sábado, 16 de abril de 2016

Artigo XIII


A sexualidade infantil segundo Jung: divergências com a psicanálise primeva

Ana Paula Chaplin


Quando Jung rompeu com Freud, ele estava negando a etiologia sexual das neuroses, como alguns críticos não tão bem informados falam? Jung se preocupou somente com o desenvolvimento do adulto desconsiderando o desenvolvimento da criança? Qual a real divergência na concepção junguiana de desenvolvimento da sexualidade em relação a concepção freudiana? Essas perguntas ainda são atuais devido aos maus entendidos ou boca a boca que imperam infelizmente também nas ciências humanas, local onde o senso crítico deveria substituir o senso comum, porém muitas vezes não é isso o que acorre. No livro de Jung, O Desenvolvimento da Personalidade, há alguns artigos e ensaios em que são apresentadas as principais considerações sobre a infância, educação de crianças e influência da personalidade dos pais no desenvolvimento dos filhos, onde o que se leva em conta é principalmente a qualidade do relacionamento psíquico entre os pais como fator importante no desenvolvimento psíquico infantil, e também o papel do PENSAR, e de sua elaboração no desenvolvimento dos rudimentos e dos conflitos, entre eles os de ordem sexual, com vista ao aperfeiçoamento crescente das funções superiores da inteligência.
Sem dúvida a sexualidade não é o único fator nesse desenvolvimento, mas é sim levada em consideração por Jung, e não é pouca a importância que ele dá a sexualidade, é uma importância constitucional a qual inúmeras observações já comprovaram e que seria uma irresponsabilidade sua negação. Porém, este não é o único fator de desenvolvimento humano, e nesse livro ele deixa claro uma posição intrínseca sua, que é considerada até mesmo pós-moderna por estudiosos das ciências humanas, qual seja, a de que é da natureza dessa ciência poder apresentar apenas pontos de vistas heurísticos, e não explicativos e redutores como uma perspectiva positivista gostaria de um dia alcançar. Sua grande crítica a Freud é ter reduzido a etiologia das neuroses a uma única causa explicativa, portanto, única e exclusivamente a sexualidade.

Na introdução de seu livro há o apontamento de alguns dos pontos de vista que deveriam servir para formar o grande quebra cabeça que compõe a psique humana, os estudos acerca da sexualidade e sua perspectiva hedonista estão entre eles, juntamente com o estudo baseado no ponto de vista da busca do poder, do qual Adler é um grande proponente, embora não seja tão estudado no Brasil; o ponto de vista do desenvolvimento lógico e cognitivo, que apresenta outras possibilidades de entendimento e intervenção e o qual Jung não exclui, muito pelo contrário, ele dá destaque ao desenvolvimento do pensamento dentro de sua abordagem, e o desenvolvimento das concepções religiosas iniciais a respeito da natureza de Deus, do infinito, do eterno, que sem dúvida são perguntas que uma vez ativadas ajudam no desenvolvimento do pensamento, e que mesmo poderiam estar na base de futuras crises existenciais, principalmente se dentro de uma educação que reprimiria esses questionamentos.
Jung não negligenciou a infância ao dar atenção ao comportamento adulto, e mesmo concebia que os desenvolvimentos infantis e a mente infantil existiam dentro do adulto como gérmen de futuras disposições polivalentes possíveis e ainda não desenvolvidas e acessadas. Se formos focar na diferença entre Jung e Freud no quesito sexualidade, há uma outra diferença que se acentua além da abordagem heurística-abrangente de Jung em contraste com a abordagem redutiva-causal de Freud, Jung dizia que o componente sexual infantil não tende para um alvo como na sexualidade adulta, e que casos em que a sexualidade infantil buscava uma prática, como na masturbação, eram já devido a um desenvolvimento anormal das concepções intelectuais frente a qualquer conflito que tenha se apresentado.
Os conflitos nessa ordem seriam resolvidos através da elaboração e do desenvolvimento do pensar, e nesse sentido, Jung chamou atenção para a vulnerabilidade particular, mas não exclusiva, das crianças bem dotadas na apresentação de precocidades neuróticas, isso porque ao manifestarem sua curiosidade sexual ou de outras ordens precocemente, podem ter suas inquietações barradas por uma pedagogia despreparada e repressora. Jung fez críticas ao modelo pedagógico de seu tempo que requeria mudanças, como ainda hoje se faz necessário, e os principais causadores de neuroses nesse sentido apontados por Jung seriam a má educação dos pais e professores a respeito do tema. A nuance diferencial é que ao contrário do que era concebido na psicanálise de Freud, em que a inteligência surgia a partir de uma frustração dos desejos na sua busca hedonista, para Jung a sexualidade e inteligência provêm de uma mesma matriz polivalente, e o pensamento se desenvolve junto com essa disposição constitucional rudimentar, não para atingir o objeto de desejo sexual, mas para realizar-se em sua finalidade intrínseca. Assim, a criança não seria uma perversa polimorfa, mas teria disposições polivalentes, não somente de natureza ou com função sexual.
Curiosamente então, a psicologia de Jung foca sim o processo de desenvolvimento infantil das funções superiores através da elaboração de conflitos que surgem e desafiam a totalidade, e suas reflexões também tem impacto não só na clínica, mas na esfera pedagógica, escolar ou de orientação dos pais e professores, sendo essas as notícias que deveriam estar correndo boca a boca.
Segundo Jung "é por meio da formação de concepções que a libido encontra o caminho livre e apto para o desenvolvimento, de modo que lhe seja assegurada sua atuação permanente" (JUNG, p. 6). Ao contrário do adulto que não aceita um desenvolvimento e modificação de concepções intelectuais para servir de sucedâneo para o objeto sexual, é exatamente isso o que acontece com a criança quando se lhe aduba a inteligência e curiosidade, o componente sexual rudimentar entra na dinâmica e ajuda a desenvolver o intelecto tendo na verdade este fim (bem... aqui faço uma ressalva, este livro é de 1910, e embora esteja correto, os desenvolvimentos posteriores da psicologia analítica fariam com que fosse mais adequado dizer que estes desenvolvimentos tem como fim a alma total, que inclui outros fatores importantes além do pensamento lógico e simbólico, como o sentimento, percepções).
Nisso a psicologia analítica e psicanálise primeva não estavam de comum acordo, embora seja claro que a psicanálise teve um desenvolvimento desde a ruptura de Freud e Jung que a modificou. Porém, nessa época, para a psicologia analítica o gérmen intelectual já estaria lá enquanto rudimento, e deveria ser satisfeito em suas necessidades, enquanto que na psicanálise o intelecto só surgiria e se desenvolveria em virtude da frustração do objeto alvo de seu desejo, que levaria então a alucinação do objeto e criação assim do espaço mental.
Uma neurose em Jung seria tratada por meio da formação de concepções e ferramentas intelectuais na relação com os educadores, e "mesmo aceitando que também a sexualidade adulta se desenvolve a partir desses gérmens polivalentes, não se pode concluir de modo algum que a sexualidade infantil primordial seja pura e simplesmente sexualidade" (JUNG, p.7).

TABELA COM PRINCIPAIS DIFERENÇAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO INFANTIL EM JUNG E FREUD

Diferenças acerca do desenvolvimento infantil e etiologia das neuroses
Jung
Freud
Abordagem
Heurística-inclusiva-abrangente (aceita outros pontos de vista)
Redutiva-causal-fechada
Finalidade da sexualidade
A sexualidade não tem a mesma função de obtenção do objeto de desejo como no adulto. Os instintos têm como finalidade o desenvolvimento da alma. As frustrações e possíveis neuroses advém da falta de concepções e meios adequados que satisfaçam as curiosidades despertadas pelos afetos instintivos
A sexualidade da criança tende para o objeto alvo, e se frustra ao não realizar seu desejo.
Origem da Inteligência
O intelecto está em estado rudimentar desde o início junto com a sexualidade e outros instintos
O intelecto se forma como uma consequência da frustração hedonista
Teoria
Teoria da libido (energia que alimenta e se transforma em outros instintos, não só o sexual)
Teoria sexual
Natureza da criança
A criança tem disposições polivalentes
A criança é um perverso polimorfo


Bibliografia
C. G. JUNG. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 1998, vol. XVII.



terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Artigo XII


SONHOS E ANALOGIA SIMBÓLICA COM AS FASES DA OPUS MAGNA
                                                                                                    Sheila de Araújo Barboza
           
            De acordo com Edinger (2004), Jung percebeu que a Psicologia Analítica coincidia com a alquimia, pois todo o procedimento alquímico representa o processo de individuação. O que posso dizer sinteticamente é que este último aspecto se refere ao “indivíduo em ação” em busca do Si-mesmo verdadeiro, ou também chamado de Self. Na linguagem da alquimia pode ser chamado também de Pedra Filosofal.
            Contudo, para acessar esse “tesouro”, que é o Self ou Pedra Filosofal, é necessário que se descubra o material adequado que na alquimia é chamado de prima matéria. Esta deve ser submetida a uma série de operações, mas apenas 7 (sete), dentre outras existentes, ganham destaque no livro citado. São elas: calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio, coniunctio. Segundo Edinger (2004), praticamente todo o conjunto de imagens alquímicas podem ser organizadas em torno dessas operações.
            
            O autor esclarece uma questão que eu interrogava que diz respeito à manutenção dos nomes das operações alquímicas em latim. Assim, a justificativa é de que objetiva diferenciar os processos psicológicos dos procedimentos químicos. Logo, no princípio do contato com tais palavras em latim, eu tinha a impressão de que a sua manutenção reservava uma representação simbólica e arcaica do termo. É como se carregasse mais do que a própria palavra em seu sentido estrito.   
            Creio que obtive tal confirmação quando o autor diz:
Cada uma dessas operações é o centro de um elaborado sistema de símbolos. Esses símbolos centrais da transformação compõem o principal conteúdo de todos os produtos culturais. Elas fornecem as categorias básicas para a compreensão da vida da psique, ilustrando praticamente toda a gama de experiências que constituem a individuação (p.34).
            A relação da alquimia com esse processo da psique é muitas vezes tão semelhante que preciso retomar alguns aspectos discutidos no livro. Jung, citado por Edinger (2004), demonstrou que o simbolismo alquímico é, em grande parte, produto da psique inconsciente. Porém, os alquimistas desconheciam isso e, ao explorar os materiais com experimentos químicos, na realidade estavam ali projetando[1] seu inconsciente.
            O processo de transformação na alquimia, através de suas imagens, concretiza a transformação pela qual passamos na psicoterapia. A compreensão e relevância das imagens da alquimia só ocorre para aqueles que já tiveram uma experiência pessoal do inconsciente. É a partir daí que é possível sua equivalência. Creio que os meus próprios sonhos e de alguns clientes coincidem com essa equivalência dos procedimentos da alquimia. Isso é possível quando estamos num nível mais profundo de contato com o inconsciente e vivendo um franco processo de transformação, sendo este último fruto de um trabalho, muitas vezes longo, de reconhecimento de nossas sombras, persona e animus/anima[2], dando mais força para a busca do Self no processo psicoterápico, tanto do cliente quanto do psicoterapeuta. Nesse ponto, reafirmo a importância de o psicoterapeuta persistir no seu processo pessoal de psicoterapia para lidar de modo honesto com os conteúdos dos seus clientes. Falo aqui de honestidade porque o que diferencia um psicoterapeuta que não “se trabalha” de um charlatão? O fato de ter apenas um diploma? Não. O nosso instrumento de trabalho somos nós mesmos e para sermos honestos na nossa prática, precisamos nos submeter ao “processo alquímico pessoal” que vivenciamos na psicoterapia.
Como nos alerta Guggenbühl-Craig (1978), no seu impactante livro “O abuso do poder na psicoterapia”, mesmo o analista profissionalmente sincero que se mantém em contato com seu próprio inconsciente, estudando cuidadosamente seus sonhos e outras manifestações, não está livre do papel de charlatão. Assim como as demais pessoas, os analistas costumam ter um ponto cego na própria sombra. Então, como fica o analista ou psicoterapeuta que não se cuida?
            Falar de transformação em alquimia remete-nos à ideia de uma primeira matéria. Para os alquimistas, uma dada substância para ser transformada necessita ser reduzida ou regredida ao seu estado indiferenciado original. Nos trechos da alquimia que fazem referência a encontrar, e não a produzir a prima matéria, podemos identificar a mesma ação na psicoterapia. Buscamos nesta última a prima matéria que está na sombra (parte da personalidade tida como a mais desprezível nos seus aspectos negativos). Como diz Edinger (2004), “os aspectos mais dolorosos e humilhantes de nós mesmos são os próprios aspectos a serem trazidos à luz e trabalhados” (p. 32).
            Após esta breve explanação relacionando a alquimia e a psicoterapia, passo a descrever os sonhos e suas análises através das operações alquímicas nos seus aspectos simbólicos. Os sonhos foram meus e trabalhados na minha psicoterapia pessoal. Naturalmente as questões mais relevantes e íntimas foram preservadas e não compartilhadas.
Sonho 1: Eu estava no mar me encaminhando para dentro dele quando percebo que as ondas apareciam também perpendicular a ele e com uma altura bem acima da minha estatura. Minha preocupação era com a minha filha pequena (3 anos de idade) que estava mais atrás, ainda na parte rasa e inicial do mar. Ela estava nos braços de uma pessoa adulta que a segurava e ambas estavam deitadas na água. Eu temia que a criança se afogasse e pedia para que ambas se levantassem. O risco era também delas se afogarem através das ondas que vinham altas e pela lateral do mar.
         Este sonho apresenta equivalentes simbólicos da solutio e esta operação é um dos principais procedimentos da alquimia. A solutio pertence à água. Como nos diz Edinger (2004), “... a solutio transforma um sólido num líquido. O sólido parece desaparecer no solvente, como se tivesse sido engolido. (...) Considerava-se a água como o útero e a solutio como um retorno ao útero, para fim de renascimento” (p.67).
            É do “útero materno”, simbolicamente, que nasce o ego. Num estágio ainda de imaturidade o ego tende a achar prazeroso render-se à tal regressão, mas num estágio posterior do desenvolvimento, a perspectiva de solutio gera ansiedade, porque o estado de autonomia do ego, alcançado a duras penas, estará sob ameaça de dissolução. Os sentimentos predominantes no sonho foram de angústia, medo e preocupação.
            Observo que existe uma figura central no sonho que é a criança. De acordo com Edinger (2004) a criança simboliza o estado original, a primeira matéria fresca e vital, mas também vulnerável e insegura. Refere que o surgimento da criança nos sonhos pode simbolizar também o Self.
            A cena traz a criança sob a ameaça de afogamento por estar deitada na água ou por ser inundada pela grande onda. O autor ilustra que os sonhos com inundações se referem à solutio e representam uma ativação do inconsciente, que ameaça dissolver a estrutura estabelecida do ego. As grandes transições da vida costumam ser representadas pelas experiências de solutio.
            O livro de Edinger traz sete (7) aspectos principais do simbolismo da solutio. Nesta análise do sonho destaquei e relacionei apenas três aspectos, que são o retorno ao útero materno ou estado primal, a dissolução e o outro aspecto que seria a suavização. Segundo o autor, “a solutio resulta do confronto entre o ego e o inconsciente” (p.96). Naturalmente, este entendimento tem como base o autoconhecimento proporcionado por meu processo psicoterápico junguiano que venho fazendo até então.  
            Diante do exposto, ressalto a explicação de Edinger no que diz respeito ao que pode ser salvo no ego no procedimento da solutio. Diz que aquilo que não merece salvação é dissolvido e derretido, a fim de ser recomposto sob uma nova forma de vida. Como diz o autor, “o ego comprometido com esse processo transpessoal cooperará com ele e experimentará sua própria redução como um prelúdio à vinda da personalidade mais ampla, a totalidade do Si-mesmo” (p.99).  
            Um outro aspecto muito interessante citado neste livro é quando ele diz que tanto o psicoterapeuta quanto o cliente devem submeter-se à solutio. É necessária fluidez, pois enquanto estiver “seco e duro” tal como o metal que necessita ser transmutado, precisa voltar à sua prima matéria, que é suave e fluida. Então cliente e psicoterapeuta precisam ser suaves e fluidos, pois na psicoterapia há de acontecer uma influência mútua, que se assemelha à mistura de duas substâncias químicas que se transformam, caso haja combinação entre ambas. Deste modo, o psicoterapeuta influencia e é influenciado, passando também por transformações. Isto me chamou a atenção porque tive clientes vivenciando a solutio e tive uma noção clara desse processo de influência supracitado. 
            Agora descrevo o sonho que se seguiu ao já relatado.
Sonho 2: Havia um morro com a existência de várias casas de um lado a outro, formando uma rua que descia até o final dele. A rua era de barro e eu a descia; nesse meio tempo olhei para trás e para o alto e vi que havia um incêndio no local onde eu havia deixado a minha filha pequena com uma pessoa adulta e logo me preocupei com ela, pois corria risco em meio ao fogo.
            Este sonho nos remete a outra operação da alquimia que é a calcinatio. Esta é a operação do fogo que se relaciona com imagens do fogo livre, queimando ou afetando substâncias. Embora na maioria dos textos da alquimia citem as listas das operações iniciadas com a calcinatio, Edinger (2004) esclarece que qualquer uma das operações pode ser a inicial, sendo seguida pelas outras.
O sonho da calcinatio ocorreu após o relacionado à solutio. Também possui uma criança que está com uma pessoa adulta, correndo risco agora de serem queimadas. Estou como observadora da situação e parece-me que, simbolicamente, representa o ego. Em tal condição me preocupo com a criança mais uma vez que corre risco. Interessante notar que ela está no alto do morro e eu estou na descida deste.
Numa parte do texto, Edinger nos diz que, simbolicamente, o fogo da calcinatio é um fogo purgador, embranquecedor, pois atua sobre a matéria negra, a nigredo, tornando-a branca. Pinço também outro trecho onde ele diz que é esse o destino de aspectos do ego que se identificam com as energias transpessoais da psique e as utiliza para fins de prazer ou de poder pessoais. Ele ressalta que esse aspecto identificado com a energia do Si-mesmo, deve passar pela calcinatio.
Acredito que não é ao acaso que a criança está no alto e sob o cuidado de uma pessoa adulta. Certamente está relacionada com uma identificação com aspectos do poder pessoal que está em meio ao fogo. Também suponho que está mais próximo da consciência do que do inconsciente mais profundo. Fica num local onde a rua é de barro. Não sei exatamente o que ocorre e qual a relação desses elementos (fogo e barro), mas também chamam minha atenção e me faz pensar que existe algum simbolismo aí. O barro, neste sonho, me remeteu a um lugar ainda rústico, não urbanizado. Então, é algo ainda rudimentar, desprovido de uma sofisticação que tornaria tudo mais acabado e definitivo. Sinto que ao escrever a respeito deixei fluir como se existisse um conhecimento que vai além do racional, talvez isso tenha relação com o fato de já ter vivenciado uma solutio.
Considerei mais instigante o fato da calcinatio vir após a solutio nos simbolismos dos meus sonhos, diante do que Edinger (2004) diz, “a calcinatio é um processo de secagem” (p.61) e na relação feita com a psicoterapia diz respeito à secagem dos complexos inconscientes que “vivem na água”. O fogo reside no próprio complexo e torna-se consciente mediante o compartilhamento com outra pessoa – o psicoterapeuta. O afeto liberado através da expressão de pensamentos ou ações que trazem vergonha, culpa ou ansiedade, torna-se o fogo capaz de secar o complexo e purificá-lo de sua contaminação inconsciente. Ele também ressalta que a principal característica da calcinatio é a frustração do desejo que se torna o fogo dessa operação.
            Sobre este último aspecto – o desejo – gostaria de transcrever um trecho de Jung citado pelo autor que achei bem representativo e me faz lembrar um desenho que fiz, posterior aos sonhos descritos, onde não havia aparente associação voluntária com estes. Era uma figura aparentemente masculina em meio ao fogo e com os braços e cabeça elevados para cima, como se estivesse participando de um ritual sagrado. Certamente era uma representação simbólica do animus. Retomando, o texto diz:
Quando você se abandona ao desejo, seu desejo se volta para o céu ou para o inferno, você dá um objeto à anima (ou animus- grifo meu); e esse objeto vai para o mundo, em vez de ficar no interior, seu lugar próprio... mas se você puder dizer: ‘sim, eu o desejo e tentarei obtê-lo, mas não sou obrigado a tê-lo, se decidir renunciar, eu posso’; não há chances para o animus ou para a anima. Caso contrário, você é governado pelos seus desejos, está possuído..., mas se tiver colocado o animus ou a anima numa garrafa, está livre de possessão, mesmo que sofra interiormente, porque quando o demônio sofre, você também sofre (...). Você vai, pouco a pouco, ficar calmo e mudar. E então vai perceber que há uma pedra crescendo na garrafa... desde que o autocontrole, ou a não indulgência, tenha se tornado um hábito, é uma pedra... quando essa atitude se torna um fait accompli (fato consumado – grifo meu), a pedra será um diamante (Jung apud Edinger, 2004, p.64). 

BIBLIOGRAFIA

CORUMBA, R. M. e RAMALHO, C, M. R. Descobrindo enigmas de heróis e contos de fadas: entre a psicologia analítica e o psicodrama. Aracaju: Edições Profint, 2008.
EDINGER, E. F. Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 11ª. edição, 2004.
GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Santa Catarina: edições Achiamé,1978.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.




[1] Projeção: “quando as pessoas observam nos outros as suas próprias tendências inconscientes, estão fazendo o que chamamos projeção” (Jung, 2008, p.227). A projeção pode ser dirigida a alguém ou algo.
[2]Sombra: “tendências e impulsos que (a pessoa) nega existirem em si mesma, mas que consegue perfeitamente ver nos outros” (Jung, 2008, p.222).
Persona: “corresponde à maneira de uma pessoa se apresentar em sociedade. Atendendo às exigências do meio social onde vive, o homem assume uma aparência artificial, pois não corresponde ao que realmente ele é, embora atinja a finalidade de agradar os outros, adaptando-se assim, às exigências do meio ambiente” (Corumba e Ramalho, 2008, p. 46).
Anima: “é o elemento feminino no inconsciente masculino. É a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas não menos importante, o relacionamento com o inconsciente”. (Jung, 2008, p.234-235).
Animus: “é o elemento masculino no inconsciente feminino. (...) Tal como a anima, o animus não consiste apenas de qualidades negativas como a brutalidade, a indiferença, a tendência à conversa vazia, às ideias silenciosas, obstinadas e más. Também apresenta um lado muito positivo e valioso; pode lançar uma ponte para o self por meio da atividade criadora. (...) O animus pode tornar-se um companheiro interior precioso que vai contemplá-la com uma série de qualidades masculinas como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a sabedoria espiritual” (idem, p.258).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Artigo XI


Psicologia e Alquimia

                                                                                                       Ivna Ariane S. Vieira

Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos meus modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus. (LISPECTOR, Clarisse)
É com o belíssimo pensamento de Clarisse Lispector que inicio este texto. Pela intensidade de suas palavras já podemos perceber que falar de alquimia é se debruçar em uma análise sobre o constante processo de mutações e transformações necessárias para o crescimento psíquico.
A alquimia era conhecida por ser a arte do fogo, uma vez que o alquimista era notório por sua habilidade ao lidar com o fogo. Segundo Eliade (1977), assim como o ferreiro e o oleiro, o alquimista era tido como o “senhor do fogo”.
Von Franz (1993), afirma que Jung introduz a alquimia na psicologia através de seu livro Psicologia e Alquimia. O autor começa a estudar a alquimia e logo entende que as imagens e os textos que esses autores produziam se pareciam muito com a ciência que ele próprio desenvolvia e acreditava.
Edinger (1999), afirma que Jung ao estudar os antigos textos e gravuras da Alquimia, percebeu que estas eram, de fato, “a própria água da psique”, passível de ser usada para compreender os seus complexos conteúdos. Em seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões, Jung escreve:
Cedo percebi que a psicologia analítica coincidia de modo bastante singular com a alquimia. As experiências dos alquimistas eram, num certo sentido, as minhas próprias experiências, assim como seu mundo era meu mundo (2006, p.205).
Partindo desta perspectiva, a proposta de trabalho deste módulo, do curso de formação em psicologia analítica, será fazer uma analogia simbólica de um sonho com a as fases da Opus Magna. As operações da Opus Magna têm implicações psicológicas profundas, assim como na psicoterapia e nos sonhos, poderemos encontrar um simbolismo alquímico rico. O sonho escolhido para ser trabalhado foi o de uma mulher chamada Elizabeth.
Obviamente por se tratar de um texto breve, não tecerei detalhes sobre a vida de Elizabeth. Gostaria de dizer, apenas, que ela é uma mulher de 36 anos, em processo terapêutico com analista Junguiana e que o momento de sua vida sugere um desejo de mudança de atitude. E esse desejo está expresso em seu sonho.
O sonho de Elizabeth foi o seguinte:
Ela está em uma casa térrea quando ouve o telefone fixo tocar. Elizabeth corre para atender. Assim que atende ouve o aviso que a casa em que está irá explodir. Sem ter tempo de desligar a ligação, a casa em que está explode.
Para clarificar essa analogia simplificada, facilitando a compreensão do sonho para todos que tenham interesse pelo tema, farei uma pequena explicação sobre o processo alquímico.
Ramalho (2002), afirma que “os alquimistas dedicavam-se, sobretudo a edificação da Opus Magna (grande obra) e à aprimoração da própria vida” (p.70). Daí o maior e verdadeiro objetivo dos alquimistas, é buscar o elixir da longa vida, ou “pedra filosofal” (Lapis Philosophorum), espécie de catalizador espiritual de todo o processo alquímico, capaz de acelerar a transmutação do chumbo em ouro. Esse processo atravessaria etapas, que evoluiriam da nigredo à rubedo e, afinal, a albedo. As etapas dessa transmutação seriam para os alquimistas (usando os termos em latim): a solutio, calcinatio, coagulatio, mortificatio, sublimatio, separatio e a coniunctio.
O sonho que será analisado, por ter como temática o fogo, explosão e fazendo a ponte destas imagens com a vida de Elizabeth sabemos que seu sonho está diretamente relacionado à fase da Opus Magna chamada de calcinatio. É importante destacar que pelo fato do fogo ter um rico simbolismo, que vai da libido (paixões) ao fogo sagrado, não devemos tentar especificar a imagem do fogo unicamente como calcinatio, mas procurar examinar a aparição fenomenológica dessa imagem.
A calcinação, do latim calx, calcinatio é o processo de se queimar substâncias diversas. De acordo com Heck (2010), a calcinação é um tratamento de remoção de água, CO2 e outros gases que estão ligados quimicamente a alguma outra substância, que pode ser tipicamente um hidrato ou carbonato. É um procedimento vigorosamente endotérmico, ou seja, o calor é absorvido nessa reação, que necessita de fontes de altas temperaturas, podendo chegar aproximadamente até 900°C.
Segundo Edinger (1990), o exemplo clássico de calcinação, do qual surgiu termo cal (calx= cal), é o aquecimento da pedra calcária (CaCO3) ou do hidróxido de cálcio (Ca(OH)2) para produzir a cal viva (CaO, calx viva). Ao se acrescentar água a cal viva, esta produz calor. Devido a essa propriedade, muitos alquimistas acreditavam que a cal portava o fogo dentro de si, e por diversas vezes, já chegaram a compará-la ao próprio fogo.
Edinger (1990), em seu livro anatomia da psique, afirma que a sequência das operações alquímicas parece não ter importância do ponto de vista da significação psicológica, mas que, no entanto, a operação calcinatio é tida como a operação inicial em grande parte das listas dos alquimistas. Esta operação indica transição. Após a descida ao inferno, o princípio que rege a consciência pode morrer, pode-se descer ao reino animal e suportar as ferozes energias instintivas.
Nos processos alquímicos a calcinatio busca transformar o que é negro em o que é branco através do seu calor. Esta operação atua sobre a nigredo, que seria de acordo com os alquimistas, a massa confusa, a matéria prima, aquecendo-o, ou seja, transformando-a no estado branco ou albedo, que simbolicamente pode ser definida como um momento de maior entendimento. Jung (2011), diz que “o alvejamento (albedo s. dealbatio) é comparado ao ‘ortus solis’ (nascer do sol). É a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurecimento”(p.138).
            O fogo é purgador, pois atua sobre a matéria negra, a nigredo, mas ele também pode ser redentor. Os alquimistas utilizavam a calcinatio, portanto, com fins de purificação. Só assim o ego pode renascer, como a fênix, num estado purificado. Era depois da passagem pelo fogo que o material a ser trabalhado era identificado. A matéria prima era diferenciada, ou seja, a calcinatio livra a matéria de tudo o que é naturalmente impuro nela mesma.
Edinger (1990), descreve a calcinatio como um processo de secagem:

Um importante componente da psicoterapia envolve a secagem dos complexos inconscientes que vivem na água. O fogo ou intensidade emocional necessária para esta operação parece residir no próprio complexo, tornando-se atuante tão logo o paciente tenta tornar o complexo consciente, mediante o compartilhamento com outra pessoa. Todos os pensamentos, ações e lembranças que trazem vergonha, culpa, ansiedade precisam ter plena expressão. O afeto liberado torna-se fogo capaz de secar o complexo e purificá-lo de sua contaminação inconsciente. (EDINGER,1990, p, 61)
Assim, o processo de psicoterapia deve envolver a conscientização de complexos inconscientes. A calcinatio pode ser vista simbolicamente como um processo de secagem desses complexos, pois é a partir do fogo ou da energia que alimenta o próprio complexo que o paciente começa a torna-se consciente. A intensidade emocional reside nesse mesmo complexo, que precisa de alguma forma, ser expresso. Uma vez que o afeto é liberado, o complexo é purificado e não possui mais energia para uma contaminação autônoma do inconsciente.
Para que ocorra uma calcinatio adequada, o material a ser trabalhado deve ser corretamente localizado, caso contrário, o que estará acontecendo não se diferenciará de uma autoflagelação.
Muitos alquimistas praticantes cometem um erro já de início, ao realizarem essa calcinatio com substância errada... ou ao escolherem falso método, corroendo, em vez de calcinar, os corpos metálicos com quais operam. A calcinação só pode ocorrer por meio do aquecimento interior do corpo, assistindo pelo amigável calor exterior, mas a calcinação através de um agente heterogêneo só pode destruir a natureza metálica, se é que tem algum efeito. (EDINGER, 1990, p.62)

Pela passagem do fogo da calcinatio é que nossos desejos são transformados. Os nossos desejos primitivos são frustrados e transmutados em novos conteúdos. Ou, dito de outra forma, as energias da psique arquetípica primeiro aparecem em estado de identificação com o ego, exprimindo-se como desejos de prazer para o ego, de poder para o ego. O fogo da calcinatio purga essas identificações e impulsos da raiz ou umidade primordial, deixando o conteúdo em sua condição eterna ou transpessoal, tendo restado seu aquecimento natural, isto é, sua energia e seu funcionamento próprios.
Desse modo, a calcinatio representa uma nova forma de relacionamento com os afetos, uma vez que o aspecto arquetípico da existência passa a ser observado. A partir do momento que ocorre um relacionamento com o aspecto transpessoal da nossa psique, os afetos passam a ser experimentados não mais como desejos frustrados, mas sim como algo de espiritual. Ou seja, ocorre uma transformação do desejo.
No caso em análise, o sonho de Elizabeth, pode-se notar que a calcinatio proporcionou a esta mulher uma nova maneira de relacionamento com os aspectos transpessoais da sua psique. A partir dessa transformação, ela passou a experimentar o fogo como algo espiritual não mais algo terrestre. Edinger (1990), cita Jung ao falar sobre essa dura transformação que envolve muito suor e sofrimento. Ele diz que quando o seu demônio sofre, você também sofre, no entanto, após essa passagem pode-se perceber um crescimento interior muito recompensador e confortante. O que será muito necessário, uma vez que a calcinatio é apenas o começo para uma grande jornada.
Vale observar que no sonho de Elizabeth existe uma substância a ser localizada para ser calcinada e, de maneira subjetiva, podemos dizer que existe um desejo ou reivindicação dela que precisa ser identificado no inconsciente. É preciso entrar em contato com esse conteúdo para que ela possa analisá-lo e transformá-lo. Então, no interior desse corpo ocorre o aquecimento que pode operar as transformações necessárias para o crescimento psíquico.
A iniciação a esta nova anatomia alquímica, anatomia da Psique, envolveu a alma de Elizabeth que queimava e trouxe a ela um novo entendimento. Ela estava envolvida pelo fogo de um complexo. Um complexo a secar. Terapeuticamente falando, havia muitas emoções afloradas de Elizabeth que pediam pela secagem. A calcinatio remove essas águas e transforma o negro em branco, o nigredo em albedo. Metaforicamente, nasce um maior entendimento para ela.
Vários estudos alertam para a existência de uma resistência às mudanças nas sementes da própria natureza, e que é necessário um calor intenso de forma a retirar o ser da inércia inata. Elizabeth precisava queimar seu corpo para sair da inércia. A luz deste fogo clareou para ela a importância dela operar transformações em sua vida necessárias ao seu crescimento psíquico.
            Elizabeth, por meio do processo terapêutico, compreendeu que o deixar-se queimar e enrubescer significava que seu momento necessitava de uma mudança na atitude. Era necessário criar uma nova relação consigo mesmo, agora não mais colorida apenas pelo branco da ingenuidade e encharcada pelas águas da infância. Seu momento pedia uma relação mais íntima e interna consigo mesma capaz de se priorizar. Um movimento em que, com coragem, ela andasse de mãos dadas com os próprios medos deixando queimar antigas águas em busca da prata.
Assim, o fogo queimou, ardeu, mas também iluminou a vida de Elizabeth. Trouxe visibilidade ao seu próprio processo. O momento é novo. As imagens alquímicas de seu sonho vêm a concretizar suas experiências de transformação por que ela passa em sua psicoterapia.
Já dizia o sábio Jung que o fogo é um símbolo que representa processos de transformação psicológica. Assim como os antigos alquimistas se utilizavam do fogo para transformar metais pobres em ouro, sonhar com fogo pode ser um gatilho incentivador de grandes transformações interiores. Assim aconteceu com Elizabeth, na sua jornada rumo ao processo de individuação.
Observe o quanto é importante um analista desenvolver a arte de identificar todos estes elementos, estando atento para discriminar qual o caminho a seguir, como modificar ou retirar elementos que estão no interior de seu ser, para assim produzir a síntese e a integração, ou utilizando a linguagem alquímica, a coniunctio mais elevada possível. Jung afirmou que o processo psicoterápico segue as etapas do processo alquímico, e que a busca dos alquimistas da “pedra filosofal”, se assemelhava á busca da realização do Self, no processo de individuação.
Assim, da mesma forma que o alquimista aprende a dosar o fogo, as substâncias e os metais mais importantes utilizados em seus experimentos, o analista terá que adquirir a capacidade de equilibrar seus pacientes. O alquimista/analista precisa estar atento para não cometer erros que poderão prejudicar todo o processo, calcinando a substância errada, ou escolhendo a operação inconveniente que poderá consumir ou desgastar as substâncias necessárias para o desenvolvimento saudável do processo, por isso se faz tão necessário também o conhecimento das principais substâncias presentes ou demandadas no processo de cada indivíduo.
Para finalizar, gostaria de citar a bela metáfora de Rubem Alves que ilustra, muito bem, tudo que falamos sobre os processos alquímicos:

A vida é como a vela: para iluminar é preciso queimar. A vela que ilumina é uma vela alegre. A luz é alegre. Mas a vela que ilumina é uma vela que morre. É preciso morrer para iluminar. Há uma tristeza na luz da vela. Razão porque ela, a vela, ao iluminar, chora. Chora lágrimas quentes que escorrem da sua chama. Há velas felizes cuja chama só se apaga quando toda a cera foi derretida. Mas há velas cuja chama é subitamente apagada por um golpe de vento...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EDINGER, Edward F. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 1990.

ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

HECK, Nestor Cesar.UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em 24/08/2010 <www.ct.ufrgs.br/ntcm/graduacao/ENG06632/Calcinacao.pdf

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C.G. Psicologia e Alquimia. 5°ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

JUNG, C.G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

RAMALHO, Cybele M. R. Aproximações entre Jung e Moreno. São Paulo: Ágora, 2002.

VON FRANZ, Marie Louise. A Alquimia: Introdução ao Simbolismo e a Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1993



quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Artigo X


Psicologia Analítica e Religião: um breve esboço de leituras acerca do tema
Sheila de Araújo Barboza 

Esse texto traz uma síntese do pensamento de Jung sobre a Religião, bem como minhas breves impressões a respeito. Para tanto utilizei a leitura dos livros: “Psicologia e Religião” do próprio Jung, “C.G. Jung: Espiritualidade e Transcendência” de Brigitte Dorst e “Individuação: Adão Alienado, Cristo Reconciliado” de Ana Elizabeth C.B. Rabelo, para compor e fundamentar tal escrita.
              Jung (1987), trata o fenômeno religioso com uma perspectiva empírica,  ressaltando que observa os fenômenos e se abstém de qualquer abordagem metafísica ou filosófica. Portanto, trata-se de uma Psicologia empírica. Para ele a psique possui uma função religiosa e isto quer dizer que possuímos uma capacidade inata de produzir símbolos significativos e tocantes, sendo naturalmente dotado de um senso do sagrado. 
              O termo Religião (religere) é entendido por ele como uma acurada e conscienciosa observação do numinoso. Este último (numinoso) é relativo a divindade, independe da vontade da pessoa e pode ser uma presença invisível que produz uma modificação especial na consciência. Deste modo, “religião designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso” (Jung, 1987, p. 10). A religião está presente na natureza humana, como esclarece Rabelo (2010), na sua vida social e pessoal. 
              Jung (1987) nos diz que esta experiência foi sacralizada e enrijecida dentro de uma construção mental inflexível onde seu exercício e repetição transformaram-se em rito e instituição imutável. Acredito que é a partir desta ideia que ele diferencia a experiência original do “religare” e do numinoso com a religião enquanto instituição. Também me parece ser esse aspecto o que gera interpretação equivocada de leigos ao afirmarem que Jung trata do assunto sob um aspecto místico.
              Há um trecho neste livro que considero fundamental para a nossa prática enquanto psicólogos, pois ele diz que não devemos tomar um credo religioso e, como tal, possuidor de verdade exclusiva e eterna. Deste modo, não é isto que deve ser tomado como ponto de partida, mas a psicologia do homo religiousus, ou seja, daquele que observa certos fatores que agem sobre ele; deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso. Jung escreveu que a melhora de seus pacientes, em muitas ocasiões, ocorria através da recuperação do senso de religião, pois, como esclarece Rabelo (2010), a experiência do numinoso baseia-se na ativação de forças arquetípicas (entendo que na psicologia analítica significa que são imagens e emoções que são derivadas do inconsciente coletivo e da sua relação com o inconsciente pessoal) da própria psique. Estas forças agem dirigindo o Ego para o Self.  
 Hall apud Rabelo (2010) nos lembra que Jung preferia deixar as questões relativas ao Deus metafísico aos teólogos, pois teve o cuidado de distinguir as manifestações psicológicas das teológicas.
Jung (1987) fala que a experiência religiosa é algo de absoluto e é indiferente o que pensa o mundo a este respeito, pois aquele que a tem (a experiência) possui um tesouro que se converteu numa fonte de vida para tal pessoa.  
              No livro de Dorst (2015), autora que fala do tema Espiritualidade e Transcendência, reuniu os diversos textos e livros de Jung sobre o tema religião, espiritualidade e transcendência. A autora elucida que a espiritualidade se refere a todas as formas de religiosidade, independentemente de confissões e igrejas, e abrange uma pluralidade de fenômenos religiosos. Portanto, independe das tradições e remete às dimensões profundas da experiência que não são mais perceptíveis em muitas formas de religião. A autora Junguiana esclarece que nas obras de Jung o termo “espiritualidade” como é usada hoje em dia, não era usual na época dele. Assim, Religião e “religiosidade” eram as designações estabelecidas e com a preocupação de desenvolver uma psicologia da “experiência religiosa”, sendo esta um fenômeno psíquico.
              No que diz respeito ao termo transcendência, a autora supracitada explica que Jung cita “função transcendente” psicológica para se referir à união de conteúdos conscientes e inconscientes através de uma transição de uma mentalidade para outra.
              Deste modo, a transcendência da psique refere-se segundo Dorst (2015), às experiências espirituais de conexão com o divino, com o absoluto, que vão além da consciência cotidiana, mas que tudo o que pode ser apreendido e percebido com os sentidos e o mundo invisível do inconsciente faz parte de uma totalidade indivisível, uma realidade una chamada por Jung de unus mundus.
              Jung (1987) refere que a “religião” ou “confissão”, como ele prefere chamar, tem a finalidade de “substituir a experiência imediata por um grupo adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados” (p. 48). Neste último aspecto ele cita a Igreja, enquanto instituição religiosa, como a mantenedora do dogma e ritual que define se a experiência imediata provém de Deus ou do diabo, se deve ser repelida ou aceita. Contudo, Jung diz que tratou de diversos pacientes que vivenciaram uma experiência imediata, mas não queriam se submeter à decisão da autoridade eclesiástica e os acompanhou em crises, conflitos e medos de enlouquecer. Sobre este aspecto ele ressalta a importância do dogma e dos ritos, ao menos enquanto método de higiene, apoiando, com isso, um meio defensivo contra um grave risco.
No tocante aos símbolos religiosos, este surge nos textos citados neste trabalho muitas vezes relacionados aos sonhos. Apenas para ilustrar, me detenho nas citações de Jung (1987) acerca da simbologia do número quatro (4) ou quaternário que surge em setenta e um (71) dos quatrocentos (400) sonhos de um de seus clientes. O número quatro (4) alude a uma ideia ligada à tetraktys dos pitagóricos. Tal símbolo possui caráter numinoso, “sacro”. Jung elucida que para estudiosos das ciências naturais e filósofos da natureza de muitos séculos atrás discutiam o problema da quadratura do círculo que constituía uma projeção psicológica de coisas antigas e inconscientes. Mas sabia-se que o círculo significava a divindade; a esfera continha o número quatro que simbolizava as partes, as qualidades e os aspectos do Uno.
No tocante a interpretação de sonhos e símbolos é necessária certa inteligência, como alerta Dorst (2015), pois ela exige um crescente conhecimento da individualidade do sonhador bem como um autoconhecimento sempre maior por parte do intérprete. Entendo que num contexto de psicoterapia, esse conhecimento deve existir tanto por parte do cliente quanto do psicoterapeuta, mas sobre este último é reforçado a premissa de que o profissional deve investir muito na sua terapia pessoal.
Quanto à essência do símbolo, Rabelo (2010) cita que Jung se referia a uma união da verdade racional com a irracional, pois ele deve conter ambos os lados. Enriquece este entendimento com a citação de Mircea Eliade quando ele diz que o símbolo revela algo mais profundo e enquanto elemento religioso toca nas estruturas do mistério da vida que é sentido como a dimensão sacramental da existência humana.
Jung (1987) diz que tanto ele como outros colegas viram diversos casos onde os sonhos e as visões traziam este simbolismo, cujo método comparativo com outros povos e épocas, mostra que a quaternidade é uma representação de um Deus que se manifesta na sua criação. Ele conclui que o símbolo produzido espontaneamente nos sonhos dos homens modernos indica algo semelhante – o Deus interior. Diante da longa experiência dele e de colegas com tais observações, ele diz que não é mais possível pôr em dúvida tal existência. Neste caso ele fala da existência de uma imagem arquetípica de Deus e “é tudo o que se pode dizer, psicologicamente, acerca de Deus” (p.64).
              Há outros aspectos discutidos com profundidade por Jung no seu livro “Psicologia e Religião” sobre o simbolismo da quaternidade, bem como acerca de outros símbolos associados tais como a Trindade, a relação do quarto aspecto com a representação do demônio, da terra, da mulher; cada um com base em estudos de filósofos medievais, outros em alquimistas. Contudo, não pretendo esgotar tais aspectos neste texto.
O que também busco ressaltar aqui é que Jung nos chama a atenção para conhecermos alguns aspectos de nossa Sombra. Rabelo (2010) explica que na psicologia analítica se tem o entendimento de que esta é inerente à psique, mas pertence ao universo inconsciente. Porém, mesmo sendo reprimida ou negligenciada, não pode ser eliminada. A Sombra abarca qualidades que rejeitamos e que permanecem dentro de nós como uma segunda personalidade. A autora diz:
“Quando a sombra é projetada, o indivíduo não percebe as sinistras intenções nela existentes, como o inimigo velado da dúvida interior ou as baixas motivações da voracidade e do auto engrandecimento que têm estado por detrás de inúmeras atrocidades” (p. 64). É interessante notar que a Sombra pode ultrapassar os limites do pessoal e alongar-se na ‘Sombra Coletiva’. Isto pode acontecer quando homens ditos civilizados, reunidos em massa, acabam por se portar dentro de padrões inferiores de comportamento” (p. 30).
              Quanto a este assunto, Jung me parece muito atual em relação à realidade que vivemos, embora se referisse a outra situação e época (fim da década de 30 do século XX). Para melhor ilustrar coloco abaixo os trechos do livro “Psicologia e Religião”:
 “Observe-se a incrível crueldade de nosso mundo supostamente civilizado – tudo isto tem sua origem na essência humana e em sua situação espiritual! Observe-se os meios diabólicos de destruição! Foram inventados por gentlemans inofensivos, cidadãos pacatos e respeitados (...). Mas, como cada um está cegamente convencido de não ser mais do que uma simples consciência, muito humilde e sem importância, que cumpre suas obrigações, ganhando seu modesto sustento, ninguém percebe que toda a massa racionalmente organizada a que se dá o nome de Estado ou Nação é impelida por um poder aparentemente impessoal, invisível, mas terrível, cuja ação ninguém pode deter. Em geral, tenta-se explicar esse poder terrível pelo medo diante da nação vizinha, que se supõe estar possuída por um demônio maligno (...). Projeta seu próprio estado no vizinho. Torna-se então um dever sagrado possuir canhões e os gases mais venenosos” (p. 54).                            
              E não é isso que vivemos nos dias atuais? O homem moderno que não vai em busca do “si-mesmo” e ainda lança partes do seu inconsciente correspondente à “Sombra” projetadas no mundo externo, muitas vezes potencializando ações maléficas e destrutivas atribuindo às outras Nações ou Estados o mal que na realidade está encrustado em cada um que apenas projeta?
              Alinhando essa análise com a citação de Dorst (2015) sobre textos de Jung nas obras completas, destaco:
“É preciso ocupar-se consigo mesmo senão não há como tornar-se alguém, senão nem é possível desenvolver-se. (...) Quanto mais alguém se torna consciente de si mesmo mediante o autoconhecimento e o agir correspondente, tanto mais desaparece aquela camada do inconsciente pessoal acumulada sobre o inconsciente coletivo. (...) Essa consciência ampliada não é mais aquele emaranhado sensível e egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições pessoais, que precisa ser compensado ou então também corrigido por tendências contrárias pessoais e inconscientes, mas é uma função relacional vinculada ao objeto, ao mundo, a qual transfere o indivíduo para dentro de uma comunhão incondicional, compromissiva e indissolúvel com o mundo” (p. 32).    
              A autora, Dorst (2015), sintetiza todo este entendimento dizendo que o indivíduo está ameaçado por perigos mortais que ele mesmo criou e que lhe fogem ao controle. Daí compara a humanidade a um indivíduo em que, na condição atual, está sendo arrastada por forças inconscientes. Considera muito problemático manter a ideia de que “os nossos adversários” estão completamente errados do ponto de vista moral e filosófico, esperando que os mesmos se arrependam e reconheçam seus erros em vez de fazermos (enquanto ocidente) um sério esforço para reconhecermos nossas sombras e suas maquinações traiçoeiras. Arremata de modo bem atual aos últimos acontecimentos no mundo[i][1], de que na prática fazemos o mesmo que eles, só com a desvantagem de não vermos nem querermos ver o que praticamos sob o manto de nossas boas maneiras.
Como nos diz Rabelo (2010), quando a pessoa alcança a busca efetiva do Self (si-mesmo) e entra em contato com a totalidade, ele passa a carregar consigo também um aspecto pior, defeitos reconhecidos e que não são possíveis de se desligar destes, mas que justamente por isso faz a pessoa preservar um senso ético. Deste modo, o objetivo não é alcançar a perfeição, pois totalidade psíquica quer dizer certo equilíbrio alcançado entre consciente e inconsciente, produzindo-se uma situação de certa paz e plenitude. Todos os autores colocam a palavra “certo ou certa” no sentido de “não muito definido ou exato” porque essa totalidade (Self) é sempre um processo e não um resultado acabado, definitivo. Por isso, iniciei o parágrafo com o termo “alcança a busca”, pois é isso o que importa.
Enfim, é necessário ler mais algumas vezes os textos de Jung para compreender melhor o assunto. Esse texto só pinça alguns aspectos citados por ele e outros autores que se baseiam nele. Trago uma tímida explanação sobre o meu olhar e entendimento acerca deste tema. Considero imprudente tecer opiniões amplas e firmes sem uma leitura mais aprofundada. Por isso recomendo aos leitores (me incluo nessa recomendação) deste simplório texto a se entregarem ao estudo do tema em Jung, na sua vasta obra.

REFREÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DORST, B. Espiritualidade e transcendência / C.G. Jung; seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 

JUNG, C.G. Psicologia e Religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987 (Obras Completas de C.G. Jung; v.11/1).

RABELO, A.E.C.B. Individuação: Adão alienado, Cristo reconciliado. São Paulo: Iglu, 2010.


[1] A edição desse livro é de 2015, mas é naturalmente anterior ao fato ocorrido na sexta-feira 13 de novembro do corrente ano em Paris, mas não sei ao certo se anterior ou posterior ao ocorrido em abril deste mesmo ano em Garissa, Quênia. Neste último, terroristas que tomaram o campus, na fronteira com a Somália, integravam o Al-Shabaab, grupo somali ligado à Al-Qaeda e combatido pelo Quênia desde o fim de 2011. Consideravam a universidade “um território muçulmano”, que precisava se libertar “dos infiéis”. Daí a ação sanguinária. Os extremistas acabaram assassinados durante o cerco policial. Entre os 148 mortos, contavam-se 142 estudantes (fonte: http://operamundi.uol.com.br/blog/samuel/perguntas/por-que-minha-fraternidade-e-tao-seletiva/).