, Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade, O Símbolo da Transformação na Missa, Resposta à Jó, Psicologia da Religião Oriental, sem contar as outras obras como Aion, Estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo, e o prefácio do I Ching, de Richard Wilhelm.
Na obra Psicologia e Religião, Jung trata deste tema demonstrando a presença dos arquétipos nos símbolos religiosos, e a consequência psicológica destes sobre o modelo que ele desenvolve. Jung se utiliza de uma série de sonhos de um homem moderno, para revelar-nos a função exercida pela psique inconsciente.
Em Interpretações Psicológicas do Dogma da Trindade, Jung analisa este importante dogma cristão e critica o fato de a Trindade não ser um símbolo adequado ao processo de individuação. Para ele, os três elementos (Pai, Filho e o Espírito Santo) não comporta de forma satisfatória o todo da psique. A Trindade exclui o quarto elemento, ou seja, os aspectos materiais e femininos, renegando-os a sombra.
Na obra Símbolo de Transformação da Missa, o autor destaca essa cerimônia religiosa como um elemento de forte relevância psicológica, e afirma que a missa pode ser classificada como um rito de processo de individuação.
Em Psicologia e Religião Oriental, logo de início, coloca a diferença tipológica, caracterizando o oriental como tipo introvertido e o ocidental como tipo extrovertido. Essa diferença é o principal fator que marca a diversidade da experiência religiosa e da compreensão da religião nesses dois contextos de mundo.
Na obra de Jung também estão presentes textos relacionados ao livro tibetano da grande libertação, notas sobre a Ioga e o Ocidente, considerações em torno da Psicologia da Meditação Oriental e o prefácio de I Ching: O livro das transformações, de Richard Wilhelm.
O auge das considerações sobre religião nos estudos do autor é o texto Resposta a Jó. Nos textos anteriores o foco era demonstrar que a psicologia e religião não eram inimigas e que possuíam pontos em comum. Em Resposta a Jó, a perspectiva parece ser um tanto diferente, pois vemos uma especulação declarada no campo da teologia. Jung, seguindo a trilha de Jó, tenta enfrentar o problema do bem e do mal vividos amargamente por esse personagem bíblico.
Este breve panorama de suas obras, que abordam diretamente a relação entre psicologia e religião, serve apenas para termos uma ideia da grandiosidade do estudo deste autor. Não é objetivo deste trabalho aprofundar a discussão destas obras. O objetivo deste texto é falar, brevemente, sobre o que é religião para Jung, e é na introdução da obra Psicologia e Religião que encontramos a melhor definição deste conceito.
O livro Psicologia e Religião (Ocidental e Oriental) é o volume 11/1 das obras completas. Este livro é a transcrição de três conferências sobre o tema da psicologia da religião dadas na Universidade de Yale.

Religião é – como diz o vocábulo latino religere - uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de “numinoso”, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causados por ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. De qualquer modo, tal como o consensus gentium, a doutrina religiosa mostra-nos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo. O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é, pelo menos, a regra universal. (2012, p.19)

E na continuação, Jung afirma que:
Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego ordinário do termo: religio, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados (2012, p. 20).
Logo em seguida, Jung afirma querer deixar bem claro que com o termo “religião” ele não se refere a uma determinada profissão de fé religiosa. Ele inclusive cita Cicero, em nota de rodapé, “religião é aquilo que nos incute zelo e um sentimento de reverência por uma certa natureza de ordem superior que chamamos divina” (p.20).
Para Jung, a verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso, e, por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. Assim, podemos dizer, portanto, que o termo “religião” designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso.
O numem ou numinoso, segundo Otto, é “ente sobrenatural, do qual ainda não há noção mais precisa” (Otto, 2007, p.28). É válido notar que, de acordo com essa definição, duas expressões - ainda e não há - mantêm a idéia paradoxal da dificuldade de conceituar de fato e a possibilidade de se conhecer o ente conceituado. As duas expressões juntas indicam que a experiência está ali, pode ser percebida, pode ser até conceituada, mas existe uma realidade além, imensurável, imprevisível.
Otto destaca a possibilidade de uma experiência religiosa, de algo que se encontra em estado latente, que pode ou não se manifestar, de uma religião inerente ao ser humano, presente em estado de possibilidade. Para Otto “o sentimento do numinoso é desse tipo. Ele eclode do fundo d’alma, da mais profunda, base da psique” (2007, p.151).
Observe então o destaque da religião como uma característica da psique. Jung defende que qualquer que seja a natureza da religião, não resta a menor dúvida de que seu aspecto psíquico, empiricamente constatável, reside nessas manifestações do inconsciente. Em determinado trecho de Psicologia e Religião, Jung faz uma consideração sobre a questão dos sonhos e pontua que se o resultado da investigação favorece a hipótese do inconsciente, os sonhos deverão ser tidos como possíveis fontes de informações das tendências religiosas do inconsciente.
Essa semelhança entre a experiência pelo ego do Self e a experiência de conteúdos numinosos tem implicações fundamentais na teoria de Jung, que se espelham no conceito de individuação. Tal conceito representa a meta, o fim último da personalidade, em forma de processo: tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais última e incomparável, significa também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo (Self)
A própria meta da vida é, pois, considerada como uma aproximação entre ego e self; nesse sentido, a meta envolve necessariamente uma experiência numinosa, e, portanto, religiosa. Um aproximar do ego em direção ao centro da personalidade total, que se manifesta como imagens da divindade. Esta meta só é possível através do funcionamento da função religiosa, uma fidelidade, uma entrega ou uma submissão a um fator superior ou a um princípio convincente em outros termos, através da manutenção consciente de uma atitude de religio.
Nise da Silveira (1983) reforça a afirmação de que Jung considera todas as religiões válidas na medida em que recolhem e conservam as imagens simbólicas oriundas das profundezas do inconsciente e as elaboram em seus dogmas, promovendo assim conexões com as estruturas básicas da vida psíquica. A vivência religiosa implica uma atitude do indivíduo de abertura ao inconsciente e seu mundo simbólico, ressaltada por Jung como uma postura necessária.
Não foi alvo deste texto, mas gostaria de explicar, caso não seja possível inferir, que Jung deu pouca atenção ao Deus transcendente ao universo (exterior) e prendeu-se apenas à imanência (presença interior), cuja tendência foi se tornar polarizada nos termos das crenças metafísicas dos teólogos contra a visão de Jung sobre a realidade de Deus na psique.
Acho que é importante considerarmos essa observação, já que Jung usou a palavra “Deus” mais de seis mil vezes em seus escritos. Um dos seus conceitos fundamentais diz que é apenas através da psique que podemos estabelecer que Deus age sobre nós. Jung afirma que há um arquétipo da completude no inconsciente coletivo da psique que se manifesta espontaneamente através dos sonhos, etc., e parece ocupar uma posição central que “o faz aproximar-se do Deus-imagem”.
Observa-se que Jung atribui à necessidade religiosa uma ânsia humana por completude no inconsciente. Essas imagens alçam-se nas profundezas da natureza psíquica, independente da mente consciente. Assim, quando Jung usa a palavra Deus, refere-se ao Deus-imagem na psique, o que não prova a existência física de Deus. Ou seja, um símbolo não é realidade física, embora seja uma realidade psíquica.
Rabelo ressalta a posição de Jung sobre a experiência do Divino, quando diz:
incorreria em um erro lamentável quem considerasse minhas observações como uma espécie de demonstração da existência de Deus. Elas demonstram somente a existência de uma imagem arquetípica de Deus (...) como a vivência deste arquétipo tem muitas vezes, e inclusive, em alto grau, a qualidade do numinoso, cabe-lhe a categoria de experiência religiosa. (2010, p. 93).
As concepções religiosas eram de tamanha importância para Jung, que fundamentado no seu trabalho de psicoterapeuta, menciona a importância da religiosidade para o ser humano, ao afirmar:

Entre todos os meus doentes mentais na segunda metade da vida, isto é, tendo mais de trinta anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por ter perdido aquilo que uma religião viva sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum curou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto, está claro, não depende absolutamente de adesão a um credo particular ou de tornar-se membro de uma igreja (Jung apud Silveira, 1983, p. 142).

            Silveira (1983), chama a atenção para o fato de que Jung reconhece todos os deuses possíveis e imagináveis, sob a condição única de que sejam ou tenham sido atuantes no psiquismo do homem.
Jung alerta que o psicólogo, que se coloca numa posição puramente científica, não deve considerar a pretensão de todo credo religioso: a de ser o possuidor da verdade exclusiva e eterna. Uma vez que este profissional trata da experiência religiosa primordial, deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso, abstraindo o que as confissões fizeram com ele.

Como sou médico e especialista em doenças nervosas e mentais, não tomo como ponto de partida qualquer credo religioso, mas sim a psicologia do homo religiosus, do homem que considera e observa cuidadosamente certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral (Jung, 2012, p.22).

Por fim, gostaria de trazer duas passagens do capítulo três do livro Psicologia e Religião, as quais resumem bem o pensamento e o esforço de Jung para promover o entendimento da religião. Sem contar que considero duas passagens lindas nas quais Jung se mostra extremamente poético.
Na primeira delas Jung afirma não esperar que nenhum cristão crente, nem os beati possidentes (felizes donos) da fé, sigam o curso de suas “ideias absurdas”.  Ele afirma dirigir-se para as numerosas pessoas para as quais a luz se apagou, o mistério submergiu e Deus morreu. Segundo ele, para a maioria dessas pessoas não há um retorno possível e nem se sabe se o retorno seria o melhor. Ele afirma que para compreender as coisas religiosas, no momento presente, o caminho seria o da psicologia. E ele prossegue explicando:

Daí meu empenho de dissolver as formas de pensar historicamente petrificadas e transformá-las em concepções da experiência imediata. É certamente, uma empresa difícil reencontrar o ponto que liga a concepção do dogma com a experiência imediata dos arquétipos psicológicos, mas o estudo dos símbolos naturais do inconsciente nos oferece os materiais necessários. (2012, p.111)

E mais a frente ele coloca a razão pela qual ele leva a sério os símbolos criados pelo inconsciente. Para Jung os símbolos são os únicos capazes de convencer o espírito crítico do homem moderno. Eles convencem subjetivamente, por serem imponentes, convincentes.
O que cura a neurose deve ser tão convincente quanto à própria neurose, e como esta é demasiado real, a experiência benéfica deve ser dotada de uma realidade equivalente. (...) Ninguém pode saber o que são as coisas derradeiras e essenciais. Por isso, devemos toma-las tais como sentimos. E se uma experiência desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais plena ou mais significativa para nós, como para aqueles que amamos, então poderemos dizer com toda a tranquilidade: “Foi uma graça de Deus”. (2012, p.131).

E finaliza:
Com isto, não demonstramos qualquer verdade sobre-humana, e devemos reconhecer com toda a humildade que a experiência religiosa extra ecclesiam (fora da igreja é subjetiva e se acha sujeita ao perigo de erros incontáveis. A aventura espiritual de nosso tempo consiste na entrega da consciência humana ao indeterminado e indeterminável, embora nos pareça, e não sem motivos, que o ilimitado também é regido por aquelas leis anímicas que o homem não imaginou, e cujo conhecimento adquiriu pela “gnose” no simbolismo do dogma cristão, e contra o qual só os tolos e imprudentes se rebelam; nunca, porém, os amantes da alma. (2012, p.131).
CONSIDERAÇÕES FINAIS


            Observa-se, pela breve análise, que Jung não foi teólogo nem metafísico, mas examinou a importância simbólica e psicológica da experiência religiosa em grande profundidade, sem fazer nenhuma afirmação sobre a verdade objetiva ou sobre a falsidade de qualquer credo. Jung, na verdade, analisou as implicações que surgem na esfera psíquica pessoal e coletiva através do estudo dos símbolos.
O conjunto dos fatos analisados, por si, já demonstram a importância da religiosidade na construção e na organização da sociedade. É possível perceber que Jung estabelece uma hermenêutica psicológica para a religião, inserindo-a como possibilidade de estudo quando abordada como uma experiência profunda e pessoal.
Acredito ser fundamental compreender que Jung reconheceu como verdadeira a necessidade espiritual que anseia pela completude, e aceitou imagens de completude sendo oferecidas pelo inconsciente, saindo das profundezas de sua natureza psíquica, independente da mente consciente. Energias espirituais do inconsciente servem ao que ele chama de processo de individuação, no qual o Self real de uma pessoa a faz esforçar-se para se tornar o que pretende ser.
Assim, em outras palavras, entende-se que tocar o aspecto religioso da psique é o próprio objetivo da terapia. A aproximação ao numinoso é a verdadeira terapia, visto que se nos atemos às experiências numinosas, somos libertados da maldição da patologia. Isto porque as imagens arquetípicas trazem em si, por suas características, um fator organizador e curador – dado também pela questão do sentido e significado inerentes a elas.
Portanto, essencialmente, o objetivo da psicoterapia Junguiana constitui-se em um confronto com os materiais inconscientes, a fim de que haja uma assimilação destes pela consciência. Tal confronto com o “substrato escuro do eu” pode chegar a um ponto em que imagens de cunho arquetípico emergem, com toda a carga numinosa que lhes é característica, o que é por definição uma experiência religiosa.
Logo, a questão religiosa não pode ser ignorada por uma teoria psicológica e muito menos distorcida. Precisamos ter o olhar atento e compreender o fenômeno. A crítica leiga que tenta colocar Jung como mago, místico, filósofo, teológico, irreal e a-científico faz, na verdade, uma crítica preconceituosa. Jung estudou as religiões de uma maneira científica. Ele não fazia religião dentro da ciência psicológica. Ele levou a ciência para dentro da religião. Muito importante destacar isso. Jung foi estudar como a religião funcionava e funciona para os indivíduos. Ele foi ver qual a importância disso para o sujeito. Mas ele não trouxe a religião para dentro da terapia. O que Jung fez foi levar a ciência em busca de conhecimentos a respeito da religião.





REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Psicologia e religião Ocidental e Oriental. Volume 11/1. 11°ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
OTTO, Rudolf. O Sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Trad. de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal EST, 2007.

RABELO, Ana Elisabeth Castelo Branco. Individuação: Adão alienado, Cristo Reconciliado. São Paulo, Ed. Iglu, 2010.
SILVEIRA, Nice da. Jung: vida e obra. 8° ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.