A Arte Fantástica – uma leitura da Psicologia Analítica
Cybele Ramalho
2012
Segundo Walter Schurian, psicólogo e estudioso da percepção
estética, encontramos a presença fantástica em quase todas as épocas e
disciplinas artísticas. Mas, foi somente no século XX, com o surrealismo, o
cubismo, o dadaísmo, etc., que esta forma de arte teve especial atenção e
passou a ser uma importante corrente.
Ao longo deste século, a fantasia tem passado, nas artes
plásticas, do externo ao interno. A visão fantástica do externo, do mundo, da
natureza, do universo, tem cedido lugar a uma contemplação introspectiva da
pessoa, do indivíduo, do próprio corpo. Ao eu, em seu território inconsciente
dos sonhos, sentimentos e desejos.
Com isto, se abre uma nova percepção de si e da alteridade.
Cientificamente, o homem não pode interpretar-se por meio de si mesmo, a não
ser através da arte. A fantasia dota de sentido a alma humana e ela pode ser
entendida como complemento das tendências racionais, construtivistas e
analíticas da arte realista, abstrata e minimalista, por exemplo.
A arte fantástica reflete, com seus desvarios e
extravagâncias, as distintas facetas e as distintas percepções da realidade,
trazendo para elas um novo colorido. A psicologia do fantástico se vê
acompanhada dos conceitos de imaginação, invenção, sonho e delírio. Referem-se
à intuição psíquica, uma função especial que permite o acesso a imagens
desconhecidas.
Esta forma de arte situa o homem
no centro e o apresenta a um tempo desconhecido e misterioso. Centrando-se na
psique, a arte fantástica se serve (em geral, mas não exclusivamente) das
percepções inconscientes. Joga com as alteridades, surpreende, choca,
desconcerta. Ela toma como objetivos as sensações e as emoções camufladas,
assim como expressa sonhos e desejos. A fantasia (ou o fantástico) se move fora
do âmbito do conhecido e pode ajudar na resolução de problemas, no
desenvolvimento da criatividade, da genialidade, na conscientização de
sentimentos e comportamentos. Ela pode desempenhar um papel chave na ciência e
isto foi comprovado desde Freud, a J. L. Moreno (criador do psicodrama),
passando por C. G. Jung (criador da psicologia analítica).
O Artista, a Arte e a Psicologia Analítica
Segundo o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), o
homem criador constitui um enigma, embora a psicologia pessoal do artista possa
se encontrar nas raízes e nas ramificações de sua obra, influenciando a sua
temática, como tem revelado a visão psicanalítica freudiana. A escola freudiana
defende a ideia de uma satisfação substitutiva presente na obra de arte,
representando os recalques do artista e os seus condicionamentos pessoais,
analisando-a como eles analisam a neurose, a religião e a filosofia: uma
espécie de desculpa, um modo de não querer encarar as coisas, um desvio, um
erro. Ao contrário disto, Jung destaca que a essência da obra de arte não é
constituída pelas particularidades pessoais que pesam sobre ela, se eleva muito
acima do plano pessoal. Fala do espírito e do coração da humanidade. Para ele
(Jung, 1985, p. 89), “Os elementos pessoais constituem uma limitação, e mesmo
um vício da arte” e ”Quanto mais numerosas forem, menos se tratará de arte”.
“Quando a escola freudiana pretende que o artista possua uma personalidade
restrita, infantil e auto-erótica, tal julgamento poderá ser válido para o
artista enquanto pessoa, mas não para o criador que há nele” (op. cit.).
Para Jung, “Todo ser criador é uma dualidade ou uma síntese
de qualidades paradoxais”. Se por um lado ele é uma pessoa humana, por outro é
um processo impessoal, criador. Enquanto pessoa, poderá ter sua neurose ou não,
mas enquanto artista só poderá ser compreendido a partir do seu ato criador,
que implica uma psicologia objetiva, do inconsciente coletivo. “A arte nele é
inata, como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento”
(op.cit. p. 90). Ele é um homem coletivo, plasmador da alma inconsciente e
ativa da humanidade. Esta exigência às vezes predomina, tornando a sua vida
sacrificada em relação ao homem comum.
Ele é “conduzido pelo inconsciente, este deus misterioso que
o habita, de modo que é compelido a criar, sem saber a finalidade e o por quê”
(op. cit). A exigente paixão criadora é intransigente e põe em risco desejos e
seguranças pessoais, de modo que o artista, frequentemente, acaba pagando caro
pela centelha divina de sua capacidade genial. Assim, a sua vida é
necessariamente cheia de conflitos, sendo identificado como egoísta ingênuo,
infantil, intransigente, negligente, primitivo, auto-erótico e vaidoso, pois o
seu lado humano é sacrificado em benefício da lado criador. A aventura interior
do artista pode ser perigosa para ele, podendo eventualmente levar a uma
paralização ou a uma catastrófica explosão dos opostos conjugados em tensão.
Por estas razões, Jung defende que um artista deve ser
explicado a partir da sua arte e não a partir das insuficiências de sua
natureza e de seus conflitos pessoais. Na sua visão, uma obra de arte nunca
deve ser interpretada pelo próprio artista, esta deve ser deixada aos outros e
ao futuro. É como um sonho, que apesar de todas as evidências nunca se
interpreta a si mesmo e também nunca é unívoco. E para compreender uma obra de
arte é preciso permitir-se ser modelado por ela, compreendendo qual foi a
vivência original do artista, uma vez que este tocou as regiões profundas e
abissais da alma, onde todos os seres vibram.
Portanto, a psicologia da criação artística
para Jung é uma psicologia essencialmente feminina. A obra de arte jorra das
profundezas do inconsciente, sendo justamente o domínio das mães. Porém, corre
o risco da consciência ser arrastada pela força plasmadora desse inconsciente
ou da torrente impetuosa subterrânea. Deste processo emergem os símbolos
arquetípicos, as “imagens originárias” enterradas no inconsciente desde os tempos
primordiais.
Um arquétipo em si mesmo não é bom nem mau, está acima
disto, é moralmente indiferente. Ao se confrontar com o consciente, se torna
uma dualidade de opostos. Se manifesta quando é provocado e ativado pelos
extravios da consciência, pessoal ou coletiva, quando esta se afastou
demasiadamente do caminho do meio, se tornou unilateral e falsa. Para
restabelecer um equilíbrio anímico acontece a emergência das imagens
arquetípicas em sonhos e visões, dos artistas e visionários. Assim é que as
necessidades anímicas de um povo são satisfeitas na obra dos artistas. E ele se
torna um mero instrumento de sua obra, estando abaixo dela.
O Símbolo na Arte
Fantástica
Sabemos que além da linguagem verbal, outras linguagens
atingem o indivíduo a níveis mais profundos, relacionadas com o inconsciente
pessoal e o coletivo. A partir das descobertas de Jung o ser humano é percebido
em sua totalidade, englobando em si tanto o passado, o presente e o futuro,
como inconsciência e consciência. Ele valorizou outras formas de linguagem e
comunicação, em especial a plástica, aquela que para ele melhor expressa a
irracionalidade e os níveis mais arcaicos.
O signo racional representa somente a superfície concreta da
experiência dos homens, no contexto do imenso patrimônio do inconsciente
coletivo. O interesse e o fascínio atual pela imagem, pela relevância que ela
assumiu como meio de comunicação de massas e pelo avanço da tecnologia, fizeram
com que muitos estudos se voltassem para as razões irracionais que operam no
inconsciente. A ligação íntima com a imagem já se apresenta nas pinturas do
homem das cavernas, onde ele descreveu, de forma espontânea, sem o uso do
raciocínio, como se sentia no mundo, expressando seus mitos e ritos. Por outro
lado, encontramos nas antigas civilizações mitos e ritos transformados em
imagens (HAUSER, 1994 ), cujo rico simbolismo supera muito seu valor artístico.
O símbolo provém da consciência e do inconsciente, sendo
capaz de unir ambas as partes, funcionar como elo unificador. Após muitos anos
de estudos comparativos entre ritos, mitos, contos de fada, sonhos e alquimia,
partindo de imagens ao inconsciente, “Jung chegou à conclusão de que estas
correspondem, em cada caso individual, a certos arquétipos que operam, se
elaborados através de símbolos” (HAUSER, 1994 : 18 ).
Assim, os arquétipos são produtos do inconsciente coletivo e
existem em todos, sem limites espaçotemporais, nem culturais. Por isto são
extremamente obscuros e ambíguos, possuindo carga energética forte. Os
conteúdos arquetípicos aparecem sob a forma de imagens e são dados da estrutura
psíquica do indivíduo, na forma de “possibilidades latentes”, em potencial. O
símbolo, por sua vez, é indeterminado e ambíguo, se refere a algo dificilmente
definido. Em sua obra “O homem e seus símbolos” (1964: 6), Jung explica que
“uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa do seu
significado manifesto e imediato (...), tem um aspecto inconsciente mais amplo
que nunca é precisamente definido ou de todo explicado”.
As imagens simbólicas que brotam na Arte Fantástica, assim
como nos sonhos, revelam imagens arquetípicas, numinosas, ambíguas. Revelam um
fio irracional que denuncia a perda da inocência do homem civilizado, a perda
do vínculo que o liga ao universo, ao arcaico, enfim, à natureza. Segundo Jung,
os símbolos têm efeitos transformadores, pois transferem a energia psíquica de
uma forma inferior para outra superior, constituindo uma forma de comunicação
com o mundo. No entanto, este processo interpretativo não é de fácil
compreensão para o leigo. Segundo Jung (apud GAD, 1996, p. 189): “O processo
simbólico é uma experiência em imagens e de imagens”.
Para ele, o estudo dos símbolos presentes em sonhos e na
expressão artística em geral, possibilita que tenhamos acesso à base
arquetípica da psique. Pois estes, os símbolos, são o aspecto visível de uma
camada invisível da psique, a expressão de conflitos conscientes e
inconscientes, o que aponta para além da realidade concreta, para uma base cujo
significado mal podemos apreender, de início. Os símbolos apresentam dois
níveis: um específico (pessoal) e outro geral (impessoal) e nunca são
compreensíveis de todo. Por outro lado, eles apresentam implicações emocionais
e pertencem ao vasto domínio da religião, da filosofia, da arte e da
literatura. Na expressão plástica da arte fantástica, o artista se comunica de
forma simbólica com o mundo, dificilmente compreensível. Expressam em seus
desenhos, esculturas e pinturas, símbolos oníricos, em grande parte
arquetípicos – estes últimos, representantes de inquietações despojadas dos
resíduos culturais.
O pensamento arcaico e primitivo aparece no simbolismo das
obras dos doentes mentais, assim como nas obras dos mais célebres artistas
plásticos, inexplicáveis dentro do raciocínio do homem civilizado moderno. Ao
estudar os símbolos arquetípicos nos trabalhos dos que apresentavam transtornos
mentais crônicos, Jung pode interpretar a ambiguidade dos símbolos por um lado
e, por outro, a relação específica com os complexos emocionais dos seus
pacientes.
Nas imagens fantásticas podemos observar uma mistura de
conteúdos pessoais e coletivos. Estes últimos, os símbolos coletivos,
constituem, por sua própria natureza, material arcaico em conjunção com
inegáveis imagens mitológicas. Segundo SILVEIRA (1992:97): “As imagens
simbólicas formadas no inconsciente constituem a substância da qual é feita a
vida psíquica emocional. Cada emoção é acompanhada de uma imagem e, cada
imagem, de dinamismo correspondente. As emoções se configuram através de
imagens simbólicas muito próximas das imagens de mitos e rituais”.
Estas imagens surgem, não só nos artistas e nos que
apresentam transtornos psíquicos, mas cotidianamente nos sonhos e fantasias de
todos os seres humanos. Para se tornarem obras de arte, as rudes imagens
primordiais precisam ser elaboradas, transmutadas, em formas que possuam certas
qualidades ditas artísticas. Para Jung ( apud SILVEIRA, 2000:147) “o processo
criador, na medida em que o podemos acompanhar, consiste numa ativação
inconsciente do arquétipo, no seu desenvolvimento e da sua tomada de forma até
a realização da obra perfeita”.
Assim, no misterioso ato criador da Arte Fantástica, o
artista “mergulha até as funduras imensas do inconsciente. Ele dá forma e
traduz na linguagem de seu tempo as intuições primordiais e, assim fazendo,
torna acessíveis a todos as fontes profundas da vida” (SILVEIRA, 2000: 143).
Podemos afirmar que, para JUNG, a autêntica obra de arte é
uma produção impessoal, pois os conflitos pessoais/emocionais do artista não
são decisivos para o conhecimento da obra. Para ele, o artista é um homem
coletivo, que expressa com suas obras a alma inconsciente e ativa da humanidade
como um todo.
Se para Jung a compreensão dos símbolos é necessária para
que tenhamos acesso aos processos psíquicos inconscientes, com a arte
fantástica (simbólica e onírica por excelência), estamos diretamente conectando
arte e psicologia. A arte fantástica nos conectaria não somente aos sonhos, mas
aos mitos, aos contos de fada, aos rituais primitivos, auxiliando assim na
transcendência dos conflitos humanos, contribuindo para a sua transformação.
Deste modo, estudar estes fenômenos pode ser incômodo, pois
significa transitar, flutuante, numa atmosfera rarefeita de possibilidades, sem
saber se o que vemos e sentimos é verdadeiro ou ilusão, apostando na
sincronicidade e na sinceridade da subjetividade. Pois, diante da arte
fantástica em suas implicações com a psicologia do inconsciente, o pensamento
causal cai por terra e temos de lidar com a coincidência significativa de
acontecimentos, ou seja, com uma visão sincronística.
No entanto, segundo GAD (1996:336) “existem camadas da nossa
psique que só podem ser abordadas com a imaginação e a inspiração
proporcionadas por uma sabedoria ancestral, capaz de penetrá-las”. A
compreensão da sabedoria implícita nestas imagens, inclusive suas conexões
mitológicas, exige do estudioso que este deixe de lado o pensamento disjuntivo,
racionalista, assim como passe a usar a intuição para alcançar um nível
superior de consciência.
Jung afirmava que a psique e a matéria se compartilham
mutuamente e possuem ação recíproca. Via a psique como um sistema dinâmico,
auto-regulador, caracterizado por flutuações entre polos, considerando-a uma
manifestação da dinâmica básica da vida. A força e a riqueza desta psique
criativa podem ser manifestadas, de forma encantadora e fascinante, através da
arte fantástica.
O Feminino na Arte
Fantástica
Ao não aceitar mais o papel naturalizado de mulher-mãe, a
mulher contemporânea se afastou das raízes arquetípicas do Self Feminino, ou
perdeu a sua conexão com o arquétipo da Mulher Selvagem. É uma dificuldade para
esta mulher, reconhecer- se como ela é e afirmar o seu direito de existir a seu
próprio modo, numa sociedade patriarcal.
A redenção do Feminino é uma necessidade, e diz respeito às
mulheres e aos homens. Cabe ao homem compreender a sua Anima (o feminino
inconsciente que há em si), renunciar a uma imagem estereotipada de si mesmo; e
à mulher, se sentir mais a vontade para expressar suas exigências internas, de
maneira menos violenta, sem ter de adotar atitudes masculinas. A emancipação do
Feminino exige mudanças em ambos, assim como em todas as dimensões da vida
social, política, educacional, familiar, etc.
É necessário criar um espaço vital novo, onde os valores
femininos possam ser vividos, reconhecidos e integrados. Esta mudança requer
também um lento e gradual processo de maturação interior, que pode ser
acompanhado no meu trabalho através da arte fantástica. Através da arte, busco
expressar e elaborar o que o Feminino Selvagem me impõe, intuitivamente. Não
apenas isto se revela nas relações da mulher coma a natureza, mas nas relações
amorosas homem-mulher (ou entre o Masculino e o Feminino), que vão permear a
trajetória do meu trabalho, desde a sua origem. Estas forças vão dialogando
internamente e em busca de uma interação mais satisfatória, ao longo do tempo.
A complementaridade entre o Masculino e o Feminino realiza-se, de certa
maneira, no plano exterior, mas no plano interior ela é um processo mais
difícil e sutil, o que vai sendo espelhado sutilmente e despretensiosamente
através das minhas obras.
Podemos encontrar, na leitura do meu trabalho, certos
fundamentos arquetípicos da psicologia feminina, que foram constelados
intuitivamente, desde a adolescência, ou emergiram dos meus sonhos e dos sonhos
de algumas clientes que acompanhei. Por ser um produto do inconsciente e um
conteúdo de certo modo primitivo, arcaico, primordial, adquire um caráter
surreal e fantástico. Assim, trago imagens emergentes do reino da Grande Deusa,
da Grande Mãe e da Mulher Selvagem, que vem acompanhada de animais (serpentes,
aves, peixes, polvos e felinos) e de plantas, florestas e flores, símbolos dos
mistérios e da força do Feminino.
Enfim, trago o Princípio Feminino ou Eros ,
assim como alguns mitos e rituais que espelham temáticas femininas e que
permeiam as relações homem-mulher. Imagens que podem surpreender o olhar
contemporâneo, mas que o provoca, despertando intuições e sentimentos talvez
esquecidos.
A Grande Deusa, a
Grande Mãe ou o Grande Feminino
Uma presença contínua e
intuitiva nos meus trabalhos, desde a adolescência (1974), tem sido a figura
feminina em suas várias facetas, o que nos remete à Deusa da Antiguidade ou ao
Grande Feminino. Este arquétipo ainda se mantém vivo no inconsciente do ser
humano contemporâneo, em seu caráter positivo e negativo, assim como em seu
caráter de transformação espiritual. A
Grande Mãe, enquanto mãe e terra-mulher, é revelada em seu aspecto nutridor,
protetor, acolhedor, terrível e devorador, assim como símbolo arquetípico da
fertilidade e está presente em numerosas esculturas, pinturas e desenhos
rupestres desde a Idade da Pedra (são as obras artísticas mais antigas que a
humanidade conhece).
Desde os povos primitivos que viviam sob o domínio do
matriarcado, até o advento das sociedades patriarcais, observam-se
manifestações deste arquétipo. A constelação arquetípica básica e elementar,
reveladora do inconsciente coletivo, permanece até os dias atuais, apesar de
revestida em diferentes roupagens, nas diferentes culturas e momentos da
história da humanidade.
Atualmente, mesmo predominando uma união produtiva entre o
consciente e o inconsciente, estes conteúdos primitivos ainda emergem,
simbolicamente, nas manifestações artísticas. Segundo Neumann (2006:84), “a
imagem arquetípica da Grande Mãe é viva, tanto no indivíduo como no grupo,
tanto no homem como na mulher”, de modo que o domínio deste arquétipo constela
a situação psíquica original e arcaica.
Ao mergulhar intuitivamente nas imagens do inconsciente, o
meu trabalho revela o grotesco e o simbólico do excêntrico mundo ctônico, que
pode ter um caráter numinoso ou espiritual. Recebe destaque certas partes do
corpo da mulher (boca, olhos, seios, ventre, útero, ancas, genitália), assim
como associações com seres do reino animal (peixes, polvos, pombas, aves de
rapina, leões e serpentes) e vegetal (árvores, florestas, folhas, flores e
frutos).
A Grande Deusa foi venerada como geradora da vida, senhora
dos seres vivos, das plantas e doa animais na Antiguidade. Ao longo da
história, a apresentação da Grande Deusa (seja nas mitologias, histórias,
lendas ou manifestações artísticas) veio acompanhada destes elementos naturais
(animais selvagens, predadores ou domesticados), em variadas épocas e culturas.
Foi associada também à agricultura e às diversas formas de fertilidade, numa
época em que o indivíduo, o grupo e o meio natural que o cercava (animais,
plantas) viviam ainda numa relação de participacion mystique, e não como
diversidades (Neumann, 2006).
Assim, as suas imagens estão relacionadas ao inconsciente coletivo,
mãe de todas as coisas, e abrange os opostos. Alguns elementos simbólicos do
Grande Feminino se apresentam em meu trabalho, expressos em sua forma natural e
sensual, envoltos numa aura de fertilidade, irrealidade e espiritualidade. Este
simbolismo fantástico vai aparecer através de figuras primitivas hermafroditas,
grotescas, cuja natureza contém, em si, os opostos.
O Grande Feminino é também a senhora do tempo, da lua, da
fortuna e do destino, governa o crescimento. Tece e trama não só a vida humana,
como o destino do mundo. Assim a Deusa vem associada ao símbolo arquetípico da
árvore que, firmemente plantada na terra que a nutre, enraizada nas
profundezas, se eleva ao ar para se desenvolver.
O caráter feminino-numinoso da árvore, está também presente
em suas folhas e frutos, mas vem combinado ou associado à água e à terra.
Assim, “é possível acompanhar o simbolismo entre a mulher e a planta em todos
os estágios do simbolismo humano. Por outro lado, a totalidade psíquica como
flor, lótus, lírio e rosa (...) simbolizam o desabrochar das mais elevadas
possibilidades psicoespirituais ” (Ibidem, p. 230).
O Grande Feminino aparece frequentemente com asas (como é o
caso da imagem de Lilith) e tem influencia sobre touros, leões, serpentes,
abelhas, aves de pântanos, pombos, peixes, polvo e escorpião. Por outro lado,
se apresenta como um ser ctônico, do mundo inferior, das profundezas da terra.
Isto demonstra que ela abrange o princípio dos opostos, os três reinos (animal,
vegetal e mineral), ou seja, o todo, a totalidade. Ela gera, governa e domina o
lado animal dos instintos e as pulsões selvagens. Sua força formadora vai se
refletir também na capacidade de amar e na disponibilidade para o amor. Exerce
sua lei de transformação e conduz a uma evolução, sem perder o vínculo com as raízes
e os fundamentos, atingindo formas mais elevadas de realidade psíquica.
Finalizando, através da arte fantástica as imagens
arquetípicas da Grande Mãe ou do Grande Feminino emergem e intervém na vida de
homens e mulheres enquanto fonte de visão e de símbolo, do ritual, da poesia,
da sensibilidade, da vidência, para facilitar o processo de cura do ser humano
e dar sentido à sua vida. Ela é uma divindade de amorosa participação,
redentora, presença viva e próxima, que nutre o espírito. Revela-se especialmente
na mulher como o “eterno feminino” mais evoluído, em sua majestosa grandeza, em
todas as épocas e culturas, em seus sonhos, visões, obsessões, relacionamentos,
projeções, fantasias e produções artísticas.
Referências Bibliográficas:
Bogado, Anna P. C. “Maria
Madalena: o feminino na luz e na Sombra”. Rio de Janeiro, Ed Lucerna, 2005.
Bolen, Jean S. A
sincronicidade e o Tao. São Paulo: Cultrix, 1979.
Chevalier, J. E
Gheerbrant, A. Dicionário de Símbolos –
Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 2009.
Ehrenzwueig, Anton. A
ordem oculta da arte - Psicologia da Imaginação Artística. 2ª. Edição, Rio
de Janeiro: Zahar editora, 1977.
Gad, Irene. Tarô e Individuação – correspondências com a
Cabala e a Alquimia. São Paulo:
Ed. Mandarim, 1996.
Hauser, Ana. A
linguagem plástica do Inconsciente. São Paulo: Ática, 1994.
Jung, C. G. O homem e
seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
_______. Memórias,
sonhos e Reflexões. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
_______ . Os
Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. C.W.
Petrópoles: Vozes, 1999.
________. O Espirito
na Arte e na Ciência. C.W. XV. Petrópoles: Vozes, 1985.
Morin, Edgar. A
religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001.
Neumann, Erich. A Grande Mãe – um estudo fenomenológico da
construção feminina do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 2006.
Ostrower, Fayga. A
sensibilidade do intelecto. Rio de Janeiro: Ed. Campos, 1998.
Schurian, W. & Grosenickk, U. Arte
Fantástico. Madri: Ed. Tashen, 2001.
Silveira, Nise da. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro:
Ed. Alhambra, 1981.
______________. O mundo das imagens. São Paulo: Ed.
Àtica, 1992.
_______________. Jung,
vida e obra. São Paulo: Ed. Àtica, 2000.
A autora, Cybele Maria Rabelo Ramalho, é
psicóloga, diretora da Profint (www.profint.com.br), Psicodramatista e
especializada em Psicoterapia Analítica, publicou este trabalho no seu site www.artefantastica.com, em 2012.