SONHOS
E ANALOGIA SIMBÓLICA COM AS FASES DA OPUS MAGNA
Sheila de Araújo Barboza
De acordo com Edinger (2004), Jung
percebeu que a Psicologia Analítica coincidia com a alquimia, pois todo o
procedimento alquímico representa o processo de individuação. O que posso dizer
sinteticamente é que este último aspecto se refere ao “indivíduo em ação” em
busca do Si-mesmo verdadeiro, ou
também chamado de Self. Na linguagem
da alquimia pode ser chamado também de Pedra Filosofal.
Contudo, para acessar esse “tesouro”,
que é o Self ou Pedra Filosofal, é
necessário que se descubra o material adequado que na alquimia é chamado de prima matéria. Esta deve ser submetida a
uma série de operações, mas apenas 7 (sete), dentre outras existentes, ganham
destaque no livro citado. São elas: calcinatio,
solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio, coniunctio.
Segundo Edinger (2004), praticamente todo o conjunto de imagens alquímicas
podem ser organizadas em torno dessas operações.
O autor esclarece uma questão que eu
interrogava que diz respeito à manutenção dos nomes das operações alquímicas em
latim. Assim, a justificativa é de que objetiva diferenciar os processos
psicológicos dos procedimentos químicos. Logo, no princípio do contato com tais
palavras em latim, eu tinha a impressão de que a sua manutenção reservava uma
representação simbólica e arcaica do termo. É como se carregasse mais do que a
própria palavra em seu sentido estrito.
Creio que obtive tal confirmação
quando o autor diz:
Cada
uma dessas operações é o centro de um elaborado sistema de símbolos. Esses
símbolos centrais da transformação compõem o principal conteúdo de todos os
produtos culturais. Elas fornecem as categorias básicas para a compreensão da
vida da psique, ilustrando praticamente toda a gama de experiências que
constituem a individuação (p.34).
A relação da alquimia com esse
processo da psique é muitas vezes tão semelhante que preciso retomar alguns
aspectos discutidos no livro. Jung, citado por Edinger (2004), demonstrou que o
simbolismo alquímico é, em grande parte, produto da psique inconsciente. Porém,
os alquimistas desconheciam isso e, ao explorar os materiais com experimentos
químicos, na realidade estavam ali projetando[1]
seu inconsciente.
O processo de transformação na
alquimia, através de suas imagens, concretiza a transformação pela qual
passamos na psicoterapia. A compreensão e relevância das imagens da alquimia só
ocorre para aqueles que já tiveram uma experiência pessoal do inconsciente. É a
partir daí que é possível sua equivalência. Creio que os meus próprios sonhos e
de alguns clientes coincidem com essa equivalência dos procedimentos da
alquimia. Isso é possível quando estamos num nível mais profundo de contato com
o inconsciente e vivendo um franco processo de transformação, sendo este último
fruto de um trabalho, muitas vezes longo, de reconhecimento de nossas sombras,
persona e animus/anima[2],
dando mais força para a busca do Self
no processo psicoterápico, tanto do cliente quanto do psicoterapeuta. Nesse
ponto, reafirmo a importância de o psicoterapeuta persistir no seu processo
pessoal de psicoterapia para lidar de modo honesto com os conteúdos dos seus
clientes. Falo aqui de honestidade porque o que diferencia um psicoterapeuta
que não “se trabalha” de um charlatão? O fato de ter apenas um diploma? Não. O
nosso instrumento de trabalho somos nós mesmos e para sermos honestos na nossa
prática, precisamos nos submeter ao “processo alquímico pessoal” que
vivenciamos na psicoterapia.
Como
nos alerta Guggenbühl-Craig (1978), no seu impactante livro “O abuso do poder
na psicoterapia”, mesmo o analista profissionalmente sincero que se mantém em
contato com seu próprio inconsciente, estudando cuidadosamente seus sonhos e
outras manifestações, não está livre do papel de charlatão. Assim como as demais
pessoas, os analistas costumam ter um ponto cego na própria sombra. Então, como
fica o analista ou psicoterapeuta que não se cuida?
Falar de transformação em alquimia
remete-nos à ideia de uma primeira matéria. Para os alquimistas, uma dada
substância para ser transformada necessita ser reduzida ou regredida ao seu
estado indiferenciado original. Nos trechos da alquimia que fazem referência a
encontrar, e não a produzir a prima matéria, podemos identificar a mesma ação
na psicoterapia. Buscamos nesta última a prima matéria que está na sombra
(parte da personalidade tida como a mais desprezível nos seus aspectos
negativos). Como diz Edinger (2004), “os aspectos mais dolorosos e humilhantes
de nós mesmos são os próprios aspectos a serem trazidos à luz e trabalhados”
(p. 32).
Após esta breve explanação
relacionando a alquimia e a psicoterapia, passo a descrever os sonhos e suas
análises através das operações alquímicas nos seus aspectos simbólicos. Os
sonhos foram meus e trabalhados na minha psicoterapia pessoal. Naturalmente as
questões mais relevantes e íntimas foram preservadas e não compartilhadas.
Sonho
1: Eu estava no mar me encaminhando para
dentro dele quando percebo que as ondas apareciam também perpendicular a ele e
com uma altura bem acima da minha estatura. Minha preocupação era com a minha
filha pequena (3 anos de idade) que estava mais atrás, ainda na parte rasa e
inicial do mar. Ela estava nos braços de uma pessoa adulta que a segurava e
ambas estavam deitadas na água. Eu temia que a criança se afogasse e pedia para
que ambas se levantassem. O risco era também delas se afogarem através das
ondas que vinham altas e pela lateral do mar.
Este
sonho apresenta equivalentes simbólicos da solutio
e esta operação é um dos principais procedimentos da alquimia. A solutio pertence à água. Como nos diz
Edinger (2004), “... a solutio
transforma um sólido num líquido. O sólido parece desaparecer no solvente, como
se tivesse sido engolido. (...) Considerava-se a água como o útero e a solutio como um retorno ao útero, para
fim de renascimento” (p.67).
É do “útero materno”,
simbolicamente, que nasce o ego. Num estágio ainda de imaturidade o ego tende a
achar prazeroso render-se à tal regressão, mas num estágio posterior do
desenvolvimento, a perspectiva de solutio
gera ansiedade, porque o estado de autonomia do ego, alcançado a duras penas,
estará sob ameaça de dissolução. Os sentimentos predominantes no sonho foram de
angústia, medo e preocupação.
Observo que existe uma figura
central no sonho que é a criança. De acordo com Edinger (2004) a criança
simboliza o estado original, a primeira matéria fresca e vital, mas também
vulnerável e insegura. Refere que o surgimento da criança nos sonhos pode
simbolizar também o Self.
A cena traz a criança sob a ameaça
de afogamento por estar deitada na água ou por ser inundada pela grande onda. O
autor ilustra que os sonhos com inundações se referem à solutio e representam uma ativação do inconsciente, que ameaça
dissolver a estrutura estabelecida do ego. As grandes transições da vida
costumam ser representadas pelas experiências de solutio.
O livro de Edinger traz sete (7)
aspectos principais do simbolismo da solutio.
Nesta análise do sonho destaquei e relacionei apenas três aspectos, que são o
retorno ao útero materno ou estado primal, a dissolução e o outro aspecto que
seria a suavização. Segundo o autor, “a solutio
resulta do confronto entre o ego e o inconsciente” (p.96). Naturalmente, este entendimento
tem como base o autoconhecimento proporcionado por meu processo psicoterápico
junguiano que venho fazendo até então.
Diante do exposto, ressalto a
explicação de Edinger no que diz respeito ao que pode ser salvo no ego no
procedimento da solutio. Diz que
aquilo que não merece salvação é dissolvido e derretido, a fim de ser
recomposto sob uma nova forma de vida. Como diz o autor, “o ego comprometido
com esse processo transpessoal cooperará com ele e experimentará sua própria
redução como um prelúdio à vinda da personalidade mais ampla, a totalidade do Si-mesmo” (p.99).
Um outro aspecto muito interessante
citado neste livro é quando ele diz que tanto o psicoterapeuta quanto o cliente
devem submeter-se à solutio. É necessária
fluidez, pois enquanto estiver “seco e duro” tal como o metal que necessita ser
transmutado, precisa voltar à sua prima matéria, que é suave e fluida. Então cliente
e psicoterapeuta precisam ser suaves e fluidos, pois na psicoterapia há de
acontecer uma influência mútua, que se assemelha à mistura de duas substâncias
químicas que se transformam, caso haja combinação entre ambas. Deste modo, o
psicoterapeuta influencia e é influenciado, passando também por transformações.
Isto me chamou a atenção porque tive clientes vivenciando a solutio e tive uma noção clara desse
processo de influência supracitado.
Agora descrevo o sonho que se seguiu
ao já relatado.
Sonho
2: Havia um morro com a existência de
várias casas de um lado a outro, formando uma rua que descia até o final dele.
A rua era de barro e eu a descia; nesse meio tempo olhei para trás e para o
alto e vi que havia um incêndio no local onde eu havia deixado a minha filha
pequena com uma pessoa adulta e logo me preocupei com ela, pois corria risco em
meio ao fogo.
Este
sonho nos remete a outra operação da alquimia que é a calcinatio. Esta é a operação do fogo que se relaciona com imagens
do fogo livre, queimando ou afetando substâncias. Embora na maioria dos textos
da alquimia citem as listas das operações iniciadas com a calcinatio, Edinger (2004) esclarece que qualquer uma das operações
pode ser a inicial, sendo seguida pelas outras.
O
sonho da calcinatio ocorreu após o
relacionado à solutio. Também possui
uma criança que está com uma pessoa adulta, correndo risco agora de serem
queimadas. Estou como observadora da situação e parece-me que, simbolicamente,
representa o ego. Em tal condição me preocupo com a criança mais uma vez que
corre risco. Interessante notar que ela está no alto do morro e eu estou na
descida deste.
Numa
parte do texto, Edinger nos diz que, simbolicamente, o fogo da calcinatio é um fogo purgador,
embranquecedor, pois atua sobre a matéria negra, a nigredo, tornando-a branca. Pinço também outro trecho onde ele diz
que é esse o destino de aspectos do ego que se identificam com as energias
transpessoais da psique e as utiliza para fins de prazer ou de poder pessoais.
Ele ressalta que esse aspecto identificado com a energia do Si-mesmo, deve passar pela calcinatio.
Acredito
que não é ao acaso que a criança está no alto e sob o cuidado de uma pessoa
adulta. Certamente está relacionada com uma identificação com aspectos do poder
pessoal que está em meio ao fogo. Também suponho que está mais próximo da
consciência do que do inconsciente mais profundo. Fica num local onde a rua é
de barro. Não sei exatamente o que ocorre e qual a relação desses elementos
(fogo e barro), mas também chamam minha atenção e me faz pensar que existe
algum simbolismo aí. O barro, neste sonho, me remeteu a um lugar ainda rústico,
não urbanizado. Então, é algo ainda rudimentar, desprovido de uma sofisticação
que tornaria tudo mais acabado e definitivo. Sinto que ao escrever a respeito
deixei fluir como se existisse um conhecimento que vai além do racional, talvez
isso tenha relação com o fato de já ter vivenciado uma solutio.
Considerei
mais instigante o fato da calcinatio
vir após a solutio nos simbolismos
dos meus sonhos, diante do que Edinger (2004) diz, “a calcinatio é um processo de secagem” (p.61) e na relação feita com
a psicoterapia diz respeito à secagem dos complexos inconscientes que “vivem na
água”. O fogo reside no próprio complexo e torna-se consciente mediante o
compartilhamento com outra pessoa – o psicoterapeuta. O afeto liberado através
da expressão de pensamentos ou ações que trazem vergonha, culpa ou ansiedade,
torna-se o fogo capaz de secar o complexo e purificá-lo de sua contaminação
inconsciente. Ele também ressalta que a principal característica da calcinatio é a frustração do desejo que
se torna o fogo dessa operação.
Sobre este último aspecto – o desejo
– gostaria de transcrever um trecho de Jung citado pelo autor que achei bem
representativo e me faz lembrar um desenho que fiz, posterior aos sonhos
descritos, onde não havia aparente associação voluntária com estes. Era uma
figura aparentemente masculina em meio ao fogo e com os braços e cabeça
elevados para cima, como se estivesse participando de um ritual sagrado.
Certamente era uma representação simbólica do animus. Retomando, o texto diz:
Quando você se
abandona ao desejo, seu desejo se volta para o céu ou para o inferno, você dá
um objeto à anima (ou animus- grifo
meu); e esse objeto vai para o mundo,
em vez de ficar no interior, seu lugar próprio... mas se você puder dizer:
‘sim, eu o desejo e tentarei obtê-lo, mas não sou obrigado a tê-lo, se decidir
renunciar, eu posso’; não há chances para o animus ou para a anima. Caso
contrário, você é governado pelos seus desejos, está possuído..., mas se tiver
colocado o animus ou a anima numa garrafa, está livre de possessão, mesmo que
sofra interiormente, porque quando o demônio sofre, você também sofre (...).
Você vai, pouco a pouco, ficar calmo e mudar. E então vai perceber que há uma
pedra crescendo na garrafa... desde que o autocontrole, ou a não indulgência, tenha
se tornado um hábito, é uma pedra... quando essa atitude se torna um fait accompli (fato consumado – grifo meu), a pedra será um diamante (Jung apud
Edinger, 2004, p.64).
BIBLIOGRAFIA
CORUMBA, R. M. e
RAMALHO, C, M. R. Descobrindo enigmas de
heróis e contos de fadas: entre a psicologia analítica e o psicodrama.
Aracaju: Edições Profint, 2008.
EDINGER, E. F. Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico
na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 11ª. edição, 2004.
GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia e na
medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Santa Catarina: edições
Achiamé,1978.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
[1] Projeção: “quando as pessoas observam nos outros as
suas próprias tendências inconscientes, estão fazendo o que chamamos projeção”
(Jung, 2008, p.227). A projeção pode ser dirigida a alguém ou algo.
[2]Sombra: “tendências e impulsos que (a pessoa) nega
existirem em si mesma, mas que consegue perfeitamente ver nos outros” (Jung,
2008, p.222).
Persona: “corresponde à
maneira de uma pessoa se apresentar em sociedade. Atendendo às exigências do
meio social onde vive, o homem assume uma aparência artificial, pois não
corresponde ao que realmente ele é, embora atinja a finalidade de agradar os
outros, adaptando-se assim, às exigências do meio ambiente” (Corumba e Ramalho,
2008, p. 46).
Anima: “é o elemento
feminino no inconsciente masculino. É a personificação de todas as tendências
psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis,
as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a
sensibilidade à natureza e, por fim, mas não menos importante, o relacionamento
com o inconsciente”. (Jung, 2008, p.234-235).
Animus: “é o elemento
masculino no inconsciente feminino. (...) Tal como a anima, o animus não
consiste apenas de qualidades negativas como a brutalidade, a indiferença, a
tendência à conversa vazia, às ideias silenciosas, obstinadas e más. Também
apresenta um lado muito positivo e valioso; pode lançar uma ponte para o self
por meio da atividade criadora. (...) O animus pode tornar-se um companheiro
interior precioso que vai contemplá-la com uma série de qualidades masculinas
como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a sabedoria espiritual” (idem,
p.258).