Análise da obra “O Pequeno Príncipe” sob a perspectiva da teoria Junguiana
"Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, pois cada pessoa é única
e nenhuma substitui outra.
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, mas não vai só
nem nos deixa sós.
Leva um pouco de nós mesmos,
deixa um pouco de si mesmo.
Há os que levam muito,
mas há os que não levam nada.
Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,
e a prova de que duas almas
não se encontram ao acaso. "
passa sozinho, pois cada pessoa é única
e nenhuma substitui outra.
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, mas não vai só
nem nos deixa sós.
Leva um pouco de nós mesmos,
deixa um pouco de si mesmo.
Há os que levam muito,
mas há os que não levam nada.
Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,
e a prova de que duas almas
não se encontram ao acaso. "
(Antoine
de Saint-Exupéry)
Este texto trata de uma breve reflexão entre a Psicologia Analítica e o
filme O Pequeno Príncipe, baseado no livro de mesmo nome, do autor francês
Antoine de Saint-Exupéry. O filme apresenta rico simbolismo e
apesar de possuir elementos da psicologia de seu autor (a história do
personagem é a própria vida do autor), ela ultrapassa a dimensão pessoal, sendo
capaz de
tocar e espelhar a alma humana em todo seu mistério e delicadeza de detalhes.
O Pequeno Príncipe foi escrito e ilustrado por
aquarelas pelo próprio autor um ano antes de sua morte, em 1944. Na verdade,
vários textos afirmam que o principezinho nasceu bem antes de 1943. A figura
aparece em muitas correspondências do autor, em cadernos e até guardanapos de
papel. Contam que certa vez, enquanto rascunhava um garoto na toalha de um
restaurante, um amigo lhe perguntou o que desenhava. O autor respondeu: “Apenas
o garoto que existe no meu coração”.
No ano de 2013 o livro completou 70 anos. Nestas
sete décadas “O Pequeno Príncipe” foi traduzido para mais de 200 línguas. No
Brasil, segundo a editora, a obra vende mais de 300 mil exemplares por ano.
Como a história do personagem é a própria vida do
autor, acho fundamental tecer mais detalhes sobre o “pai” do Pequeno Príncipe. Antonie
Marie Jean Batiste Roger de Saint-Exupéry nasceu em 29 de junho de 1900 em
Lyon, na França. Filho de Antoine Jean Baptiste e Marie Roger Foscolombe de Saint-Exupéry, o conde
e condessa de Foscolombe. Cresceu num castelo, como os contos de fada.
Seu
pai morreu quando ele tinha quatro anos. Manteve pela vida inteira uma forte
correspondência com a mãe, o que acabou gerando seu "o complexo materno”. Saint-Exupéry
é um caso típico de puer aeternus. Outra perda significativa
foi a de seu irmão. Este era três anos mais novo que Saint-Exupéry
e morreu quando ele tinha 17 anos.
Queria
voar desde menino, quando amarrava asas de lençol na bicicleta. Dizia aos
irmãos: “Vocês verão quando eu sair voando num avião! A multidão gritará: Viva
Antonie de Saint-Exupéry!”.
Como piloto de empresa que transportava correspondência, aterrissou
algumas vezes no Brasil. Em 1929, em Florianópolis, fez amizade com pescador
que o batizou de Zé Perri. Juntos, pescaram e caçaram.
Importante informar que o piloto Antoine de Saint-Exupéry quis ser, no primeiro
momento, pintor. Como não houve incentivo, cresceu e formou-se piloto.
Mestre em manobras arriscadas sofreu
vários acidentes. Proibido por médicos a voltar a pilotar, desapareceu num voo
em 31 de julho de 1944, durante uma missão de reconhecimento, um ano depois de
publicar “O Pequeno Príncipe”. Sumiu tão misteriosamente quanto seu personagem.
Em três
de novembro, em homenagem póstuma, recebeu as maiores honras do exército. Em
2004, os destroços do avião que pilotava foram achados a poucos quilômetros da
costa de Marselha. Seu corpo jamais foi encontrado.
Ele escreveu outros livros e suas obras foram caracterizadas por alguns
elementos em comum, como a aviação, a guerra. Também escreveu artigos para
várias revistas e jornais da França e outros países, sobre muitos assuntos,
como a guerra civil espanhola e a ocupação alemã da França.
Sua obra teve repercussão mundial. É um livro, a
princípio, voltado para o público infantil, mas que, pelo vasto conteúdo e
riqueza de lições, acabou sendo aderido como leitura pelos adultos também.
A história do filme começa com o autor, em primeira pessoa, trazendo
indiretamente seu relato pessoal autobiográfico. Logo podemos perceber o quanto
ele se sentia sozinho, sem ninguém com quem pudesse conversar (já que os
adultos não entendiam a infância; e ele na vida adulta não entendia os
adultos). Esse tipo de mundo adulto rejeitado é segundo Marie-Louise Von Franz
o vazio da persona:
Ele
acredita que a infância é a verdadeira vida, e que todo resto é a persona vazia
correndo atrás de dinheiro, tentando impressionar os outros para ser
prestigiada, havendo perdido sua verdadeira natureza, por assim dizer. É assim
que ele vê a vida adulta, pois não encontrou a ponte através da qual ele
poderia conquistar o que chamamos vida verdadeira na vida adulta (VON FRANZ, 2011, p 22).
Na primeira cena do filme o destaque é para o
desenho que fez na infância de uma serpente que engoliu um
elefante.
Esse desenho se deu porque ele vira anteriormente a imagem de uma cobra
engolindo um animal sem mastigar e de alguma forma aquilo o impressionou.
Quando mostrava seu desenho aos
adultos, eles sem compreender disseram que era um chapéu. Após sua segunda
tentativa, agora revelando o interior da cobra, os adultos o desestimularam a
continuar desenhando e o incentivaram a se dedicar aos estudos.
Se associarmos o simbolismo do desenho feito na infância com a dificuldade
de sair do mundo infantil sem cair no mundo de ilusões do adulto veremos que as
implicações são mais profundas:
A
serpente boa é obviamente uma imagem do inconsciente, que sufoca a vida e
impede o desenvolvimento do ser humano. É a introjeção do aspecto regressivo do
inconsciente, a tendência à regressão, que surge numa pessoa quando ela é
dominada pelo inconsciente. O herói devorado não se liberta. (VON FRANZ, 2011,
p 24).
O animal devorado é o elefante. Para
os Europeus, o elefante é o arquétipo do homem sábio, ou do pajé, que tem além
de coragem, sabedoria e conhecimentos secretos. Além dessas virtudes, também, caracterizavam
o elefante por um animal de humor instável e chamavam a atenção para os seus ataques
de raiva.
É surpreendente como essas características, humor instável e raiva, eram
características marcantes em Saint-Exupéry. Pode-se dizer, então, que essa era
uma descrição exata de sua personalidade. Segundo Marie-Louise Von Franz, o
elefante á a fantasia típica do herói adulto. Sendo assim, esse modelo, a
imagem do que sua alma quer vir a ser, é devorada pela serpente, mãe
devoradora. Seu primeiro desenho já mostra toda a tragédia.
Muito
frequentemente, os sonhos da infância antecipam o destino interior com 20 ou 30
anos de antecedência. Esta
primeira gravura mostra que Saint-Exupéry tinha um lado heroico vivo atuante,
mas que esse lado nunca iria aparecer, pois seria devorado pelas tendências
regressivas do inconsciente e, como sabemos, através dos acontecimentos
posteriores de sua morte (VON
FRANZ, 2011, p 26).
Observem como o mito da mãe devoradora pode ser associado à mãe de Saint-Exupéry.
Seu complexo materno, sempre inclui o risco de ser devorado pelo inconsciente.
Logo após essa cena o autor narra seu
acidente de avião, quando ele cai no deserto do Saara. A imagem do deserto
simboliza na psique um período onde a energia da personalidade consciente vai
se esgotando e as coisas ficam sem sentido; a pessoa fica apática e sem vida.
Nesses casos ocorre que a energia bloqueada inconsciente flui e oferece uma solução
original. Nota-se isso com o aumento da atividade onírica, que faz com que a
pessoa preste mais atenção em seus conteúdos inconscientes.
Como ele estava sozinho, teve que
aprender a ser mecânico e consertar o motor do seu avião. Depois da primeira noite
de sono no deserto, de repente, é acordado por uma criança. Ou seja, inicia a
história, propriamente, de um piloto perdido no deserto e um menino vindo de um
lugar distante. Juntos eles irão compartilhar diversas experiências.
Outro detalhe desta passagem do
filme é que esse encontro milagroso no deserto tem a ver com o que aconteceu na
vida pessoal de Saint-Exupéry. Uma vez lhe aconteceu um desastre aéreo no
Saara, mas nesta situação ele não estava só, mas com seu mecânico. Eles tiveram
que trabalhar exaustivamente e quase morreram, quando foi resgatado por um árabe.
Ele obviamente usou suas lembranças
no seu livro transformando essas lembranças. Neste caso o mecânico seria sua
sombra, e que no filme não está com ele, e ele não fala sobre o salvamento. Mas
ele traz na obra algo de sobrenatural, como fantasias arquetípicas, ou seja,
isso mostra a situação psicológica típica onde a personalidade consciente
esgotou todos os seus recursos e não sabe o que fazer (daí apela para o sobrenatural).
Na cena seguinte,
a figura misteriosa do Pequeno Príncipe pede que ele desenhe um carneiro, e
após três tentativas que o menino recusa, o homem impaciente desenha uma caixa
e diz que o carneiro está dentro. O Pequeno Príncipe diz que aquilo é
exatamente o que queria.
Essa
impaciência de Saint Exupéry é vista por Von Franz como outro
traço típico do puer aeternus. Quando analisamos um homem puer aeternus o que é
realmente importante é fazê-lo perseverar em alguma atividade:
O que importa é que ele faça algo
do principio ao fim, seja lá o que for. Mas o grande perigo, ou o comportamento
neurótico, é que o puer aeternus, ao realizar tais atividades, tende a fazer o
que Saint-Exupéry fez aqui: simplesmente colocar tudo dentro de uma caixa e
fechar a tampa com um gesto de impaciência. É por isso que estas pessoas dizem
de repente que elas mudaram de ideia e que têm outros planos, que não é aquilo
que estavam procurando. E eles sempre fazem isso no momento em que as coisas
ficam difíceis. (VON
FRANZ, 2011, p 35)
Quando
Saint-Exupéry impaciente coloca a ovelha dentro da caixa (simbolicamente na
caixa de seu cérebro), ele aceita a ideia, mas apenas como uma ideia. Tudo
permanece no mundo do pensamento.
Passando para o simbolismo da ovelha
na vida pessoal de Saint-Exupéry, pode-se ver, mais tarde no filme, que no
planeta do Pequeno Príncipe há um supercrescimento de baobás que brotam
constantemente. O Príncipe das estrelas quer a ovelha para comer os brotos logo
que eles aparecerem, para não ter que trabalhar o tempo inteiro arrancando-os.
Porém, o Pequeno Príncipe não explica isso a Saint-Exupéry, e a razão
verdadeira só aparece mais tarde.
Marie-Louise Von Franz explica em
seu livro, que a ovelha era usada nos campos de aviação e poderia acontecer de
o avião por engano atropelá-las. Segundo a autora, pode-se dizer que Saint-Exupéry
projeta nas ovelhas aquele destino que um dia leva o puer aeternus à morte, ou,
neste caso, ele próprio. É o inimigo fatal.
Ainda a respeito do significado da
ovelha tem-se:
Portanto, o menino
das estrelas de nossa história quer uma ovelha. Ficamos sabendo que ela é
necessária para comer as árvores que crescem demais, que obviamente é um
símbolo da mãe devoradora, portanto o desejo de uma ovelha parece, à primeira
vista, ter um significado positivo; quer dizer, o asteroide está ameaçado pelo
super crescimento, que é o complexo materno. Já ilustrei isso de uma outra
maneira, com a ovelha como parte do complexo materno, o que é útil, e não como
o remédio certo contra o crescimento. Portanto, aqui novamente deparamos uma
total ambiguidade. (VON FRANZ, 2011, p
52).
Em seguida o homem começa a saber
mais sobre de onde veio aquele garoto. Ele vivia em um planeta muito pequeno
com sua rotina (limpar três vulcões, sendo um extinto, e podar a grama e ervas
daninhas). Até que um dia nasce uma rosa.
Podemos interpretar esse estágio
como uma identificação do ego com o Si-mesmo no princípio, quando as coisas
estão indiferenciadas e o processo de individuação ainda não começou. A chegada
da rosa indica o começo do desenvolvimento, assim como no mito Eva é feita da
costela de Adão. Há a separação dos opostos. É o começo do estranhamento
ego-Si-mesmo.
O fato de um dos vulcões está
extinto nos faz imaginar que isto possa ser a representação da libido que
desapareceu. O fato de ele limpar sempre os vulcões porque ““nunca se sabe””
mostra uma esperança longínqua dele se tornar ativo de novo.
Para Marie-Louise:
Acho que isso
confirma nossa hipótese de que há uma fraqueza vital, ou destrutividade, nas
camadas mais profundas do solo psíquico de Saint-Exupéry, que foi afinal
responsável pelo fato de ele não sobreviver à crise da meia-idade, uma tragédia
tão frequente para o puer aeternus (VON FRANZ, 2011, p 91).
Considerando o tamanho do planeta,
podemos inferir que representa sua fraqueza vital. Segundo Marie-Louise Von Franz,
a vitalidade estava cedendo em alguns pontos, e com ela, a capacidade de ter
reações afetivas autênticas.
Examinado
a rosa, esta se mostra bela e perfumada, porém faz muitas demandas ao Pequeno Príncipe
que se cansa. Essa imagem da rosa pode ser analisada, conhecendo-se um pouco da
vida do autor, sob o aspecto do complexo materno. As muitas exigências da rosa
é a típica manipulação do tipo materno negativo. Sobre o assunto Von Franz nos
conta:
O mito da mãe
devoradora pode ser associado à mãe de Saint Exupéry [...]. Ela certamente tem
uma personalidade muito poderosa. É mulher grande, forte, e pelo que ouvimos
dizer, possui uma tremenda energia, interessa-se por todos os tipos de
atividades, e tenta fazer de tudo, como pintura, desenho e literatura. [...]
Obviamente, deve ter sido muito difícil para um garoto sensível ter uma mãe
assim. Também se ouve dizer que ela previu a morte do filho. Várias vezes ela o
julgou morto e vestiu luto como as viúvas francesas, e depois tirava o luto
quando ficava sabendo que ele não havia morrido. Portanto, o padrão arquetípico
do que chamamos mãe-morte estava vivido em seu . (VON FRANZ, 2011, p 26-27)
Na relação com a rosa observa-se,
também, que o autor faz alusão à sua experiência com mulheres. É a sua primeira
projeção da anima, nesse caso uma anima inflada, exigente.
Fica
claro no filme o quanto é difícil para ele não saber lidar tanto com o
temperamento e vaidade da rosa como também com seu charme e beleza. Nas cenas
seguintes vemos como tanto o Pequeno Príncipe quanto a rosa tinha um
comportamento infantil. Ambos sofrem, mas são orgulhosos demais para fazer um
gesto de reconciliação ou não sabem como fazê-lo. Essa descrição lembra muito
uma relação amorosa onde um tortura o outro.
Se
examinarmos isso do ponto de vista de Saint-Exupéry podemos entender um pouco
as separações sofridas por eles em sua vida, ou seja, seu gênio interior, o Pequeno
Príncipe, foi atormentado pela instabilidade da anima e que o objeto do seu
sofrimento era amadurecer o núcleo por demais infantil de sua personalidade.
A esposa de Saint-Exupéry
parece ter sido um pouco histérica e acometida de tremendas crises
temperamentais. Ele vivia tão mal com ela que a abandonou e viveu por algum tempo
com outra mulher que o ensinou a fumar ópio. É também notável e bem típico da
mãe de Saint-Exupéry não ter gostado da esposa dele, mas ter adorado a mulher
que lhe ensinou a fumar ópio. Ela sentiu que o havia perdido menos para a
segunda mulher do que para a primeira. Contudo, ficamos sabendo disso pela sua
esposa e devemos, portanto das o devido desconto. (VON FRANZ, 2011, p. 87)
Um
fato interessante é que Saint-Exupéry perdeu um irmão quando tinha dezessete
anos. Ele era muito ligado a este irmão e segundo muitos, a morte dele foi um
trauma do qual nunca se recuperou. É como se uma parte de sua personalidade
infantil tivesse morrido junto com seu irmão. Isso reforça, ainda mais, a idéia
que o Pequeno Príncipe seria, então, uma imagem exterior do que tinha
acontecido dentro dele, ““uma projeção de algo que morrera e levara consigo uma
parte de Saint-Exupéry”” (VON FRANZ, 2011).
Em seguida no filme, por sofrer
tanto com o temperamento instável da rosa, decide sair de seu planeta, chamado
de B-612 e, vendo um bando de pássaros migrarem, resolveu agarrar-se a um deles
e deixar-se levar, vai visitar e explorar asteroides vizinhos e depois chega a
terra.
Nestes asteroides o pequeno viajante
encontra personagens, os quais poderiam ser chamados de sombras, ou capacidades
interiores de adaptação de Saint-Exupéry à realidade.
O
primeiro dos personagens inusitados foi o rei. Este pensava que todos eram seus
súditos e não tinha nenhum amigo perto. Pode-se perceber que o rei priorizava
as grandes coisas, a estética. O sentido da existência não se dava na relação
com o outro. O súdito e o admirador eram significantes apenas no momento em que
valorizava a eles próprios, aquilo que se quantificava (relação superficial, de
aparências).
Depois do rei ele encontra um
geógrafo que se dizia sábio, mas que não sabia nada da geografia do seu próprio
país. Encontra também um homem de negócios. Este se
dizia muito sério e ocupado, mas não tinha tempo para sonhar. Encontra também
um historiador.
Acredito
que a força e a profundidade da mensagem destes encontros inusitados é a de
mostrar que, ““ as pessoas grandes são estranhas ”” (ele conclui repetidamente
isso a cada encontro com um novo personagem). Isso fica realmente claro, os
personagens são ilógicos incoerentes, valorizam o que não tem valor por si
mesmo, não se dão conta da sua própria miséria existencial.
Assim
como os personagens, nós, quando nos tornamos adultos, nos distanciamos da
naturalidade com que a criança encara a vida, nos alienamos de nós mesmos.
Deixamos de valorizar o que é realmente essencial no mundo e nos
desnaturalizamos, focando toda a nossa atenção e energia em artificialismos
criados culturalmente e que não existem naturalmente, tais como: o sentimento
de posse/ apego (representado pelo homem de negócios), o status (o rei), o
falso conhecimento adquirido pelo relato de terceiros, substituindo a vivência
própria (o geógrafo) etc.
De acordo com Von Franz
o homem identificado com o arquétipo do puer aeternus tem, geralmente, grandes
dificuldades de adaptação social. Em alguns casos, há um tipo de individualismo
associal: sendo alguém especial, ele não tem a necessidade de adaptar-se, pois
as pessoas é que têm que adaptar-se a um gênio como ele e assim por diante.
Além disso, assume
uma atitude arrogante em relação aos outros, devido tanto ao complexo de
inferioridade, como a falsos sentimentos de superioridade. Tais pessoas têm
grande dificuldade de encontrar o tipo certo de trabalho, pois tudo que aparece
é exatamente o tipo que queriam ou procuravam. Há sempre um “cabelo na sopa” A
mulher nunca é a ideal, ela é legal como namorada, mas… Há sempre um “mas” que
não o deixa casar-se ou comprometer-se.
Von
Franz ao analisar as características de uma pessoa identificada com o puer
aeternus nos fala:
Ao mesmo tempo, há
sempre algo altamente simbólico — principalmente uma atração por esportes
perigosos, particularmente aviação e alpinismo — de modo que nesses esportes
ele se encontra o mais alto possível, simbolizando a separação da mãe, isto é,
da terra, da vida comum. Se esse tipo de complexo for muito pronunciado, muitos
homens que o possuem encontrarão a morte prematura em acidentes de avião e de
alpinismo. É um desejo exteriorizado que se expressa dessa forma. (VON FRANZ,
2011, p 11).
Quando o Pequeno Príncipe chega a
Terra depara-se com uma cobra que lhe oferece um modo de voltar para casa já
que seus pássaros que o trouxeram o abandonaram. Aí está de novo o simbolismo
da serpente, como mãe devoradora, figura do inconsciente, ou também a figura
alquímica da uroboros, a serpente que morde a própria cauda, símbolo da unidade
primordial, do Si-mesmo.
O Pequeno Príncipe fica tentado a
deixar ser picado, o que seria a vontade de ser sugado pelo inconsciente. A
cobra, como todos os animais representa o psiquismo instintivo, mas é um
instinto completamente banido da consciência. A cobra tem um sentido duplo na
mitologia e isto também é visto na história.
Vocês
podem ver que a cobra em nossa história tem o mesmo papel duplo. Ela se oferece
como exterminadora do Pequeno Príncipe, libertando-o do peso da vida, mas a
oferta pode ser compreendida de duas maneiras: como suicídio ou como a
portadora da sorte de livrar-se da vida. É essa atitude psicológica radical que
afirma que a morte não é uma catástrofe ou um azar, mas um modo de escapar
definitivamente de uma realidade intolerável que pode destruir a pessoa. (VON
FRANZ, 2011, p 96-97)
Outra
ligação ocorre entre a figura da cobra e a criança eterna. A cobra faz o papel
da sombra do próprio Pequeno Príncipe; é seu lado escuro. Assim, o oferecimento
da cobra para envenená-lo pode significar uma integração da sombra. Segundo Marie-Louise
Von Franz “”Infelizmente, isso acontece no Self e não em Saint-Exupéry e isso
significa que tudo acontece no inconsciente, retirando o núcleo psicológico da
realidade novamente””. (VON FRANZ,2011)
Nas cenas seguintes ele se encontra
com a raposa que, no começo arredia, acaba cativando e sendo cativada pelo Pequeno
Príncipe. No início ele a convidou para brincar, mas ela informou que não
poderia, porque ele ainda não a tinha cativado. Segundo ela:
Cativar”
significa “criar laços afetivos”, pois tu ainda não és ainda para mim senão um
garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade
de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma
raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos
necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti
única no mundo... (Pequeno Príncipe)
A raposa busca ensinar ao Pequeno príncipe a ser
humano, mostrando-lhe a importância do sentimento e tirando-lhe sua ““maneira
estatística de pensar (pois o sentimento torna a situação e os relacionamentos
de uma pessoa únicos, substituindo a perspectiva maléfica da estatística)”” (VON
FRANZ, 2011).
A raposa ensina ao Pequeno Príncipe o grande valor
do aqui e agora e também o do sentimento. O sentimento dá valor ao presente,
pois sem este a pessoa não se relaciona com o aqui e agora. Sem esta noção do
aqui e agora a pessoa não se torna responsável e nem tem consciência da sua
individualidade.
Novamente vemos o tema do animal prestativo que
ensina o homem a se tornar humano ou, em outras palavras, ensina-lhe o processo
de individuação. A idéia da raposa é ensinar o jovem como tornar-se humano. Da
mesma forma que a cobra, a raposa representa um poder instituído no próprio
homem que embora representado como um animal, na verdade pertence à humanidade.
No final dessa convivência entre o menino e a
raposa, ela, triste na despedida, disse ao menino que o presentearia com um
segredo: ““ Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. “Tu
te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”” (Pequeno Príncipe).
Os episódios seguintes são os mais poéticos do
filme. Saint-Exupéry começa a sofrer de sede e adentra no deserto. O Pequeno Príncipe
vai com ele e faz com que ele encontre uma fonte imaginaria no deserto, cuja água
o refresca e enche de felicidade.
Este episódio no filme remete-nos, mais uma vez, ao
acidente no qual ficou perdido com seu mecânico, sendo salvo por um beduíno,
que lhe deu agua. Provavelmente por ter sido uma de suas mais marcantes
experiências, ela se repete em sua obra.
Por ser o símbolo do Self, o deus-criança que o pequeno
representa, é também fonte de vida, tem força de renovação. Marie-Louise nos
faz pensar na inocência da criança e do quanto éramos cheios de vida, sempre
interessados em alguma coisa. É por isso que as pessoas desejam tanto ter de
volta a vitalidade que perderam quando cresceram. A criança representa a
possibilidade interior de renovação.
Depois
do clímax da felicidade que atingiram ao encontrar a fonte, o fim trágico
segue-se relativamente rápido. Então é o momento em que o Pequeno Príncipe
reencontra com o homem, este o alimenta e o ajuda. Assim o Pequeno Príncipe
atinge o conhecimento, torna-se um homem, se torna consciente de seu eu, livra-se
de suas atitudes infladas. É o ponto onde o autor se religa com o inconsciente.
Ele descobre o manancial da vida, a fonte da energia da psique, e isso fica
claro quando ambos descobrem o oásis em meio ao deserto.
Saint-Exupéry continua o conserto do avião e
termina no dia que ele encontra o Pequeno Príncipe deixando-se ser mordido pela
cobra. Esta o picou e Saint-Exupéry correu e pegou-lhe nos braços. Uma conversa
entre eles acontece. O Pequeno Príncipe pede a ele que desenhe uma mordaça para
que a ovelha não coma sua rosa e uma cerca, e assim, Saint-Exupéry descobre que
o Pequeno Príncipe vai partir. Ele já não pode fazer mais nada, é tarde demais.
Ele
já tinha ficado marcado anteriormente pela sensação de impotência e incapacidade
de salvar alguém da morte quando seu irmão faleceu. Quando ele descreve a morte
de alguém em seus livros, sempre fala da terrível sensação de impotência. (VON
FRANZ, 2011, p 122).
Para Marie-Louise Von Franz, Saint-Exupéry
preparou-se para o fim o tempo todo. Isso é uma marca da falta de sentimentos.
A pessoa fica consciente da transitoriedade da vida e, portanto está sempre se
preparando para o fim. O puer aeternus fica o tempo inteiro mantendo-se a
margem da vida, para não se entregar e ser surpreendido por situação
desagradável.
Após esse descobrimento do Si-mesmo,
de uma entidade superior reguladora, o Pequeno Príncipe morre prematuramente, o
que se pode entender pelo arquétipo do puer aeternus. A esse respeito JUNG diz:
A este tipo [puer aeternus] só é dada uma vida curta
[...]. Isto é tão verdade que determinado tipo de filho apresenta in concreto as propriedades de um jovem
deus, a tal ponto que vem a falecer precocemente. A razão disto é que ele só
vive através da mãe e não cria raízes próprias. (JUNG, 2011, p 310).
Assim, o Pequeno Príncipe volta para
o seu planeta, para a sua rosa, para o princípio, sendo fatalmente sugado pelo
inconsciente.
Considero fundamental, para
finalizar a análise, reforçar o cuidado que devemos ter ao ler e refletir sobre
o filme. Devemos estar vigilantes para observarmos sempre os dois lados do
puer, ou seja, as características positivas e negativas. Como vimos o negativo
seria a sombra infantil, o preguiçoso que perde a oportunidade de lutar contra
o complexo materno e o outro lado, o positivo, seria o Self, algo que tenta
decolar em direção ao futuro, em direção da nova possibilidade da vida depois
da crise, de encontrar uma renovação.
É
importante compreender o quanto que os traços infantis da personalidade do puer
que desvaloriza sua personalidade são os mesmos que promovem a genialidade na
escrita de Saint-Exupéry. Ele não seria um artista assim genial se não tivesse
a criança divina dentro dele, se não tivesse a capacidade de ser totalmente
ingênuo e espontâneo; isso é a fonte de sua criatividade. Como cita Marie-Louise,
““Não se pode julgar, mas simplesmente entender isso como um fator
contraditório e imponderável.”” (VON FRANZ, 2011).
Desta
fábula foram feitos filmes, desenhos animados, além de adaptações. Muitos
adultos até hoje se emocionam ao lembrar do livro. Talvez porque tenham se
tornado “gente grande” sem esquecer de que um dia foram crianças.
REFERÊNCIA
BIBLIOGRAFICA
EXUPÉRY, Antoine de
Saint. O Pequeno Príncipe. 48 ed.
Rio de Janeiro: Agir, 2001.
JUNG,
Carl Gustav. Símbolos da Transformação.
Vozes, Petrópolis, 2011.
VON
FRANZ, Marie-Louise. Puer Aeternus. 4º
ed. Paulus, São Paulo, 2011.
LEITE, Micael Lacerda
Leite, Análise Crítica do livro O Pequeno
Príncipe, 2014, Disponível em: https://psicologado.com/resenhas/analise-critica-do-livro-o-Pequeno-Príncipe ©
Psicologado.com, Acesso: 19/05/2015.
ROMEU, Gabriela. O Pequeno Príncipe completa 70 anos, conheça
as aventuras do autor, 2013, Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folhinha/2013/04/1269197-o-Pequeno-Príncipe-completa-70-anos-conheca-aventuras-do-autor.shtml
ou as ferramentas oferecidas na página, Acesso dia 17/05/2015.
JUNIOR,
Arryson A. Zenith. Análise da obra “O Pequeno
Príncipe” sob a perspectiva da teoria Junguiana, 2012, Disponível em: http://www.researchgate.net/profile/Arryson_Zenith_Junior2/publication/262300920_Anlise_da_obra_O_Pequeno_Prncipe_sob_a_perspectiva_da_teoria_Junguiana/links/0a85e53740b9daeb2c000000,
Acesso: 18/05/2015
Resenha Crítica por Ivna Vieira, estudante do Curso de Formação de Psicologia Analítica, realizado pela PROFINT - Profissionais Integrados Ltda.
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