terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Artigo XII


SONHOS E ANALOGIA SIMBÓLICA COM AS FASES DA OPUS MAGNA
                                                                                                    Sheila de Araújo Barboza
           
            De acordo com Edinger (2004), Jung percebeu que a Psicologia Analítica coincidia com a alquimia, pois todo o procedimento alquímico representa o processo de individuação. O que posso dizer sinteticamente é que este último aspecto se refere ao “indivíduo em ação” em busca do Si-mesmo verdadeiro, ou também chamado de Self. Na linguagem da alquimia pode ser chamado também de Pedra Filosofal.
            Contudo, para acessar esse “tesouro”, que é o Self ou Pedra Filosofal, é necessário que se descubra o material adequado que na alquimia é chamado de prima matéria. Esta deve ser submetida a uma série de operações, mas apenas 7 (sete), dentre outras existentes, ganham destaque no livro citado. São elas: calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio, coniunctio. Segundo Edinger (2004), praticamente todo o conjunto de imagens alquímicas podem ser organizadas em torno dessas operações.
            
            O autor esclarece uma questão que eu interrogava que diz respeito à manutenção dos nomes das operações alquímicas em latim. Assim, a justificativa é de que objetiva diferenciar os processos psicológicos dos procedimentos químicos. Logo, no princípio do contato com tais palavras em latim, eu tinha a impressão de que a sua manutenção reservava uma representação simbólica e arcaica do termo. É como se carregasse mais do que a própria palavra em seu sentido estrito.   
            Creio que obtive tal confirmação quando o autor diz:
Cada uma dessas operações é o centro de um elaborado sistema de símbolos. Esses símbolos centrais da transformação compõem o principal conteúdo de todos os produtos culturais. Elas fornecem as categorias básicas para a compreensão da vida da psique, ilustrando praticamente toda a gama de experiências que constituem a individuação (p.34).
            A relação da alquimia com esse processo da psique é muitas vezes tão semelhante que preciso retomar alguns aspectos discutidos no livro. Jung, citado por Edinger (2004), demonstrou que o simbolismo alquímico é, em grande parte, produto da psique inconsciente. Porém, os alquimistas desconheciam isso e, ao explorar os materiais com experimentos químicos, na realidade estavam ali projetando[1] seu inconsciente.
            O processo de transformação na alquimia, através de suas imagens, concretiza a transformação pela qual passamos na psicoterapia. A compreensão e relevância das imagens da alquimia só ocorre para aqueles que já tiveram uma experiência pessoal do inconsciente. É a partir daí que é possível sua equivalência. Creio que os meus próprios sonhos e de alguns clientes coincidem com essa equivalência dos procedimentos da alquimia. Isso é possível quando estamos num nível mais profundo de contato com o inconsciente e vivendo um franco processo de transformação, sendo este último fruto de um trabalho, muitas vezes longo, de reconhecimento de nossas sombras, persona e animus/anima[2], dando mais força para a busca do Self no processo psicoterápico, tanto do cliente quanto do psicoterapeuta. Nesse ponto, reafirmo a importância de o psicoterapeuta persistir no seu processo pessoal de psicoterapia para lidar de modo honesto com os conteúdos dos seus clientes. Falo aqui de honestidade porque o que diferencia um psicoterapeuta que não “se trabalha” de um charlatão? O fato de ter apenas um diploma? Não. O nosso instrumento de trabalho somos nós mesmos e para sermos honestos na nossa prática, precisamos nos submeter ao “processo alquímico pessoal” que vivenciamos na psicoterapia.
Como nos alerta Guggenbühl-Craig (1978), no seu impactante livro “O abuso do poder na psicoterapia”, mesmo o analista profissionalmente sincero que se mantém em contato com seu próprio inconsciente, estudando cuidadosamente seus sonhos e outras manifestações, não está livre do papel de charlatão. Assim como as demais pessoas, os analistas costumam ter um ponto cego na própria sombra. Então, como fica o analista ou psicoterapeuta que não se cuida?
            Falar de transformação em alquimia remete-nos à ideia de uma primeira matéria. Para os alquimistas, uma dada substância para ser transformada necessita ser reduzida ou regredida ao seu estado indiferenciado original. Nos trechos da alquimia que fazem referência a encontrar, e não a produzir a prima matéria, podemos identificar a mesma ação na psicoterapia. Buscamos nesta última a prima matéria que está na sombra (parte da personalidade tida como a mais desprezível nos seus aspectos negativos). Como diz Edinger (2004), “os aspectos mais dolorosos e humilhantes de nós mesmos são os próprios aspectos a serem trazidos à luz e trabalhados” (p. 32).
            Após esta breve explanação relacionando a alquimia e a psicoterapia, passo a descrever os sonhos e suas análises através das operações alquímicas nos seus aspectos simbólicos. Os sonhos foram meus e trabalhados na minha psicoterapia pessoal. Naturalmente as questões mais relevantes e íntimas foram preservadas e não compartilhadas.
Sonho 1: Eu estava no mar me encaminhando para dentro dele quando percebo que as ondas apareciam também perpendicular a ele e com uma altura bem acima da minha estatura. Minha preocupação era com a minha filha pequena (3 anos de idade) que estava mais atrás, ainda na parte rasa e inicial do mar. Ela estava nos braços de uma pessoa adulta que a segurava e ambas estavam deitadas na água. Eu temia que a criança se afogasse e pedia para que ambas se levantassem. O risco era também delas se afogarem através das ondas que vinham altas e pela lateral do mar.
         Este sonho apresenta equivalentes simbólicos da solutio e esta operação é um dos principais procedimentos da alquimia. A solutio pertence à água. Como nos diz Edinger (2004), “... a solutio transforma um sólido num líquido. O sólido parece desaparecer no solvente, como se tivesse sido engolido. (...) Considerava-se a água como o útero e a solutio como um retorno ao útero, para fim de renascimento” (p.67).
            É do “útero materno”, simbolicamente, que nasce o ego. Num estágio ainda de imaturidade o ego tende a achar prazeroso render-se à tal regressão, mas num estágio posterior do desenvolvimento, a perspectiva de solutio gera ansiedade, porque o estado de autonomia do ego, alcançado a duras penas, estará sob ameaça de dissolução. Os sentimentos predominantes no sonho foram de angústia, medo e preocupação.
            Observo que existe uma figura central no sonho que é a criança. De acordo com Edinger (2004) a criança simboliza o estado original, a primeira matéria fresca e vital, mas também vulnerável e insegura. Refere que o surgimento da criança nos sonhos pode simbolizar também o Self.
            A cena traz a criança sob a ameaça de afogamento por estar deitada na água ou por ser inundada pela grande onda. O autor ilustra que os sonhos com inundações se referem à solutio e representam uma ativação do inconsciente, que ameaça dissolver a estrutura estabelecida do ego. As grandes transições da vida costumam ser representadas pelas experiências de solutio.
            O livro de Edinger traz sete (7) aspectos principais do simbolismo da solutio. Nesta análise do sonho destaquei e relacionei apenas três aspectos, que são o retorno ao útero materno ou estado primal, a dissolução e o outro aspecto que seria a suavização. Segundo o autor, “a solutio resulta do confronto entre o ego e o inconsciente” (p.96). Naturalmente, este entendimento tem como base o autoconhecimento proporcionado por meu processo psicoterápico junguiano que venho fazendo até então.  
            Diante do exposto, ressalto a explicação de Edinger no que diz respeito ao que pode ser salvo no ego no procedimento da solutio. Diz que aquilo que não merece salvação é dissolvido e derretido, a fim de ser recomposto sob uma nova forma de vida. Como diz o autor, “o ego comprometido com esse processo transpessoal cooperará com ele e experimentará sua própria redução como um prelúdio à vinda da personalidade mais ampla, a totalidade do Si-mesmo” (p.99).  
            Um outro aspecto muito interessante citado neste livro é quando ele diz que tanto o psicoterapeuta quanto o cliente devem submeter-se à solutio. É necessária fluidez, pois enquanto estiver “seco e duro” tal como o metal que necessita ser transmutado, precisa voltar à sua prima matéria, que é suave e fluida. Então cliente e psicoterapeuta precisam ser suaves e fluidos, pois na psicoterapia há de acontecer uma influência mútua, que se assemelha à mistura de duas substâncias químicas que se transformam, caso haja combinação entre ambas. Deste modo, o psicoterapeuta influencia e é influenciado, passando também por transformações. Isto me chamou a atenção porque tive clientes vivenciando a solutio e tive uma noção clara desse processo de influência supracitado. 
            Agora descrevo o sonho que se seguiu ao já relatado.
Sonho 2: Havia um morro com a existência de várias casas de um lado a outro, formando uma rua que descia até o final dele. A rua era de barro e eu a descia; nesse meio tempo olhei para trás e para o alto e vi que havia um incêndio no local onde eu havia deixado a minha filha pequena com uma pessoa adulta e logo me preocupei com ela, pois corria risco em meio ao fogo.
            Este sonho nos remete a outra operação da alquimia que é a calcinatio. Esta é a operação do fogo que se relaciona com imagens do fogo livre, queimando ou afetando substâncias. Embora na maioria dos textos da alquimia citem as listas das operações iniciadas com a calcinatio, Edinger (2004) esclarece que qualquer uma das operações pode ser a inicial, sendo seguida pelas outras.
O sonho da calcinatio ocorreu após o relacionado à solutio. Também possui uma criança que está com uma pessoa adulta, correndo risco agora de serem queimadas. Estou como observadora da situação e parece-me que, simbolicamente, representa o ego. Em tal condição me preocupo com a criança mais uma vez que corre risco. Interessante notar que ela está no alto do morro e eu estou na descida deste.
Numa parte do texto, Edinger nos diz que, simbolicamente, o fogo da calcinatio é um fogo purgador, embranquecedor, pois atua sobre a matéria negra, a nigredo, tornando-a branca. Pinço também outro trecho onde ele diz que é esse o destino de aspectos do ego que se identificam com as energias transpessoais da psique e as utiliza para fins de prazer ou de poder pessoais. Ele ressalta que esse aspecto identificado com a energia do Si-mesmo, deve passar pela calcinatio.
Acredito que não é ao acaso que a criança está no alto e sob o cuidado de uma pessoa adulta. Certamente está relacionada com uma identificação com aspectos do poder pessoal que está em meio ao fogo. Também suponho que está mais próximo da consciência do que do inconsciente mais profundo. Fica num local onde a rua é de barro. Não sei exatamente o que ocorre e qual a relação desses elementos (fogo e barro), mas também chamam minha atenção e me faz pensar que existe algum simbolismo aí. O barro, neste sonho, me remeteu a um lugar ainda rústico, não urbanizado. Então, é algo ainda rudimentar, desprovido de uma sofisticação que tornaria tudo mais acabado e definitivo. Sinto que ao escrever a respeito deixei fluir como se existisse um conhecimento que vai além do racional, talvez isso tenha relação com o fato de já ter vivenciado uma solutio.
Considerei mais instigante o fato da calcinatio vir após a solutio nos simbolismos dos meus sonhos, diante do que Edinger (2004) diz, “a calcinatio é um processo de secagem” (p.61) e na relação feita com a psicoterapia diz respeito à secagem dos complexos inconscientes que “vivem na água”. O fogo reside no próprio complexo e torna-se consciente mediante o compartilhamento com outra pessoa – o psicoterapeuta. O afeto liberado através da expressão de pensamentos ou ações que trazem vergonha, culpa ou ansiedade, torna-se o fogo capaz de secar o complexo e purificá-lo de sua contaminação inconsciente. Ele também ressalta que a principal característica da calcinatio é a frustração do desejo que se torna o fogo dessa operação.
            Sobre este último aspecto – o desejo – gostaria de transcrever um trecho de Jung citado pelo autor que achei bem representativo e me faz lembrar um desenho que fiz, posterior aos sonhos descritos, onde não havia aparente associação voluntária com estes. Era uma figura aparentemente masculina em meio ao fogo e com os braços e cabeça elevados para cima, como se estivesse participando de um ritual sagrado. Certamente era uma representação simbólica do animus. Retomando, o texto diz:
Quando você se abandona ao desejo, seu desejo se volta para o céu ou para o inferno, você dá um objeto à anima (ou animus- grifo meu); e esse objeto vai para o mundo, em vez de ficar no interior, seu lugar próprio... mas se você puder dizer: ‘sim, eu o desejo e tentarei obtê-lo, mas não sou obrigado a tê-lo, se decidir renunciar, eu posso’; não há chances para o animus ou para a anima. Caso contrário, você é governado pelos seus desejos, está possuído..., mas se tiver colocado o animus ou a anima numa garrafa, está livre de possessão, mesmo que sofra interiormente, porque quando o demônio sofre, você também sofre (...). Você vai, pouco a pouco, ficar calmo e mudar. E então vai perceber que há uma pedra crescendo na garrafa... desde que o autocontrole, ou a não indulgência, tenha se tornado um hábito, é uma pedra... quando essa atitude se torna um fait accompli (fato consumado – grifo meu), a pedra será um diamante (Jung apud Edinger, 2004, p.64). 

BIBLIOGRAFIA

CORUMBA, R. M. e RAMALHO, C, M. R. Descobrindo enigmas de heróis e contos de fadas: entre a psicologia analítica e o psicodrama. Aracaju: Edições Profint, 2008.
EDINGER, E. F. Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 11ª. edição, 2004.
GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Santa Catarina: edições Achiamé,1978.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.




[1] Projeção: “quando as pessoas observam nos outros as suas próprias tendências inconscientes, estão fazendo o que chamamos projeção” (Jung, 2008, p.227). A projeção pode ser dirigida a alguém ou algo.
[2]Sombra: “tendências e impulsos que (a pessoa) nega existirem em si mesma, mas que consegue perfeitamente ver nos outros” (Jung, 2008, p.222).
Persona: “corresponde à maneira de uma pessoa se apresentar em sociedade. Atendendo às exigências do meio social onde vive, o homem assume uma aparência artificial, pois não corresponde ao que realmente ele é, embora atinja a finalidade de agradar os outros, adaptando-se assim, às exigências do meio ambiente” (Corumba e Ramalho, 2008, p. 46).
Anima: “é o elemento feminino no inconsciente masculino. É a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas não menos importante, o relacionamento com o inconsciente”. (Jung, 2008, p.234-235).
Animus: “é o elemento masculino no inconsciente feminino. (...) Tal como a anima, o animus não consiste apenas de qualidades negativas como a brutalidade, a indiferença, a tendência à conversa vazia, às ideias silenciosas, obstinadas e más. Também apresenta um lado muito positivo e valioso; pode lançar uma ponte para o self por meio da atividade criadora. (...) O animus pode tornar-se um companheiro interior precioso que vai contemplá-la com uma série de qualidades masculinas como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a sabedoria espiritual” (idem, p.258).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Artigo XI


Psicologia e Alquimia

                                                                                                       Ivna Ariane S. Vieira

Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos meus modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus. (LISPECTOR, Clarisse)
É com o belíssimo pensamento de Clarisse Lispector que inicio este texto. Pela intensidade de suas palavras já podemos perceber que falar de alquimia é se debruçar em uma análise sobre o constante processo de mutações e transformações necessárias para o crescimento psíquico.
A alquimia era conhecida por ser a arte do fogo, uma vez que o alquimista era notório por sua habilidade ao lidar com o fogo. Segundo Eliade (1977), assim como o ferreiro e o oleiro, o alquimista era tido como o “senhor do fogo”.
Von Franz (1993), afirma que Jung introduz a alquimia na psicologia através de seu livro Psicologia e Alquimia. O autor começa a estudar a alquimia e logo entende que as imagens e os textos que esses autores produziam se pareciam muito com a ciência que ele próprio desenvolvia e acreditava.
Edinger (1999), afirma que Jung ao estudar os antigos textos e gravuras da Alquimia, percebeu que estas eram, de fato, “a própria água da psique”, passível de ser usada para compreender os seus complexos conteúdos. Em seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões, Jung escreve:
Cedo percebi que a psicologia analítica coincidia de modo bastante singular com a alquimia. As experiências dos alquimistas eram, num certo sentido, as minhas próprias experiências, assim como seu mundo era meu mundo (2006, p.205).
Partindo desta perspectiva, a proposta de trabalho deste módulo, do curso de formação em psicologia analítica, será fazer uma analogia simbólica de um sonho com a as fases da Opus Magna. As operações da Opus Magna têm implicações psicológicas profundas, assim como na psicoterapia e nos sonhos, poderemos encontrar um simbolismo alquímico rico. O sonho escolhido para ser trabalhado foi o de uma mulher chamada Elizabeth.
Obviamente por se tratar de um texto breve, não tecerei detalhes sobre a vida de Elizabeth. Gostaria de dizer, apenas, que ela é uma mulher de 36 anos, em processo terapêutico com analista Junguiana e que o momento de sua vida sugere um desejo de mudança de atitude. E esse desejo está expresso em seu sonho.
O sonho de Elizabeth foi o seguinte:
Ela está em uma casa térrea quando ouve o telefone fixo tocar. Elizabeth corre para atender. Assim que atende ouve o aviso que a casa em que está irá explodir. Sem ter tempo de desligar a ligação, a casa em que está explode.
Para clarificar essa analogia simplificada, facilitando a compreensão do sonho para todos que tenham interesse pelo tema, farei uma pequena explicação sobre o processo alquímico.
Ramalho (2002), afirma que “os alquimistas dedicavam-se, sobretudo a edificação da Opus Magna (grande obra) e à aprimoração da própria vida” (p.70). Daí o maior e verdadeiro objetivo dos alquimistas, é buscar o elixir da longa vida, ou “pedra filosofal” (Lapis Philosophorum), espécie de catalizador espiritual de todo o processo alquímico, capaz de acelerar a transmutação do chumbo em ouro. Esse processo atravessaria etapas, que evoluiriam da nigredo à rubedo e, afinal, a albedo. As etapas dessa transmutação seriam para os alquimistas (usando os termos em latim): a solutio, calcinatio, coagulatio, mortificatio, sublimatio, separatio e a coniunctio.
O sonho que será analisado, por ter como temática o fogo, explosão e fazendo a ponte destas imagens com a vida de Elizabeth sabemos que seu sonho está diretamente relacionado à fase da Opus Magna chamada de calcinatio. É importante destacar que pelo fato do fogo ter um rico simbolismo, que vai da libido (paixões) ao fogo sagrado, não devemos tentar especificar a imagem do fogo unicamente como calcinatio, mas procurar examinar a aparição fenomenológica dessa imagem.
A calcinação, do latim calx, calcinatio é o processo de se queimar substâncias diversas. De acordo com Heck (2010), a calcinação é um tratamento de remoção de água, CO2 e outros gases que estão ligados quimicamente a alguma outra substância, que pode ser tipicamente um hidrato ou carbonato. É um procedimento vigorosamente endotérmico, ou seja, o calor é absorvido nessa reação, que necessita de fontes de altas temperaturas, podendo chegar aproximadamente até 900°C.
Segundo Edinger (1990), o exemplo clássico de calcinação, do qual surgiu termo cal (calx= cal), é o aquecimento da pedra calcária (CaCO3) ou do hidróxido de cálcio (Ca(OH)2) para produzir a cal viva (CaO, calx viva). Ao se acrescentar água a cal viva, esta produz calor. Devido a essa propriedade, muitos alquimistas acreditavam que a cal portava o fogo dentro de si, e por diversas vezes, já chegaram a compará-la ao próprio fogo.
Edinger (1990), em seu livro anatomia da psique, afirma que a sequência das operações alquímicas parece não ter importância do ponto de vista da significação psicológica, mas que, no entanto, a operação calcinatio é tida como a operação inicial em grande parte das listas dos alquimistas. Esta operação indica transição. Após a descida ao inferno, o princípio que rege a consciência pode morrer, pode-se descer ao reino animal e suportar as ferozes energias instintivas.
Nos processos alquímicos a calcinatio busca transformar o que é negro em o que é branco através do seu calor. Esta operação atua sobre a nigredo, que seria de acordo com os alquimistas, a massa confusa, a matéria prima, aquecendo-o, ou seja, transformando-a no estado branco ou albedo, que simbolicamente pode ser definida como um momento de maior entendimento. Jung (2011), diz que “o alvejamento (albedo s. dealbatio) é comparado ao ‘ortus solis’ (nascer do sol). É a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurecimento”(p.138).
            O fogo é purgador, pois atua sobre a matéria negra, a nigredo, mas ele também pode ser redentor. Os alquimistas utilizavam a calcinatio, portanto, com fins de purificação. Só assim o ego pode renascer, como a fênix, num estado purificado. Era depois da passagem pelo fogo que o material a ser trabalhado era identificado. A matéria prima era diferenciada, ou seja, a calcinatio livra a matéria de tudo o que é naturalmente impuro nela mesma.
Edinger (1990), descreve a calcinatio como um processo de secagem:

Um importante componente da psicoterapia envolve a secagem dos complexos inconscientes que vivem na água. O fogo ou intensidade emocional necessária para esta operação parece residir no próprio complexo, tornando-se atuante tão logo o paciente tenta tornar o complexo consciente, mediante o compartilhamento com outra pessoa. Todos os pensamentos, ações e lembranças que trazem vergonha, culpa, ansiedade precisam ter plena expressão. O afeto liberado torna-se fogo capaz de secar o complexo e purificá-lo de sua contaminação inconsciente. (EDINGER,1990, p, 61)
Assim, o processo de psicoterapia deve envolver a conscientização de complexos inconscientes. A calcinatio pode ser vista simbolicamente como um processo de secagem desses complexos, pois é a partir do fogo ou da energia que alimenta o próprio complexo que o paciente começa a torna-se consciente. A intensidade emocional reside nesse mesmo complexo, que precisa de alguma forma, ser expresso. Uma vez que o afeto é liberado, o complexo é purificado e não possui mais energia para uma contaminação autônoma do inconsciente.
Para que ocorra uma calcinatio adequada, o material a ser trabalhado deve ser corretamente localizado, caso contrário, o que estará acontecendo não se diferenciará de uma autoflagelação.
Muitos alquimistas praticantes cometem um erro já de início, ao realizarem essa calcinatio com substância errada... ou ao escolherem falso método, corroendo, em vez de calcinar, os corpos metálicos com quais operam. A calcinação só pode ocorrer por meio do aquecimento interior do corpo, assistindo pelo amigável calor exterior, mas a calcinação através de um agente heterogêneo só pode destruir a natureza metálica, se é que tem algum efeito. (EDINGER, 1990, p.62)

Pela passagem do fogo da calcinatio é que nossos desejos são transformados. Os nossos desejos primitivos são frustrados e transmutados em novos conteúdos. Ou, dito de outra forma, as energias da psique arquetípica primeiro aparecem em estado de identificação com o ego, exprimindo-se como desejos de prazer para o ego, de poder para o ego. O fogo da calcinatio purga essas identificações e impulsos da raiz ou umidade primordial, deixando o conteúdo em sua condição eterna ou transpessoal, tendo restado seu aquecimento natural, isto é, sua energia e seu funcionamento próprios.
Desse modo, a calcinatio representa uma nova forma de relacionamento com os afetos, uma vez que o aspecto arquetípico da existência passa a ser observado. A partir do momento que ocorre um relacionamento com o aspecto transpessoal da nossa psique, os afetos passam a ser experimentados não mais como desejos frustrados, mas sim como algo de espiritual. Ou seja, ocorre uma transformação do desejo.
No caso em análise, o sonho de Elizabeth, pode-se notar que a calcinatio proporcionou a esta mulher uma nova maneira de relacionamento com os aspectos transpessoais da sua psique. A partir dessa transformação, ela passou a experimentar o fogo como algo espiritual não mais algo terrestre. Edinger (1990), cita Jung ao falar sobre essa dura transformação que envolve muito suor e sofrimento. Ele diz que quando o seu demônio sofre, você também sofre, no entanto, após essa passagem pode-se perceber um crescimento interior muito recompensador e confortante. O que será muito necessário, uma vez que a calcinatio é apenas o começo para uma grande jornada.
Vale observar que no sonho de Elizabeth existe uma substância a ser localizada para ser calcinada e, de maneira subjetiva, podemos dizer que existe um desejo ou reivindicação dela que precisa ser identificado no inconsciente. É preciso entrar em contato com esse conteúdo para que ela possa analisá-lo e transformá-lo. Então, no interior desse corpo ocorre o aquecimento que pode operar as transformações necessárias para o crescimento psíquico.
A iniciação a esta nova anatomia alquímica, anatomia da Psique, envolveu a alma de Elizabeth que queimava e trouxe a ela um novo entendimento. Ela estava envolvida pelo fogo de um complexo. Um complexo a secar. Terapeuticamente falando, havia muitas emoções afloradas de Elizabeth que pediam pela secagem. A calcinatio remove essas águas e transforma o negro em branco, o nigredo em albedo. Metaforicamente, nasce um maior entendimento para ela.
Vários estudos alertam para a existência de uma resistência às mudanças nas sementes da própria natureza, e que é necessário um calor intenso de forma a retirar o ser da inércia inata. Elizabeth precisava queimar seu corpo para sair da inércia. A luz deste fogo clareou para ela a importância dela operar transformações em sua vida necessárias ao seu crescimento psíquico.
            Elizabeth, por meio do processo terapêutico, compreendeu que o deixar-se queimar e enrubescer significava que seu momento necessitava de uma mudança na atitude. Era necessário criar uma nova relação consigo mesmo, agora não mais colorida apenas pelo branco da ingenuidade e encharcada pelas águas da infância. Seu momento pedia uma relação mais íntima e interna consigo mesma capaz de se priorizar. Um movimento em que, com coragem, ela andasse de mãos dadas com os próprios medos deixando queimar antigas águas em busca da prata.
Assim, o fogo queimou, ardeu, mas também iluminou a vida de Elizabeth. Trouxe visibilidade ao seu próprio processo. O momento é novo. As imagens alquímicas de seu sonho vêm a concretizar suas experiências de transformação por que ela passa em sua psicoterapia.
Já dizia o sábio Jung que o fogo é um símbolo que representa processos de transformação psicológica. Assim como os antigos alquimistas se utilizavam do fogo para transformar metais pobres em ouro, sonhar com fogo pode ser um gatilho incentivador de grandes transformações interiores. Assim aconteceu com Elizabeth, na sua jornada rumo ao processo de individuação.
Observe o quanto é importante um analista desenvolver a arte de identificar todos estes elementos, estando atento para discriminar qual o caminho a seguir, como modificar ou retirar elementos que estão no interior de seu ser, para assim produzir a síntese e a integração, ou utilizando a linguagem alquímica, a coniunctio mais elevada possível. Jung afirmou que o processo psicoterápico segue as etapas do processo alquímico, e que a busca dos alquimistas da “pedra filosofal”, se assemelhava á busca da realização do Self, no processo de individuação.
Assim, da mesma forma que o alquimista aprende a dosar o fogo, as substâncias e os metais mais importantes utilizados em seus experimentos, o analista terá que adquirir a capacidade de equilibrar seus pacientes. O alquimista/analista precisa estar atento para não cometer erros que poderão prejudicar todo o processo, calcinando a substância errada, ou escolhendo a operação inconveniente que poderá consumir ou desgastar as substâncias necessárias para o desenvolvimento saudável do processo, por isso se faz tão necessário também o conhecimento das principais substâncias presentes ou demandadas no processo de cada indivíduo.
Para finalizar, gostaria de citar a bela metáfora de Rubem Alves que ilustra, muito bem, tudo que falamos sobre os processos alquímicos:

A vida é como a vela: para iluminar é preciso queimar. A vela que ilumina é uma vela alegre. A luz é alegre. Mas a vela que ilumina é uma vela que morre. É preciso morrer para iluminar. Há uma tristeza na luz da vela. Razão porque ela, a vela, ao iluminar, chora. Chora lágrimas quentes que escorrem da sua chama. Há velas felizes cuja chama só se apaga quando toda a cera foi derretida. Mas há velas cuja chama é subitamente apagada por um golpe de vento...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EDINGER, Edward F. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 1990.

ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

HECK, Nestor Cesar.UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em 24/08/2010 <www.ct.ufrgs.br/ntcm/graduacao/ENG06632/Calcinacao.pdf

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C.G. Psicologia e Alquimia. 5°ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

JUNG, C.G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

RAMALHO, Cybele M. R. Aproximações entre Jung e Moreno. São Paulo: Ágora, 2002.

VON FRANZ, Marie Louise. A Alquimia: Introdução ao Simbolismo e a Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1993