Psicologia e Alquimia
Ivna Ariane S. Vieira
Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo
em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao
fim de cada um dos meus modos de existir. Vivo de esboços não acabados e
vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens,
entre mim e o Deus. (LISPECTOR, Clarisse)
É com o belíssimo pensamento de Clarisse Lispector
que inicio este texto. Pela intensidade de suas palavras já podemos perceber
que falar de alquimia é se debruçar em uma análise sobre o constante processo
de mutações e transformações necessárias para o crescimento psíquico.
A alquimia era conhecida por ser a arte do fogo,
uma vez que o alquimista era notório por sua habilidade ao lidar com o fogo. Segundo
Eliade (1977), assim como o ferreiro e o oleiro, o alquimista era tido como o “senhor
do fogo”.
Von Franz (1993), afirma que Jung introduz a
alquimia na psicologia através de seu livro Psicologia e Alquimia. O autor
começa a estudar a alquimia e logo entende que as imagens e os textos que esses
autores produziam se pareciam muito com a ciência que ele próprio desenvolvia e
acreditava.
Edinger (1999),
afirma que Jung ao estudar os antigos textos e gravuras da Alquimia, percebeu
que estas eram, de fato, “a própria água da psique”, passível de ser usada para
compreender os seus complexos conteúdos. Em seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões,
Jung escreve:
Cedo percebi que a psicologia
analítica coincidia de modo bastante singular com a alquimia. As experiências
dos alquimistas eram, num certo sentido, as minhas próprias experiências, assim
como seu mundo era meu mundo (2006, p.205).
Partindo desta perspectiva, a proposta de trabalho
deste módulo, do curso de formação em psicologia analítica, será fazer uma analogia
simbólica de um sonho com a as fases da Opus
Magna. As operações da Opus Magna
têm implicações psicológicas profundas, assim como na psicoterapia e nos sonhos,
poderemos encontrar um simbolismo alquímico rico. O sonho escolhido para ser
trabalhado foi o de uma mulher chamada Elizabeth.
Obviamente por se tratar de um texto
breve, não tecerei detalhes sobre a vida de Elizabeth. Gostaria de dizer,
apenas, que ela é uma
mulher de 36 anos, em processo terapêutico com analista Junguiana e que o momento de sua
vida sugere um desejo de mudança de atitude. E esse desejo está expresso em seu
sonho.
O sonho de Elizabeth foi o seguinte:
Ela está em uma casa térrea quando ouve o telefone
fixo tocar. Elizabeth corre para atender. Assim que atende ouve o aviso que a
casa em que está irá explodir. Sem ter tempo de desligar a ligação, a casa em
que está explode.
Para clarificar essa analogia simplificada,
facilitando a compreensão do sonho para todos que tenham interesse pelo tema, farei
uma pequena explicação sobre o processo alquímico.
Ramalho (2002), afirma que “os
alquimistas dedicavam-se, sobretudo a edificação da Opus Magna (grande obra) e à aprimoração da própria vida” (p.70).
Daí o maior e verdadeiro objetivo dos alquimistas, é buscar o elixir da longa
vida, ou “pedra filosofal” (Lapis
Philosophorum), espécie de catalizador espiritual de todo o processo
alquímico, capaz de acelerar a transmutação do chumbo em ouro. Esse processo
atravessaria etapas, que evoluiriam da nigredo
à rubedo e, afinal, a albedo. As etapas dessa transmutação seriam
para os alquimistas (usando os termos em latim): a solutio, calcinatio, coagulatio, mortificatio, sublimatio, separatio e
a coniunctio.
O sonho que será analisado, por ter como temática o
fogo, explosão e fazendo a ponte destas imagens com a vida de Elizabeth sabemos
que seu sonho está diretamente relacionado à fase da Opus Magna chamada de calcinatio.
É importante destacar que pelo fato do fogo ter um rico simbolismo, que vai da
libido (paixões) ao fogo sagrado, não devemos tentar especificar a imagem do
fogo unicamente como calcinatio, mas
procurar examinar a aparição fenomenológica dessa imagem.
A calcinação, do latim calx, calcinatio é o processo de se queimar substâncias diversas. De
acordo com Heck (2010), a calcinação é um tratamento de remoção de água, CO2 e
outros gases que estão ligados quimicamente a alguma outra substância, que pode
ser tipicamente um hidrato ou carbonato. É um procedimento vigorosamente
endotérmico, ou seja, o calor é absorvido nessa reação, que necessita de fontes
de altas temperaturas, podendo chegar aproximadamente até 900°C.
Segundo Edinger (1990), o exemplo clássico de
calcinação, do qual surgiu termo cal (calx= cal), é o aquecimento da pedra
calcária (CaCO3) ou do hidróxido de cálcio (Ca(OH)2) para produzir a cal viva
(CaO, calx viva). Ao se acrescentar água a cal viva, esta produz calor. Devido
a essa propriedade, muitos alquimistas acreditavam que a cal portava o fogo
dentro de si, e por diversas vezes, já chegaram a compará-la ao próprio fogo.
Edinger (1990), em seu livro anatomia da psique, afirma
que a sequência das operações alquímicas parece não ter importância do ponto de
vista da significação psicológica, mas que, no entanto, a operação calcinatio é tida como a operação
inicial em grande parte das listas dos alquimistas. Esta operação indica
transição. Após a descida ao inferno, o princípio que rege a consciência pode
morrer, pode-se descer ao reino animal e suportar as ferozes energias
instintivas.
Nos processos alquímicos a calcinatio busca transformar o que é negro em o que é branco
através do seu calor. Esta operação atua sobre a nigredo, que seria de acordo com os alquimistas, a massa confusa, a
matéria prima, aquecendo-o, ou seja, transformando-a no estado branco ou albedo, que simbolicamente pode ser
definida como um momento de maior entendimento. Jung (2011), diz que “o
alvejamento (albedo s. dealbatio) é
comparado ao ‘ortus solis’ (nascer do
sol). É a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurecimento”(p.138).
O fogo é purgador, pois atua sobre a
matéria negra, a nigredo, mas ele
também pode ser redentor. Os alquimistas utilizavam a calcinatio,
portanto, com fins de purificação. Só assim o ego pode renascer, como a fênix,
num estado purificado. Era depois da passagem pelo fogo que o material a ser
trabalhado era identificado. A matéria prima era diferenciada, ou seja, a calcinatio livra a matéria de tudo o
que é naturalmente impuro nela mesma.
Edinger (1990),
descreve a calcinatio como um
processo de secagem:
Um importante componente da
psicoterapia envolve a secagem dos complexos inconscientes que vivem na água. O
fogo ou intensidade emocional necessária para esta operação parece residir no
próprio complexo, tornando-se atuante tão logo o paciente tenta tornar o
complexo consciente, mediante o compartilhamento com outra pessoa. Todos os
pensamentos, ações e lembranças que trazem vergonha, culpa, ansiedade precisam
ter plena expressão. O afeto liberado torna-se fogo capaz de secar o complexo e
purificá-lo de sua contaminação inconsciente. (EDINGER,1990, p, 61)
Assim, o processo de psicoterapia deve envolver a
conscientização de complexos inconscientes. A calcinatio pode ser vista simbolicamente como um processo de
secagem desses complexos, pois é a partir do fogo ou da energia que alimenta o
próprio complexo que o paciente começa a torna-se consciente. A intensidade
emocional reside nesse mesmo complexo, que precisa de alguma forma, ser
expresso. Uma vez que o afeto é liberado, o complexo é purificado e não possui
mais energia para uma contaminação autônoma do inconsciente.
Para que ocorra uma calcinatio adequada, o material a ser trabalhado deve ser
corretamente localizado, caso contrário, o que estará acontecendo não se
diferenciará de uma autoflagelação.
Muitos alquimistas praticantes cometem um erro já
de início, ao realizarem essa calcinatio
com substância errada... ou ao escolherem falso método, corroendo, em vez de
calcinar, os corpos metálicos com quais operam. A calcinação só pode ocorrer
por meio do aquecimento interior do corpo, assistindo pelo amigável calor
exterior, mas a calcinação através de um agente heterogêneo só pode destruir a
natureza metálica, se é que tem algum efeito. (EDINGER, 1990, p.62)
Pela passagem do fogo da calcinatio é que nossos desejos são transformados. Os nossos
desejos primitivos são frustrados e transmutados em novos conteúdos. Ou, dito
de outra forma, as energias da psique arquetípica primeiro aparecem em estado
de identificação com o ego, exprimindo-se como desejos de prazer para o ego, de
poder para o ego. O fogo da calcinatio
purga essas identificações e impulsos da raiz ou umidade primordial, deixando o
conteúdo em sua condição eterna ou transpessoal, tendo restado seu aquecimento
natural, isto é, sua energia e seu funcionamento próprios.
Desse modo, a calcinatio
representa uma nova forma de relacionamento com os afetos, uma vez que o
aspecto arquetípico da existência passa a ser observado. A partir do momento
que ocorre um relacionamento com o aspecto transpessoal da nossa psique, os
afetos passam a ser experimentados não mais como desejos frustrados, mas sim
como algo de espiritual. Ou seja, ocorre uma transformação do desejo.
No caso em análise, o sonho de Elizabeth, pode-se
notar que a calcinatio proporcionou a
esta mulher uma nova maneira de relacionamento com os aspectos transpessoais da
sua psique. A partir dessa transformação, ela passou a experimentar o fogo como
algo espiritual não mais algo terrestre. Edinger (1990), cita Jung ao falar
sobre essa dura transformação que envolve muito suor e sofrimento. Ele diz que
quando o seu demônio sofre, você também sofre, no entanto, após essa passagem
pode-se perceber um crescimento interior muito recompensador e confortante. O
que será muito necessário, uma vez que a calcinatio
é apenas o começo para uma grande jornada.
Vale observar que no sonho de Elizabeth existe
uma substância a ser localizada para ser calcinada e, de maneira subjetiva,
podemos dizer que existe um desejo ou reivindicação dela que precisa ser
identificado no inconsciente. É preciso entrar em contato com esse conteúdo
para que ela possa analisá-lo e transformá-lo. Então, no interior desse corpo
ocorre o aquecimento que pode operar as transformações necessárias para o
crescimento psíquico.
A iniciação a esta nova anatomia alquímica,
anatomia da Psique, envolveu a alma de Elizabeth que queimava e trouxe a ela um
novo entendimento. Ela estava envolvida pelo fogo de um complexo. Um complexo a
secar. Terapeuticamente falando, havia muitas emoções afloradas de Elizabeth
que pediam pela secagem. A calcinatio
remove essas águas e transforma o negro em branco, o nigredo em albedo. Metaforicamente,
nasce um maior entendimento para ela.
Vários estudos alertam para a existência de uma
resistência às mudanças nas sementes da própria natureza, e que é necessário um
calor intenso de forma a retirar o ser da inércia inata. Elizabeth precisava
queimar seu corpo para sair da inércia. A luz deste fogo clareou para ela a
importância dela operar
transformações em sua vida necessárias ao seu crescimento psíquico.
Elizabeth, por meio do processo
terapêutico, compreendeu que o deixar-se queimar e enrubescer significava que seu
momento necessitava de uma mudança na atitude. Era necessário criar uma nova
relação consigo mesmo, agora não mais colorida apenas pelo branco da
ingenuidade e encharcada pelas águas da infância. Seu momento pedia uma relação
mais íntima e interna consigo mesma capaz de se priorizar. Um movimento em que,
com coragem, ela andasse de mãos dadas com os próprios medos deixando queimar antigas
águas em busca da prata.
Assim, o fogo queimou, ardeu, mas também iluminou a
vida de Elizabeth. Trouxe visibilidade ao seu próprio processo. O momento é
novo. As imagens alquímicas de seu sonho vêm a concretizar suas experiências de
transformação por que ela passa em sua psicoterapia.
Já dizia o sábio Jung que o fogo é um símbolo que
representa processos de transformação psicológica. Assim como os antigos
alquimistas se utilizavam do fogo para transformar metais pobres em ouro,
sonhar com fogo pode ser um gatilho incentivador de grandes transformações
interiores. Assim aconteceu com Elizabeth, na sua jornada rumo ao processo de
individuação.
Observe o quanto é importante um analista desenvolver
a arte de identificar todos estes elementos, estando atento para discriminar
qual o caminho a seguir, como modificar ou retirar elementos que estão no
interior de seu ser, para assim produzir a síntese e a integração, ou
utilizando a linguagem alquímica, a coniunctio mais elevada possível. Jung
afirmou que o processo psicoterápico segue as etapas do processo alquímico, e
que a busca dos alquimistas da “pedra filosofal”, se assemelhava á busca da
realização do Self, no processo de individuação.
Assim, da mesma forma que o alquimista aprende a
dosar o fogo, as substâncias e os metais mais importantes utilizados em seus
experimentos, o analista terá que adquirir a capacidade de equilibrar seus
pacientes. O alquimista/analista precisa estar atento para não cometer erros
que poderão prejudicar todo o processo, calcinando a substância errada, ou
escolhendo a operação inconveniente que poderá consumir ou desgastar as substâncias
necessárias para o desenvolvimento saudável do processo, por isso se faz tão necessário
também o conhecimento das principais substâncias presentes ou demandadas no
processo de cada indivíduo.
Para finalizar, gostaria de citar a bela metáfora
de Rubem Alves que ilustra, muito bem, tudo que falamos sobre os processos alquímicos:
A
vida é como a vela: para iluminar é preciso queimar. A vela que ilumina é uma
vela alegre. A luz é alegre. Mas a vela que ilumina é uma vela que morre. É
preciso morrer para iluminar. Há uma tristeza na luz da vela. Razão porque ela,
a vela, ao iluminar, chora. Chora lágrimas quentes que escorrem da sua chama.
Há velas felizes cuja chama só se apaga quando toda a cera foi derretida. Mas
há velas cuja chama é subitamente apagada por um golpe de vento...
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
EDINGER,
Edward F. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São
Paulo: Cultrix, 1990.
ELIADE,
Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
HECK,
Nestor Cesar.UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em
24/08/2010 <www.ct.ufrgs.br/ntcm/graduacao/ENG06632/Calcinacao.pdf
JUNG,
Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG,
C.G. Psicologia e Alquimia. 5°ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
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C.G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
RAMALHO,
Cybele M. R. Aproximações entre Jung e Moreno. São Paulo: Ágora, 2002.
VON
FRANZ, Marie Louise. A Alquimia: Introdução ao Simbolismo e a Psicologia. São
Paulo: Cultrix, 1993
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