terça-feira, 30 de junho de 2015

Artigo IV


A Arte Fantástica – uma leitura da Psicologia Analítica
Cybele Ramalho
2012

 
Segundo Walter Schurian, psicólogo e estudioso da percepção estética, encontramos a presença fantástica em quase todas as épocas e disciplinas artísticas. Mas, foi somente no século XX, com o surrealismo, o cubismo, o dadaísmo, etc., que esta forma de arte teve especial atenção e passou a ser uma importante corrente. 
Ao longo deste século, a fantasia tem passado, nas artes plásticas, do externo ao interno. A visão fantástica do externo, do mundo, da natureza, do universo, tem cedido lugar a uma contemplação introspectiva da pessoa, do indivíduo, do próprio corpo. Ao eu, em seu território inconsciente dos sonhos, sentimentos e desejos.



Com isto, se abre uma nova percepção de si e da alteridade. Cientificamente, o homem não pode interpretar-se por meio de si mesmo, a não ser através da arte. A fantasia dota de sentido a alma humana e ela pode ser entendida como complemento das tendências racionais, construtivistas e analíticas da arte realista, abstrata e minimalista, por exemplo.



A arte fantástica reflete, com seus desvarios e extravagâncias, as distintas facetas e as distintas percepções da realidade, trazendo para elas um novo colorido. A psicologia do fantástico se vê acompanhada dos conceitos de imaginação, invenção, sonho e delírio. Referem-se à intuição psíquica, uma função especial que permite o acesso a imagens desconhecidas.


 
 Esta forma de arte situa o homem no centro e o apresenta a um tempo desconhecido e misterioso. Centrando-se na psique, a arte fantástica se serve (em geral, mas não exclusivamente) das percepções inconscientes. Joga com as alteridades, surpreende, choca, desconcerta. Ela toma como objetivos as sensações e as emoções camufladas, assim como expressa sonhos e desejos. A fantasia (ou o fantástico) se move fora do âmbito do conhecido e pode ajudar na resolução de problemas, no desenvolvimento da criatividade, da genialidade, na conscientização de sentimentos e comportamentos. Ela pode desempenhar um papel chave na ciência e isto foi comprovado desde Freud, a J. L. Moreno (criador do psicodrama), passando por C. G. Jung (criador da psicologia analítica).
 
 

O Artista, a Arte e a Psicologia Analítica 

Segundo o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), o homem criador constitui um enigma, embora a psicologia pessoal do artista possa se encontrar nas raízes e nas ramificações de sua obra, influenciando a sua temática, como tem revelado a visão psicanalítica freudiana. A escola freudiana defende a ideia de uma satisfação substitutiva presente na obra de arte, representando os recalques do artista e os seus condicionamentos pessoais, analisando-a como eles analisam a neurose, a religião e a filosofia: uma espécie de desculpa, um modo de não querer encarar as coisas, um desvio, um erro. Ao contrário disto, Jung destaca que a essência da obra de arte não é constituída pelas particularidades pessoais que pesam sobre ela, se eleva muito acima do plano pessoal. Fala do espírito e do coração da humanidade. Para ele (Jung, 1985, p. 89), “Os elementos pessoais constituem uma limitação, e mesmo um vício da arte” e ”Quanto mais numerosas forem, menos se tratará de arte”. “Quando a escola freudiana pretende que o artista possua uma personalidade restrita, infantil e auto-erótica, tal julgamento poderá ser válido para o artista enquanto pessoa, mas não para o criador que há nele” (op. cit.).

 
 Para Jung, “Todo ser criador é uma dualidade ou uma síntese de qualidades paradoxais”. Se por um lado ele é uma pessoa humana, por outro é um processo impessoal, criador. Enquanto pessoa, poderá ter sua neurose ou não, mas enquanto artista só poderá ser compreendido a partir do seu ato criador, que implica uma psicologia objetiva, do inconsciente coletivo. “A arte nele é inata, como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento” (op.cit. p. 90). Ele é um homem coletivo, plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade. Esta exigência às vezes predomina, tornando a sua vida sacrificada em relação ao homem comum.


Ele é “conduzido pelo inconsciente, este deus misterioso que o habita, de modo que é compelido a criar, sem saber a finalidade e o por quê” (op. cit). A exigente paixão criadora é intransigente e põe em risco desejos e seguranças pessoais, de modo que o artista, frequentemente, acaba pagando caro pela centelha divina de sua capacidade genial. Assim, a sua vida é necessariamente cheia de conflitos, sendo identificado como egoísta ingênuo, infantil, intransigente, negligente, primitivo, auto-erótico e vaidoso, pois o seu lado humano é sacrificado em benefício da lado criador. A aventura interior do artista pode ser perigosa para ele, podendo eventualmente levar a uma paralização ou a uma catastrófica explosão dos opostos conjugados em tensão.


Por estas razões, Jung defende que um artista deve ser explicado a partir da sua arte e não a partir das insuficiências de sua natureza e de seus conflitos pessoais. Na sua visão, uma obra de arte nunca deve ser interpretada pelo próprio artista, esta deve ser deixada aos outros e ao futuro. É como um sonho, que apesar de todas as evidências nunca se interpreta a si mesmo e também nunca é unívoco. E para compreender uma obra de arte é preciso permitir-se ser modelado por ela, compreendendo qual foi a vivência original do artista, uma vez que este tocou as regiões profundas e abissais da alma, onde todos os seres vibram.


Portanto, a psicologia da criação artística para Jung é uma psicologia essencialmente feminina. A obra de arte jorra das profundezas do inconsciente, sendo justamente o domínio das mães. Porém, corre o risco da consciência ser arrastada pela força plasmadora desse inconsciente ou da torrente impetuosa subterrânea. Deste processo emergem os símbolos arquetípicos, as “imagens originárias” enterradas no inconsciente desde os tempos primordiais.


Um arquétipo em si mesmo não é bom nem mau, está acima disto, é moralmente indiferente. Ao se confrontar com o consciente, se torna uma dualidade de opostos. Se manifesta quando é provocado e ativado pelos extravios da consciência, pessoal ou coletiva, quando esta se afastou demasiadamente do caminho do meio, se tornou unilateral e falsa. Para restabelecer um equilíbrio anímico acontece a emergência das imagens arquetípicas em sonhos e visões, dos artistas e visionários. Assim é que as necessidades anímicas de um povo são satisfeitas na obra dos artistas. E ele se torna um mero instrumento de sua obra, estando abaixo dela.
 
 

O Símbolo na Arte Fantástica

 
Sabemos que além da linguagem verbal, outras linguagens atingem o indivíduo a níveis mais profundos, relacionadas com o inconsciente pessoal e o coletivo. A partir das descobertas de Jung o ser humano é percebido em sua totalidade, englobando em si tanto o passado, o presente e o futuro, como inconsciência e consciência. Ele valorizou outras formas de linguagem e comunicação, em especial a plástica, aquela que para ele melhor expressa a irracionalidade e os níveis mais arcaicos.


O signo racional representa somente a superfície concreta da experiência dos homens, no contexto do imenso patrimônio do inconsciente coletivo. O interesse e o fascínio atual pela imagem, pela relevância que ela assumiu como meio de comunicação de massas e pelo avanço da tecnologia, fizeram com que muitos estudos se voltassem para as razões irracionais que operam no inconsciente. A ligação íntima com a imagem já se apresenta nas pinturas do homem das cavernas, onde ele descreveu, de forma espontânea, sem o uso do raciocínio, como se sentia no mundo, expressando seus mitos e ritos. Por outro lado, encontramos nas antigas civilizações mitos e ritos transformados em imagens (HAUSER, 1994 ), cujo rico simbolismo supera muito seu valor artístico.


O símbolo provém da consciência e do inconsciente, sendo capaz de unir ambas as partes, funcionar como elo unificador. Após muitos anos de estudos comparativos entre ritos, mitos, contos de fada, sonhos e alquimia, partindo de imagens ao inconsciente, “Jung chegou à conclusão de que estas correspondem, em cada caso individual, a certos arquétipos que operam, se elaborados através de símbolos” (HAUSER, 1994 : 18 ).


Assim, os arquétipos são produtos do inconsciente coletivo e existem em todos, sem limites espaçotemporais, nem culturais. Por isto são extremamente obscuros e ambíguos, possuindo carga energética forte. Os conteúdos arquetípicos aparecem sob a forma de imagens e são dados da estrutura psíquica do indivíduo, na forma de “possibilidades latentes”, em potencial. O símbolo, por sua vez, é indeterminado e ambíguo, se refere a algo dificilmente definido. Em sua obra “O homem e seus símbolos” (1964: 6), Jung explica que “uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa do seu significado manifesto e imediato (...), tem um aspecto inconsciente mais amplo que nunca é precisamente definido ou de todo explicado”.


As imagens simbólicas que brotam na Arte Fantástica, assim como nos sonhos, revelam imagens arquetípicas, numinosas, ambíguas. Revelam um fio irracional que denuncia a perda da inocência do homem civilizado, a perda do vínculo que o liga ao universo, ao arcaico, enfim, à natureza. Segundo Jung, os símbolos têm efeitos transformadores, pois transferem a energia psíquica de uma forma inferior para outra superior, constituindo uma forma de comunicação com o mundo. No entanto, este processo interpretativo não é de fácil compreensão para o leigo. Segundo Jung (apud GAD, 1996, p. 189): “O processo simbólico é uma experiência em imagens e de imagens”.


Para ele, o estudo dos símbolos presentes em sonhos e na expressão artística em geral, possibilita que tenhamos acesso à base arquetípica da psique. Pois estes, os símbolos, são o aspecto visível de uma camada invisível da psique, a expressão de conflitos conscientes e inconscientes, o que aponta para além da realidade concreta, para uma base cujo significado mal podemos apreender, de início. Os símbolos apresentam dois níveis: um específico (pessoal) e outro geral (impessoal) e nunca são compreensíveis de todo. Por outro lado, eles apresentam implicações emocionais e pertencem ao vasto domínio da religião, da filosofia, da arte e da literatura. Na expressão plástica da arte fantástica, o artista se comunica de forma simbólica com o mundo, dificilmente compreensível. Expressam em seus desenhos, esculturas e pinturas, símbolos oníricos, em grande parte arquetípicos – estes últimos, representantes de inquietações despojadas dos resíduos culturais.


O pensamento arcaico e primitivo aparece no simbolismo das obras dos doentes mentais, assim como nas obras dos mais célebres artistas plásticos, inexplicáveis dentro do raciocínio do homem civilizado moderno. Ao estudar os símbolos arquetípicos nos trabalhos dos que apresentavam transtornos mentais crônicos, Jung pode interpretar a ambiguidade dos símbolos por um lado e, por outro, a relação específica com os complexos emocionais dos seus pacientes.


Nas imagens fantásticas podemos observar uma mistura de conteúdos pessoais e coletivos. Estes últimos, os símbolos coletivos, constituem, por sua própria natureza, material arcaico em conjunção com inegáveis imagens mitológicas. Segundo SILVEIRA (1992:97): “As imagens simbólicas formadas no inconsciente constituem a substância da qual é feita a vida psíquica emocional. Cada emoção é acompanhada de uma imagem e, cada imagem, de dinamismo correspondente. As emoções se configuram através de imagens simbólicas muito próximas das imagens de mitos e rituais”.


Estas imagens surgem, não só nos artistas e nos que apresentam transtornos psíquicos, mas cotidianamente nos sonhos e fantasias de todos os seres humanos. Para se tornarem obras de arte, as rudes imagens primordiais precisam ser elaboradas, transmutadas, em formas que possuam certas qualidades ditas artísticas. Para Jung ( apud SILVEIRA, 2000:147) “o processo criador, na medida em que o podemos acompanhar, consiste numa ativação inconsciente do arquétipo, no seu desenvolvimento e da sua tomada de forma até a realização da obra perfeita”.


Assim, no misterioso ato criador da Arte Fantástica, o artista “mergulha até as funduras imensas do inconsciente. Ele dá forma e traduz na linguagem de seu tempo as intuições primordiais e, assim fazendo, torna acessíveis a todos as fontes profundas da vida” (SILVEIRA, 2000: 143).


Podemos afirmar que, para JUNG, a autêntica obra de arte é uma produção impessoal, pois os conflitos pessoais/emocionais do artista não são decisivos para o conhecimento da obra. Para ele, o artista é um homem coletivo, que expressa com suas obras a alma inconsciente e ativa da humanidade como um todo.


Se para Jung a compreensão dos símbolos é necessária para que tenhamos acesso aos processos psíquicos inconscientes, com a arte fantástica (simbólica e onírica por excelência), estamos diretamente conectando arte e psicologia. A arte fantástica nos conectaria não somente aos sonhos, mas aos mitos, aos contos de fada, aos rituais primitivos, auxiliando assim na transcendência dos conflitos humanos, contribuindo para a sua transformação.


Deste modo, estudar estes fenômenos pode ser incômodo, pois significa transitar, flutuante, numa atmosfera rarefeita de possibilidades, sem saber se o que vemos e sentimos é verdadeiro ou ilusão, apostando na sincronicidade e na sinceridade da subjetividade. Pois, diante da arte fantástica em suas implicações com a psicologia do inconsciente, o pensamento causal cai por terra e temos de lidar com a coincidência significativa de acontecimentos, ou seja, com uma visão sincronística. 

No entanto, segundo GAD (1996:336) “existem camadas da nossa psique que só podem ser abordadas com a imaginação e a inspiração proporcionadas por uma sabedoria ancestral, capaz de penetrá-las”. A compreensão da sabedoria implícita nestas imagens, inclusive suas conexões mitológicas, exige do estudioso que este deixe de lado o pensamento disjuntivo, racionalista, assim como passe a usar a intuição para alcançar um nível superior de consciência.


Jung afirmava que a psique e a matéria se compartilham mutuamente e possuem ação recíproca. Via a psique como um sistema dinâmico, auto-regulador, caracterizado por flutuações entre polos, considerando-a uma manifestação da dinâmica básica da vida. A força e a riqueza desta psique criativa podem ser manifestadas, de forma encantadora e fascinante, através da arte fantástica.
 
 

O Feminino na Arte Fantástica

 
Ao não aceitar mais o papel naturalizado de mulher-mãe, a mulher contemporânea se afastou das raízes arquetípicas do Self Feminino, ou perdeu a sua conexão com o arquétipo da Mulher Selvagem. É uma dificuldade para esta mulher, reconhecer- se como ela é e afirmar o seu direito de existir a seu próprio modo, numa sociedade patriarcal. 
A redenção do Feminino é uma necessidade, e diz respeito às mulheres e aos homens. Cabe ao homem compreender a sua Anima (o feminino inconsciente que há em si), renunciar a uma imagem estereotipada de si mesmo; e à mulher, se sentir mais a vontade para expressar suas exigências internas, de maneira menos violenta, sem ter de adotar atitudes masculinas. A emancipação do Feminino exige mudanças em ambos, assim como em todas as dimensões da vida social, política, educacional, familiar, etc.


É necessário criar um espaço vital novo, onde os valores femininos possam ser vividos, reconhecidos e integrados. Esta mudança requer também um lento e gradual processo de maturação interior, que pode ser acompanhado no meu trabalho através da arte fantástica. Através da arte, busco expressar e elaborar o que o Feminino Selvagem me impõe, intuitivamente. Não apenas isto se revela nas relações da mulher coma a natureza, mas nas relações amorosas homem-mulher (ou entre o Masculino e o Feminino), que vão permear a trajetória do meu trabalho, desde a sua origem. Estas forças vão dialogando internamente e em busca de uma interação mais satisfatória, ao longo do tempo. A complementaridade entre o Masculino e o Feminino realiza-se, de certa maneira, no plano exterior, mas no plano interior ela é um processo mais difícil e sutil, o que vai sendo espelhado sutilmente e despretensiosamente através das minhas obras.


Podemos encontrar, na leitura do meu trabalho, certos fundamentos arquetípicos da psicologia feminina, que foram constelados intuitivamente, desde a adolescência, ou emergiram dos meus sonhos e dos sonhos de algumas clientes que acompanhei. Por ser um produto do inconsciente e um conteúdo de certo modo primitivo, arcaico, primordial, adquire um caráter surreal e fantástico. Assim, trago imagens emergentes do reino da Grande Deusa, da Grande Mãe e da Mulher Selvagem, que vem acompanhada de animais (serpentes, aves, peixes, polvos e felinos) e de plantas, florestas e flores, símbolos dos mistérios e da força do Feminino.


Enfim, trago o Princípio Feminino ou Eros , assim como alguns mitos e rituais que espelham temáticas femininas e que permeiam as relações homem-mulher. Imagens que podem surpreender o olhar contemporâneo, mas que o provoca, despertando intuições e sentimentos talvez esquecidos.
 
 

A Grande Deusa, a Grande Mãe ou o Grande Feminino

 
Uma presença contínua e intuitiva nos meus trabalhos, desde a adolescência (1974), tem sido a figura feminina em suas várias facetas, o que nos remete à Deusa da Antiguidade ou ao Grande Feminino. Este arquétipo ainda se mantém vivo no inconsciente do ser humano contemporâneo, em seu caráter positivo e negativo, assim como em seu caráter de transformação espiritual.  A Grande Mãe, enquanto mãe e terra-mulher, é revelada em seu aspecto nutridor, protetor, acolhedor, terrível e devorador, assim como símbolo arquetípico da fertilidade e está presente em numerosas esculturas, pinturas e desenhos rupestres desde a Idade da Pedra (são as obras artísticas mais antigas que a humanidade conhece). 
Desde os povos primitivos que viviam sob o domínio do matriarcado, até o advento das sociedades patriarcais, observam-se manifestações deste arquétipo. A constelação arquetípica básica e elementar, reveladora do inconsciente coletivo, permanece até os dias atuais, apesar de revestida em diferentes roupagens, nas diferentes culturas e momentos da história da humanidade.
 

 Atualmente, mesmo predominando uma união produtiva entre o consciente e o inconsciente, estes conteúdos primitivos ainda emergem, simbolicamente, nas manifestações artísticas. Segundo Neumann (2006:84), “a imagem arquetípica da Grande Mãe é viva, tanto no indivíduo como no grupo, tanto no homem como na mulher”, de modo que o domínio deste arquétipo constela a situação psíquica original e arcaica.


Ao mergulhar intuitivamente nas imagens do inconsciente, o meu trabalho revela o grotesco e o simbólico do excêntrico mundo ctônico, que pode ter um caráter numinoso ou espiritual. Recebe destaque certas partes do corpo da mulher (boca, olhos, seios, ventre, útero, ancas, genitália), assim como associações com seres do reino animal (peixes, polvos, pombas, aves de rapina, leões e serpentes) e vegetal (árvores, florestas, folhas, flores e frutos).


A Grande Deusa foi venerada como geradora da vida, senhora dos seres vivos, das plantas e doa animais na Antiguidade. Ao longo da história, a apresentação da Grande Deusa (seja nas mitologias, histórias, lendas ou manifestações artísticas) veio acompanhada destes elementos naturais (animais selvagens, predadores ou domesticados), em variadas épocas e culturas. Foi associada também à agricultura e às diversas formas de fertilidade, numa época em que o indivíduo, o grupo e o meio natural que o cercava (animais, plantas) viviam ainda numa relação de participacion mystique, e não como diversidades (Neumann, 2006).


Assim, as suas imagens estão relacionadas ao inconsciente coletivo, mãe de todas as coisas, e abrange os opostos. Alguns elementos simbólicos do Grande Feminino se apresentam em meu trabalho, expressos em sua forma natural e sensual, envoltos numa aura de fertilidade, irrealidade e espiritualidade. Este simbolismo fantástico vai aparecer através de figuras primitivas hermafroditas, grotescas, cuja natureza contém, em si, os opostos.


O Grande Feminino é também a senhora do tempo, da lua, da fortuna e do destino, governa o crescimento. Tece e trama não só a vida humana, como o destino do mundo. Assim a Deusa vem associada ao símbolo arquetípico da árvore que, firmemente plantada na terra que a nutre, enraizada nas profundezas, se eleva ao ar para se desenvolver. 
O caráter feminino-numinoso da árvore, está também presente em suas folhas e frutos, mas vem combinado ou associado à água e à terra. Assim, “é possível acompanhar o simbolismo entre a mulher e a planta em todos os estágios do simbolismo humano. Por outro lado, a totalidade psíquica como flor, lótus, lírio e rosa (...) simbolizam o desabrochar das mais elevadas possibilidades psicoespirituais ” (Ibidem, p. 230).


O Grande Feminino aparece frequentemente com asas (como é o caso da imagem de Lilith) e tem influencia sobre touros, leões, serpentes, abelhas, aves de pântanos, pombos, peixes, polvo e escorpião. Por outro lado, se apresenta como um ser ctônico, do mundo inferior, das profundezas da terra. Isto demonstra que ela abrange o princípio dos opostos, os três reinos (animal, vegetal e mineral), ou seja, o todo, a totalidade. Ela gera, governa e domina o lado animal dos instintos e as pulsões selvagens. Sua força formadora vai se refletir também na capacidade de amar e na disponibilidade para o amor. Exerce sua lei de transformação e conduz a uma evolução, sem perder o vínculo com as raízes e os fundamentos, atingindo formas mais elevadas de realidade psíquica.
 
Finalizando, através da arte fantástica as imagens arquetípicas da Grande Mãe ou do Grande Feminino emergem e intervém na vida de homens e mulheres enquanto fonte de visão e de símbolo, do ritual, da poesia, da sensibilidade, da vidência, para facilitar o processo de cura do ser humano e dar sentido à sua vida. Ela é uma divindade de amorosa participação, redentora, presença viva e próxima, que nutre o espírito. Revela-se especialmente na mulher como o “eterno feminino” mais evoluído, em sua majestosa grandeza, em todas as épocas e culturas, em seus sonhos, visões, obsessões, relacionamentos, projeções, fantasias e produções artísticas.
 
 Referências Bibliográficas:

Bogado, Anna P. C. “Maria Madalena: o feminino na luz e na Sombra”. Rio de Janeiro, Ed Lucerna, 2005.
 
Bolen, Jean S. A sincronicidade e o Tao. São Paulo: Cultrix, 1979.
 
Chevalier, J. E Gheerbrant, A. Dicionário de Símbolos – Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 2009.
 
Ehrenzwueig, Anton. A ordem oculta da arte - Psicologia da Imaginação Artística. 2ª. Edição, Rio de Janeiro: Zahar editora, 1977.
 
Gad, Irene. Tarô e Individuação – correspondências com a Cabala e a Alquimia. São Paulo: Ed. Mandarim, 1996.
 
Hauser, Ana. A linguagem plástica do Inconsciente. São Paulo: Ática, 1994.
 
Jung, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
 
_______. Memórias, sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova  Fronteira, 1983.
 
_______ . Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. C.W.  Petrópoles: Vozes, 1999.
 
________. O Espirito na Arte e na Ciência. C.W. XV. Petrópoles: Vozes, 1985.
 
Morin, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
Neumann, Erich. A Grande Mãe – um estudo fenomenológico da construção feminina do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 2006.
 
Ostrower, Fayga. A sensibilidade do intelecto. Rio de Janeiro: Ed. Campos, 1998.
 
Schurian, W. & Grosenickk, U.  Arte Fantástico. Madri: Ed. Tashen, 2001.
 
Silveira, Nise da.  Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Ed. Alhambra, 1981.
 
______________.  O mundo das imagens. São Paulo: Ed. Àtica, 1992.
 
_______________. Jung, vida e obra. São Paulo: Ed. Àtica, 2000.


   A autora, Cybele Maria Rabelo Ramalho, é psicóloga, diretora da Profint (www.profint.com.br), Psicodramatista e especializada em Psicoterapia Analítica, publicou este trabalho no seu site www.artefantastica.com, em 2012.  

terça-feira, 16 de junho de 2015

Resenha Crítica IV - O Pequeno Príncipe


Análise da obra “O Pequeno Príncipe” sob a perspectiva da teoria Junguiana

"Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, pois cada pessoa é única
e nenhuma substitui outra.
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, mas não vai só
nem nos deixa sós.
Leva um pouco de nós mesmos,
deixa um pouco de si mesmo.
Há os que levam muito,
mas há os que não levam nada.
Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,
e a prova de que duas almas
não se encontram ao acaso. "
(Antoine de Saint-Exupéry)

Este texto trata de uma breve reflexão entre a Psicologia Analítica e o filme O Pequeno Príncipe, baseado no livro de mesmo nome, do autor francês Antoine de Saint-Exupéry. O filme apresenta rico simbolismo e apesar de possuir elementos da psicologia de seu autor (a história do personagem é a própria vida do autor), ela ultrapassa a dimensão pessoal, sendo capaz de tocar e espelhar a alma humana em todo seu mistério e delicadeza de detalhes.
O Pequeno Príncipe foi escrito e ilustrado por aquarelas pelo próprio autor um ano antes de sua morte, em 1944. Na verdade, vários textos afirmam que o principezinho nasceu bem antes de 1943. A figura aparece em muitas correspondências do autor, em cadernos e até guardanapos de papel. Contam que certa vez, enquanto rascunhava um garoto na toalha de um restaurante, um amigo lhe perguntou o que desenhava. O autor respondeu: “Apenas o garoto que existe no meu coração”.
No ano de 2013 o livro completou 70 anos. Nestas sete décadas “O Pequeno Príncipe” foi traduzido para mais de 200 línguas. No Brasil, segundo a editora, a obra vende mais de 300 mil exemplares por ano.
Como a história do personagem é a própria vida do autor, acho fundamental tecer mais detalhes sobre o “pai” do Pequeno Príncipe. Antonie Marie Jean Batiste Roger de Saint-Exupéry nasceu em 29 de junho de 1900 em Lyon, na França. Filho de Antoine Jean Baptiste e Marie Roger Foscolombe de Saint-Exupéry, o conde e condessa de Foscolombe. Cresceu num castelo, como os contos de fada.
Seu pai morreu quando ele tinha quatro anos. Manteve pela vida inteira uma forte correspondência com a mãe, o que acabou gerando seu "o complexo materno”. Saint-Exupéry é um caso típico de puer aeternus. Outra perda significativa foi a de seu irmão. Este era três anos mais novo que Saint-Exupéry e morreu quando ele tinha 17 anos.
Queria voar desde menino, quando amarrava asas de lençol na bicicleta. Dizia aos irmãos: “Vocês verão quando eu sair voando num avião! A multidão gritará: Viva Antonie de Saint-Exupéry!”.
Como piloto de empresa que transportava correspondência, aterrissou algumas vezes no Brasil. Em 1929, em Florianópolis, fez amizade com pescador que o batizou de Zé Perri. Juntos, pescaram e caçaram. Importante informar que o piloto Antoine de Saint-Exupéry quis ser, no primeiro momento, pintor. Como não houve incentivo, cresceu e formou-se piloto.
            Mestre em manobras arriscadas sofreu vários acidentes. Proibido por médicos a voltar a pilotar, desapareceu num voo em 31 de julho de 1944, durante uma missão de reconhecimento, um ano depois de publicar “O Pequeno Príncipe”. Sumiu tão misteriosamente quanto seu personagem.
 Em três de novembro, em homenagem póstuma, recebeu as maiores honras do exército. Em 2004, os destroços do avião que pilotava foram achados a poucos quilômetros da costa de Marselha. Seu corpo jamais foi encontrado.
Ele escreveu outros livros e suas obras foram caracterizadas por alguns elementos em comum, como a aviação, a guerra. Também escreveu artigos para várias revistas e jornais da França e outros países, sobre muitos assuntos, como a guerra civil espanhola e a ocupação alemã da França.
Sua obra teve repercussão mundial. É um livro, a princípio, voltado para o público infantil, mas que, pelo vasto conteúdo e riqueza de lições, acabou sendo aderido como leitura pelos adultos também.
A história do filme começa com o autor, em primeira pessoa, trazendo indiretamente seu relato pessoal autobiográfico. Logo podemos perceber o quanto ele se sentia sozinho, sem ninguém com quem pudesse conversar (já que os adultos não entendiam a infância; e ele na vida adulta não entendia os adultos). Esse tipo de mundo adulto rejeitado é segundo Marie-Louise Von Franz o vazio da persona:
Ele acredita que a infância é a verdadeira vida, e que todo resto é a persona vazia correndo atrás de dinheiro, tentando impressionar os outros para ser prestigiada, havendo perdido sua verdadeira natureza, por assim dizer. É assim que ele vê a vida adulta, pois não encontrou a ponte através da qual ele poderia conquistar o que chamamos vida verdadeira na vida adulta (VON FRANZ, 2011, p 22).

Na primeira cena do filme o destaque é para o desenho que fez na infância de uma serpente que engoliu um elefante. Esse desenho se deu porque ele vira anteriormente a imagem de uma cobra engolindo um animal sem mastigar e de alguma forma aquilo o impressionou.
            Quando mostrava seu desenho aos adultos, eles sem compreender disseram que era um chapéu. Após sua segunda tentativa, agora revelando o interior da cobra, os adultos o desestimularam a continuar desenhando e o incentivaram a se dedicar aos estudos.
Se associarmos o simbolismo do desenho feito na infância com a dificuldade de sair do mundo infantil sem cair no mundo de ilusões do adulto veremos que as implicações são mais profundas:
A serpente boa é obviamente uma imagem do inconsciente, que sufoca a vida e impede o desenvolvimento do ser humano. É a introjeção do aspecto regressivo do inconsciente, a tendência à regressão, que surge numa pessoa quando ela é dominada pelo inconsciente. O herói devorado não se liberta. (VON FRANZ, 2011, p 24).

            O animal devorado é o elefante. Para os Europeus, o elefante é o arquétipo do homem sábio, ou do pajé, que tem além de coragem, sabedoria e conhecimentos secretos. Além dessas virtudes, também, caracterizavam o elefante por um animal de humor instável e chamavam a atenção para os seus ataques de raiva.
É surpreendente como essas características, humor instável e raiva, eram características marcantes em Saint-Exupéry. Pode-se dizer, então, que essa era uma descrição exata de sua personalidade. Segundo Marie-Louise Von Franz, o elefante á a fantasia típica do herói adulto. Sendo assim, esse modelo, a imagem do que sua alma quer vir a ser, é devorada pela serpente, mãe devoradora. Seu primeiro desenho já mostra toda a tragédia.
Muito frequentemente, os sonhos da infância antecipam o destino interior com 20 ou 30 anos de antecedência. Esta primeira gravura mostra que Saint-Exupéry tinha um lado heroico vivo atuante, mas que esse lado nunca iria aparecer, pois seria devorado pelas tendências regressivas do inconsciente e, como sabemos, através dos acontecimentos posteriores de sua morte (VON FRANZ, 2011, p 26).

Observem como o mito da mãe devoradora pode ser associado à mãe de Saint-Exupéry. Seu complexo materno, sempre inclui o risco de ser devorado pelo inconsciente.
    Logo após essa cena o autor narra seu acidente de avião, quando ele cai no deserto do Saara. A imagem do deserto simboliza na psique um período onde a energia da personalidade consciente vai se esgotando e as coisas ficam sem sentido; a pessoa fica apática e sem vida. Nesses casos ocorre que a energia bloqueada inconsciente flui e oferece uma solução original. Nota-se isso com o aumento da atividade onírica, que faz com que a pessoa preste mais atenção em seus conteúdos inconscientes.
            Como ele estava sozinho, teve que aprender a ser mecânico e consertar o motor do seu avião. Depois da primeira noite de sono no deserto, de repente, é acordado por uma criança. Ou seja, inicia a história, propriamente, de um piloto perdido no deserto e um menino vindo de um lugar distante. Juntos eles irão compartilhar diversas experiências.
            Outro detalhe desta passagem do filme é que esse encontro milagroso no deserto tem a ver com o que aconteceu na vida pessoal de Saint-Exupéry. Uma vez lhe aconteceu um desastre aéreo no Saara, mas nesta situação ele não estava só, mas com seu mecânico. Eles tiveram que trabalhar exaustivamente e quase morreram, quando foi resgatado por um árabe.
            Ele obviamente usou suas lembranças no seu livro transformando essas lembranças. Neste caso o mecânico seria sua sombra, e que no filme não está com ele, e ele não fala sobre o salvamento. Mas ele traz na obra algo de sobrenatural, como fantasias arquetípicas, ou seja, isso mostra a situação psicológica típica onde a personalidade consciente esgotou todos os seus recursos e não sabe o que fazer (daí apela para o sobrenatural).
            Na cena seguinte, a figura misteriosa do Pequeno Príncipe pede que ele desenhe um carneiro, e após três tentativas que o menino recusa, o homem impaciente desenha uma caixa e diz que o carneiro está dentro. O Pequeno Príncipe diz que aquilo é exatamente o que queria.
Essa impaciência de Saint Exupéry é vista por Von Franz como outro traço típico do puer aeternus. Quando analisamos um homem puer aeternus o que é realmente importante é fazê-lo perseverar em alguma atividade:
O que importa é que ele faça algo do principio ao fim, seja lá o que for. Mas o grande perigo, ou o comportamento neurótico, é que o puer aeternus, ao realizar tais atividades, tende a fazer o que Saint-Exupéry fez aqui: simplesmente colocar tudo dentro de uma caixa e fechar a tampa com um gesto de impaciência. É por isso que estas pessoas dizem de repente que elas mudaram de ideia e que têm outros planos, que não é aquilo que estavam procurando. E eles sempre fazem isso no momento em que as coisas ficam difíceis. (VON FRANZ, 2011, p 35)
            Quando Saint-Exupéry impaciente coloca a ovelha dentro da caixa (simbolicamente na caixa de seu cérebro), ele aceita a ideia, mas apenas como uma ideia. Tudo permanece no mundo do pensamento.
            Passando para o simbolismo da ovelha na vida pessoal de Saint-Exupéry, pode-se ver, mais tarde no filme, que no planeta do Pequeno Príncipe há um supercrescimento de baobás que brotam constantemente. O Príncipe das estrelas quer a ovelha para comer os brotos logo que eles aparecerem, para não ter que trabalhar o tempo inteiro arrancando-os. Porém, o Pequeno Príncipe não explica isso a Saint-Exupéry, e a razão verdadeira só aparece mais tarde.
            Marie-Louise Von Franz explica em seu livro, que a ovelha era usada nos campos de aviação e poderia acontecer de o avião por engano atropelá-las. Segundo a autora, pode-se dizer que Saint-Exupéry projeta nas ovelhas aquele destino que um dia leva o puer aeternus à morte, ou, neste caso, ele próprio. É o inimigo fatal.
            Ainda a respeito do significado da ovelha tem-se:
Portanto, o menino das estrelas de nossa história quer uma ovelha. Ficamos sabendo que ela é necessária para comer as árvores que crescem demais, que obviamente é um símbolo da mãe devoradora, portanto o desejo de uma ovelha parece, à primeira vista, ter um significado positivo; quer dizer, o asteroide está ameaçado pelo super crescimento, que é o complexo materno. Já ilustrei isso de uma outra maneira, com a ovelha como parte do complexo materno, o que é útil, e não como o remédio certo contra o crescimento. Portanto, aqui novamente deparamos uma total ambiguidade.  (VON FRANZ, 2011, p 52).
            Em seguida o homem começa a saber mais sobre de onde veio aquele garoto. Ele vivia em um planeta muito pequeno com sua rotina (limpar três vulcões, sendo um extinto, e podar a grama e ervas daninhas). Até que um dia nasce uma rosa.
            Podemos interpretar esse estágio como uma identificação do ego com o Si-mesmo no princípio, quando as coisas estão indiferenciadas e o processo de individuação ainda não começou. A chegada da rosa indica o começo do desenvolvimento, assim como no mito Eva é feita da costela de Adão. Há a separação dos opostos. É o começo do estranhamento ego-Si-mesmo.
            O fato de um dos vulcões está extinto nos faz imaginar que isto possa ser a representação da libido que desapareceu. O fato de ele limpar sempre os vulcões porque ““nunca se sabe”” mostra uma esperança longínqua dele se tornar ativo de novo.
            Para Marie-Louise:
Acho que isso confirma nossa hipótese de que há uma fraqueza vital, ou destrutividade, nas camadas mais profundas do solo psíquico de Saint-Exupéry, que foi afinal responsável pelo fato de ele não sobreviver à crise da meia-idade, uma tragédia tão frequente para o puer aeternus (VON FRANZ, 2011, p 91).
            Considerando o tamanho do planeta, podemos inferir que representa sua fraqueza vital. Segundo Marie-Louise Von Franz, a vitalidade estava cedendo em alguns pontos, e com ela, a capacidade de ter reações afetivas autênticas.
Examinado a rosa, esta se mostra bela e perfumada, porém faz muitas demandas ao Pequeno Príncipe que se cansa. Essa imagem da rosa pode ser analisada, conhecendo-se um pouco da vida do autor, sob o aspecto do complexo materno. As muitas exigências da rosa é a típica manipulação do tipo materno negativo. Sobre o assunto Von Franz nos conta:
O mito da mãe devoradora pode ser associado à mãe de Saint Exupéry [...]. Ela certamente tem uma personalidade muito poderosa. É mulher grande, forte, e pelo que ouvimos dizer, possui uma tremenda energia, interessa-se por todos os tipos de atividades, e tenta fazer de tudo, como pintura, desenho e literatura. [...] Obviamente, deve ter sido muito difícil para um garoto sensível ter uma mãe assim. Também se ouve dizer que ela previu a morte do filho. Várias vezes ela o julgou morto e vestiu luto como as viúvas francesas, e depois tirava o luto quando ficava sabendo que ele não havia morrido. Portanto, o padrão arquetípico do que chamamos mãe-morte estava vivido em seu . (VON FRANZ, 2011, p 26-27)
            Na relação com a rosa observa-se, também, que o autor faz alusão à sua experiência com mulheres. É a sua primeira projeção da anima, nesse caso uma anima inflada, exigente.
Fica claro no filme o quanto é difícil para ele não saber lidar tanto com o temperamento e vaidade da rosa como também com seu charme e beleza. Nas cenas seguintes vemos como tanto o Pequeno Príncipe quanto a rosa tinha um comportamento infantil. Ambos sofrem, mas são orgulhosos demais para fazer um gesto de reconciliação ou não sabem como fazê-lo. Essa descrição lembra muito uma relação amorosa onde um tortura o outro.
Se examinarmos isso do ponto de vista de Saint-Exupéry podemos entender um pouco as separações sofridas por eles em sua vida, ou seja, seu gênio interior, o Pequeno Príncipe, foi atormentado pela instabilidade da anima e que o objeto do seu sofrimento era amadurecer o núcleo por demais infantil de sua personalidade.
A esposa de Saint-Exupéry parece ter sido um pouco histérica e acometida de tremendas crises temperamentais. Ele vivia tão mal com ela que a abandonou e viveu por algum tempo com outra mulher que o ensinou a fumar ópio. É também notável e bem típico da mãe de Saint-Exupéry não ter gostado da esposa dele, mas ter adorado a mulher que lhe ensinou a fumar ópio. Ela sentiu que o havia perdido menos para a segunda mulher do que para a primeira. Contudo, ficamos sabendo disso pela sua esposa e devemos, portanto das o devido desconto. (VON FRANZ, 2011, p. 87)
Um fato interessante é que Saint-Exupéry perdeu um irmão quando tinha dezessete anos. Ele era muito ligado a este irmão e segundo muitos, a morte dele foi um trauma do qual nunca se recuperou. É como se uma parte de sua personalidade infantil tivesse morrido junto com seu irmão. Isso reforça, ainda mais, a idéia que o Pequeno Príncipe seria, então, uma imagem exterior do que tinha acontecido dentro dele, ““uma projeção de algo que morrera e levara consigo uma parte de Saint-Exupéry”” (VON FRANZ, 2011).
            Em seguida no filme, por sofrer tanto com o temperamento instável da rosa, decide sair de seu planeta, chamado de B-612 e, vendo um bando de pássaros migrarem, resolveu agarrar-se a um deles e deixar-se levar, vai visitar e explorar asteroides vizinhos e depois chega a terra.
            Nestes asteroides o pequeno viajante encontra personagens, os quais poderiam ser chamados de sombras, ou capacidades interiores de adaptação de Saint-Exupéry à realidade.
O primeiro dos personagens inusitados foi o rei. Este pensava que todos eram seus súditos e não tinha nenhum amigo perto. Pode-se perceber que o rei priorizava as grandes coisas, a estética. O sentido da existência não se dava na relação com o outro. O súdito e o admirador eram significantes apenas no momento em que valorizava a eles próprios, aquilo que se quantificava (relação superficial, de aparências).
            Depois do rei ele encontra um geógrafo que se dizia sábio, mas que não sabia nada da geografia do seu próprio país. Encontra também um homem de negócios. Este se dizia muito sério e ocupado, mas não tinha tempo para sonhar. Encontra também um historiador.
Acredito que a força e a profundidade da mensagem destes encontros inusitados é a de mostrar que, ““ as pessoas grandes são estranhas ”” (ele conclui repetidamente isso a cada encontro com um novo personagem). Isso fica realmente claro, os personagens são ilógicos incoerentes, valorizam o que não tem valor por si mesmo, não se dão conta da sua própria miséria existencial.
Assim como os personagens, nós, quando nos tornamos adultos, nos distanciamos da naturalidade com que a criança encara a vida, nos alienamos de nós mesmos. Deixamos de valorizar o que é realmente essencial no mundo e nos desnaturalizamos, focando toda a nossa atenção e energia em artificialismos criados culturalmente e que não existem naturalmente, tais como: o sentimento de posse/ apego (representado pelo homem de negócios), o status (o rei), o falso conhecimento adquirido pelo relato de terceiros, substituindo a vivência própria (o geógrafo) etc.
De acordo com Von Franz o homem identificado com o arquétipo do puer aeternus tem, geralmente, grandes dificuldades de adaptação social. Em alguns casos, há um tipo de individualismo associal: sendo alguém especial, ele não tem a necessidade de adaptar-se, pois as pessoas é que têm que adaptar-se a um gênio como ele e assim por diante. Além disso, assume uma atitude arrogante em relação aos outros, devido tanto ao complexo de inferioridade, como a falsos sentimentos de superioridade. Tais pessoas têm grande dificuldade de encontrar o tipo certo de trabalho, pois tudo que aparece é exatamente o tipo que queriam ou procuravam. Há sempre um “cabelo na sopa” A mulher nunca é a ideal, ela é legal como namorada, mas… Há sempre um “mas” que não o deixa casar-se ou comprometer-se.
Von Franz ao analisar as características de uma pessoa identificada com o puer aeternus nos fala:
Ao mesmo tempo, há sempre algo altamente simbólico — principalmente uma atração por esportes perigosos, particularmente aviação e alpinismo — de modo que nesses esportes ele se encontra o mais alto possível, simbolizando a separação da mãe, isto é, da terra, da vida comum. Se esse tipo de complexo for muito pronunciado, muitos homens que o possuem encontrarão a morte prematura em acidentes de avião e de alpinismo. É um desejo exteriorizado que se expressa dessa forma. (VON FRANZ, 2011, p 11).
            Quando o Pequeno Príncipe chega a Terra depara-se com uma cobra que lhe oferece um modo de voltar para casa já que seus pássaros que o trouxeram o abandonaram. Aí está de novo o simbolismo da serpente, como mãe devoradora, figura do inconsciente, ou também a figura alquímica da uroboros, a serpente que morde a própria cauda, símbolo da unidade primordial, do Si-mesmo.
            O Pequeno Príncipe fica tentado a deixar ser picado, o que seria a vontade de ser sugado pelo inconsciente. A cobra, como todos os animais representa o psiquismo instintivo, mas é um instinto completamente banido da consciência. A cobra tem um sentido duplo na mitologia e isto também é visto na história.
Vocês podem ver que a cobra em nossa história tem o mesmo papel duplo. Ela se oferece como exterminadora do Pequeno Príncipe, libertando-o do peso da vida, mas a oferta pode ser compreendida de duas maneiras: como suicídio ou como a portadora da sorte de livrar-se da vida. É essa atitude psicológica radical que afirma que a morte não é uma catástrofe ou um azar, mas um modo de escapar definitivamente de uma realidade intolerável que pode destruir a pessoa. (VON FRANZ, 2011, p 96-97)
Outra ligação ocorre entre a figura da cobra e a criança eterna. A cobra faz o papel da sombra do próprio Pequeno Príncipe; é seu lado escuro. Assim, o oferecimento da cobra para envenená-lo pode significar uma integração da sombra. Segundo Marie-Louise Von Franz “”Infelizmente, isso acontece no Self e não em Saint-Exupéry e isso significa que tudo acontece no inconsciente, retirando o núcleo psicológico da realidade novamente””. (VON FRANZ,2011)
            Nas cenas seguintes ele se encontra com a raposa que, no começo arredia, acaba cativando e sendo cativada pelo Pequeno Príncipe. No início ele a convidou para brincar, mas ela informou que não poderia, porque ele ainda não a tinha cativado. Segundo ela:
 Cativar” significa “criar laços afetivos”, pois tu ainda não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo... (Pequeno Príncipe)
A raposa busca ensinar ao Pequeno príncipe a ser humano, mostrando-lhe a importância do sentimento e tirando-lhe sua ““maneira estatística de pensar (pois o sentimento torna a situação e os relacionamentos de uma pessoa únicos, substituindo a perspectiva maléfica da estatística)”” (VON FRANZ, 2011).
A raposa ensina ao Pequeno Príncipe o grande valor do aqui e agora e também o do sentimento. O sentimento dá valor ao presente, pois sem este a pessoa não se relaciona com o aqui e agora. Sem esta noção do aqui e agora a pessoa não se torna responsável e nem tem consciência da sua individualidade.
Novamente vemos o tema do animal prestativo que ensina o homem a se tornar humano ou, em outras palavras, ensina-lhe o processo de individuação. A idéia da raposa é ensinar o jovem como tornar-se humano. Da mesma forma que a cobra, a raposa representa um poder instituído no próprio homem que embora representado como um animal, na verdade pertence à humanidade.
No final dessa convivência entre o menino e a raposa, ela, triste na despedida, disse ao menino que o presentearia com um segredo: ““ Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”” (Pequeno Príncipe).
Os episódios seguintes são os mais poéticos do filme. Saint-Exupéry começa a sofrer de sede e adentra no deserto. O Pequeno Príncipe vai com ele e faz com que ele encontre uma fonte imaginaria no deserto, cuja água o refresca e enche de felicidade.
Este episódio no filme remete-nos, mais uma vez, ao acidente no qual ficou perdido com seu mecânico, sendo salvo por um beduíno, que lhe deu agua. Provavelmente por ter sido uma de suas mais marcantes experiências, ela se repete em sua obra.
Por ser o símbolo do Self, o deus-criança que o pequeno representa, é também fonte de vida, tem força de renovação. Marie-Louise nos faz pensar na inocência da criança e do quanto éramos cheios de vida, sempre interessados em alguma coisa. É por isso que as pessoas desejam tanto ter de volta a vitalidade que perderam quando cresceram. A criança representa a possibilidade interior de renovação.
Depois do clímax da felicidade que atingiram ao encontrar a fonte, o fim trágico segue-se relativamente rápido. Então é o momento em que o Pequeno Príncipe reencontra com o homem, este o alimenta e o ajuda. Assim o Pequeno Príncipe atinge o conhecimento, torna-se um homem, se torna consciente de seu eu, livra-se de suas atitudes infladas. É o ponto onde o autor se religa com o inconsciente. Ele descobre o manancial da vida, a fonte da energia da psique, e isso fica claro quando ambos descobrem o oásis em meio ao deserto.
 Saint-Exupéry continua o conserto do avião e termina no dia que ele encontra o Pequeno Príncipe deixando-se ser mordido pela cobra. Esta o picou e Saint-Exupéry correu e pegou-lhe nos braços. Uma conversa entre eles acontece. O Pequeno Príncipe pede a ele que desenhe uma mordaça para que a ovelha não coma sua rosa e uma cerca, e assim, Saint-Exupéry descobre que o Pequeno Príncipe vai partir. Ele já não pode fazer mais nada, é tarde demais.
Ele já tinha ficado marcado anteriormente pela sensação de impotência e incapacidade de salvar alguém da morte quando seu irmão faleceu. Quando ele descreve a morte de alguém em seus livros, sempre fala da terrível sensação de impotência. (VON FRANZ, 2011, p 122).

Para Marie-Louise Von Franz, Saint-Exupéry preparou-se para o fim o tempo todo. Isso é uma marca da falta de sentimentos. A pessoa fica consciente da transitoriedade da vida e, portanto está sempre se preparando para o fim. O puer aeternus fica o tempo inteiro mantendo-se a margem da vida, para não se entregar e ser surpreendido por situação desagradável.
            Após esse descobrimento do Si-mesmo, de uma entidade superior reguladora, o Pequeno Príncipe morre prematuramente, o que se pode entender pelo arquétipo do puer aeternus. A esse respeito JUNG diz:
A este tipo [puer aeternus] só é dada uma vida curta [...]. Isto é tão verdade que determinado tipo de filho apresenta in concreto as propriedades de um jovem deus, a tal ponto que vem a falecer precocemente. A razão disto é que ele só vive através da mãe e não cria raízes próprias. (JUNG, 2011, p 310).
            Assim, o Pequeno Príncipe volta para o seu planeta, para a sua rosa, para o princípio, sendo fatalmente sugado pelo inconsciente.
            Considero fundamental, para finalizar a análise, reforçar o cuidado que devemos ter ao ler e refletir sobre o filme. Devemos estar vigilantes para observarmos sempre os dois lados do puer, ou seja, as características positivas e negativas. Como vimos o negativo seria a sombra infantil, o preguiçoso que perde a oportunidade de lutar contra o complexo materno e o outro lado, o positivo, seria o Self, algo que tenta decolar em direção ao futuro, em direção da nova possibilidade da vida depois da crise, de encontrar uma renovação.
É importante compreender o quanto que os traços infantis da personalidade do puer que desvaloriza sua personalidade são os mesmos que promovem a genialidade na escrita de Saint-Exupéry. Ele não seria um artista assim genial se não tivesse a criança divina dentro dele, se não tivesse a capacidade de ser totalmente ingênuo e espontâneo; isso é a fonte de sua criatividade. Como cita Marie-Louise, ““Não se pode julgar, mas simplesmente entender isso como um fator contraditório e imponderável.”” (VON FRANZ, 2011).
Desta fábula foram feitos filmes, desenhos animados, além de adaptações. Muitos adultos até hoje se emocionam ao lembrar do livro. Talvez porque tenham se tornado “gente grande” sem esquecer de que um dia foram crianças.



REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA

EXUPÉRY, Antoine de Saint. O Pequeno Príncipe. 48 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2001.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Vozes, Petrópolis, 2011.
VON FRANZ, Marie-Louise. Puer Aeternus. 4º ed. Paulus, São Paulo, 2011.
LEITE, Micael Lacerda Leite, Análise Crítica do livro O Pequeno Príncipe, 2014, Disponível em: https://psicologado.com/resenhas/analise-critica-do-livro-o-Pequeno-Príncipe © Psicologado.com, Acesso: 19/05/2015.
ROMEU, Gabriela. O Pequeno Príncipe completa 70 anos, conheça as aventuras do autor, 2013, Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folhinha/2013/04/1269197-o-Pequeno-Príncipe-completa-70-anos-conheca-aventuras-do-autor.shtml ou as ferramentas oferecidas na página, Acesso dia 17/05/2015.
JUNIOR, Arryson A. Zenith. Análise da obra “O Pequeno Príncipe” sob a perspectiva da teoria Junguiana, 2012, Disponível em: http://www.researchgate.net/profile/Arryson_Zenith_Junior2/publication/262300920_Anlise_da_obra_O_Pequeno_Prncipe_sob_a_perspectiva_da_teoria_Junguiana/links/0a85e53740b9daeb2c000000, Acesso: 18/05/2015

Resenha Crítica por Ivna Vieira, estudante do Curso de Formação de Psicologia Analítica, realizado pela PROFINT - Profissionais Integrados Ltda.