A sexualidade infantil segundo Jung: divergências com a psicanálise primeva
Ana Paula Chaplin
Quando Jung rompeu com Freud, ele estava negando a etiologia sexual das
neuroses, como alguns críticos não tão bem informados falam? Jung se preocupou
somente com o desenvolvimento do adulto desconsiderando o desenvolvimento da
criança? Qual a real divergência na concepção junguiana de desenvolvimento da
sexualidade em relação a concepção freudiana? Essas perguntas ainda são atuais
devido aos maus entendidos ou boca a boca que imperam infelizmente também nas
ciências humanas, local onde o senso crítico deveria substituir o senso comum,
porém muitas vezes não é isso o que acorre. No livro de Jung, O
Desenvolvimento da Personalidade, há alguns artigos e ensaios em que são
apresentadas as principais considerações sobre a infância, educação de crianças
e influência da personalidade dos pais no desenvolvimento dos filhos, onde o
que se leva em conta é principalmente a qualidade do relacionamento psíquico
entre os pais como fator importante no desenvolvimento psíquico infantil, e
também o papel do PENSAR, e de sua elaboração no desenvolvimento dos rudimentos
e dos conflitos, entre eles os de ordem sexual, com vista ao aperfeiçoamento
crescente das funções superiores da inteligência.
Sem dúvida a sexualidade não é o único fator nesse desenvolvimento, mas é sim
levada em consideração por Jung, e não é pouca a importância que ele dá a sexualidade,
é uma importância constitucional a qual inúmeras observações já comprovaram e
que seria uma irresponsabilidade sua negação. Porém, este não é o único fator
de desenvolvimento humano, e nesse livro ele deixa claro uma posição intrínseca
sua, que é considerada até mesmo pós-moderna por estudiosos das ciências
humanas, qual seja, a de que é da natureza dessa ciência poder apresentar
apenas pontos de vistas heurísticos, e não explicativos e redutores como uma
perspectiva positivista gostaria de um dia alcançar. Sua grande crítica a Freud
é ter reduzido a etiologia das neuroses a uma única causa explicativa,
portanto, única e exclusivamente a sexualidade.
Na introdução de seu livro há o apontamento de alguns dos pontos de vista que
deveriam servir para formar o grande quebra cabeça que compõe a psique humana,
os estudos acerca da sexualidade e sua perspectiva hedonista estão entre eles,
juntamente com o estudo baseado no ponto de vista da busca do poder, do qual
Adler é um grande proponente, embora não seja tão estudado no Brasil; o ponto
de vista do desenvolvimento lógico e cognitivo, que apresenta outras
possibilidades de entendimento e intervenção e o qual Jung não exclui, muito
pelo contrário, ele dá destaque ao desenvolvimento do pensamento dentro de sua
abordagem, e o desenvolvimento das concepções religiosas iniciais a respeito da
natureza de Deus, do infinito, do eterno, que sem dúvida são perguntas que uma
vez ativadas ajudam no desenvolvimento do pensamento, e que mesmo poderiam
estar na base de futuras crises existenciais, principalmente se dentro de uma
educação que reprimiria esses questionamentos.
Jung não negligenciou a infância ao dar atenção ao comportamento adulto, e
mesmo concebia que os desenvolvimentos infantis e a mente infantil existiam
dentro do adulto como gérmen de futuras disposições polivalentes possíveis e
ainda não desenvolvidas e acessadas. Se formos focar na diferença entre Jung e
Freud no quesito sexualidade, há uma outra diferença que se acentua além da
abordagem heurística-abrangente de Jung em contraste com a abordagem
redutiva-causal de Freud, Jung dizia que o componente sexual infantil não tende
para um alvo como na sexualidade adulta, e que casos em que a sexualidade
infantil buscava uma prática, como na masturbação, eram já devido a um
desenvolvimento anormal das concepções intelectuais frente a qualquer conflito
que tenha se apresentado.
Os conflitos nessa ordem seriam resolvidos através da elaboração e do
desenvolvimento do pensar, e nesse sentido, Jung chamou atenção para a
vulnerabilidade particular, mas não exclusiva, das crianças bem dotadas na
apresentação de precocidades neuróticas, isso porque ao manifestarem sua
curiosidade sexual ou de outras ordens precocemente, podem ter suas
inquietações barradas por uma pedagogia despreparada e repressora. Jung fez
críticas ao modelo pedagógico de seu tempo que requeria mudanças, como ainda
hoje se faz necessário, e os principais causadores de neuroses nesse sentido
apontados por Jung seriam a má educação dos pais e professores a respeito do
tema. A nuance diferencial é que ao contrário do que era concebido na
psicanálise de Freud, em que a inteligência surgia a partir de uma frustração
dos desejos na sua busca hedonista, para Jung a sexualidade e inteligência
provêm de uma mesma matriz polivalente, e o pensamento se desenvolve junto com
essa disposição constitucional rudimentar, não para atingir o objeto de desejo
sexual, mas para realizar-se em sua finalidade intrínseca. Assim, a criança não
seria uma perversa polimorfa, mas teria disposições polivalentes, não somente
de natureza ou com função sexual.
Curiosamente então, a psicologia de Jung foca sim o processo de desenvolvimento
infantil das funções superiores através da elaboração de conflitos que surgem e
desafiam a totalidade, e suas reflexões também tem impacto não só na clínica,
mas na esfera pedagógica, escolar ou de orientação dos pais e professores,
sendo essas as notícias que deveriam estar correndo boca a boca.
Segundo Jung "é por meio da formação de concepções que a libido encontra o
caminho livre e apto para o desenvolvimento, de modo que lhe seja assegurada
sua atuação permanente" (JUNG, p. 6). Ao contrário do adulto que não
aceita um desenvolvimento e modificação de concepções intelectuais para servir
de sucedâneo para o objeto sexual, é exatamente isso o que acontece com a
criança quando se lhe aduba a inteligência e curiosidade, o componente sexual
rudimentar entra na dinâmica e ajuda a desenvolver o intelecto tendo na verdade
este fim (bem... aqui faço uma ressalva, este livro é de 1910, e embora esteja
correto, os desenvolvimentos posteriores da psicologia analítica fariam com que
fosse mais adequado dizer que estes desenvolvimentos tem como fim a alma total,
que inclui outros fatores importantes além do pensamento lógico e simbólico, como
o sentimento, percepções).
Nisso a psicologia analítica e psicanálise primeva não estavam de comum acordo,
embora seja claro que a psicanálise teve um desenvolvimento desde a ruptura de
Freud e Jung que a modificou. Porém, nessa época, para a psicologia analítica o
gérmen intelectual já estaria lá enquanto rudimento, e deveria ser satisfeito
em suas necessidades, enquanto que na psicanálise o intelecto só surgiria e se
desenvolveria em virtude da frustração do objeto alvo de seu desejo, que
levaria então a alucinação do objeto e criação assim do espaço mental.
Uma neurose em Jung seria tratada por meio da formação de concepções e
ferramentas intelectuais na relação com os educadores, e "mesmo aceitando
que também a sexualidade adulta se desenvolve a partir desses gérmens
polivalentes, não se pode concluir de modo algum que a sexualidade infantil
primordial seja pura e simplesmente sexualidade" (JUNG, p.7).
TABELA COM PRINCIPAIS DIFERENÇAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO INFANTIL EM JUNG E
FREUD
Diferenças
acerca do desenvolvimento infantil e etiologia das neuroses
|
Jung
|
Freud
|
Abordagem
|
Heurística-inclusiva-abrangente
(aceita outros pontos de vista)
|
Redutiva-causal-fechada
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Finalidade
da sexualidade
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A
sexualidade não tem a mesma função de obtenção do objeto de desejo como no
adulto. Os instintos têm como finalidade o desenvolvimento da alma. As
frustrações e possíveis neuroses advém da falta de concepções e meios
adequados que satisfaçam as curiosidades despertadas pelos afetos instintivos
|
A
sexualidade da criança tende para o objeto alvo, e se frustra ao não realizar
seu desejo.
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Origem
da Inteligência
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O
intelecto está em estado rudimentar desde o início junto com a sexualidade e
outros instintos
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O
intelecto se forma como uma consequência da frustração hedonista
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Teoria
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Teoria
da libido (energia que alimenta e se transforma em outros instintos, não só o
sexual)
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Teoria
sexual
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Natureza
da criança
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A
criança tem disposições polivalentes
|
A
criança é um perverso polimorfo
|
Bibliografia
C. G. JUNG. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 1998,
vol. XVII.