Já dizia o grande
gênio Michelângelo, que suas estátuas magníficas (La Pietá
e Davi) já estavam dentro do mármore,
cabendo a ele apenas a tarefa de retirá-las de lá. Assim, também temos em nós
não uma essência definida, mas o potencial criativo que pode nos construir e tornar
seres singulares. À medida que crescemos, aprendemos a diferenciar o Eu do
não-Eu e experimentamos o nascimento do Ego e o desenvolvimento da nossa
consciência. Vamos com o tempo nos separando do senso de Unicidade com tudo e
com o Todo, da fase inicial, e vamos adquirindo uma maior identificação com o
Ego, desempenhando nossos papéis, construindo uma Persona. Mas, permanecem
forças interiores desconhecidas (Sombras), se transformando e fervilhando,
principalmente quando atingimos a fase da Metanóia, ou a meia-idade. Nesta fase
de transformação, acontece uma centroversão, quando o centro da Consciência
deixa de ser o Ego e tende a se voltar, lentamente, para o Self, na busca da
auto-realização maior. Aí o processo de Individuação (que vem do latim individus e significa indiviso, inteiro
ou não fragmentado), geralmente se acelera.
Segundo Carl Gustav
Jung, o processo de Individuação é teleológico, voltado para a construção de um
sentido para a vida. Este processo foi estudado e definido também em termos
similares por outros estudiosos humanistas, tais como Maslow, Carl Rogers,
Fritz Perls, Alfred Adler, assim como por filósofos antigos (Tomás de Aquino,
Aristóleles e Schopenhauer, entre muitos). Por outro lado, segundo BREHONY
(1999, p. 34) “o mundo antigo está
repleto de imagens, mitos, contos de fada, poesia e orações que esboçam o
caminho em espiral até o Si-Mesmo. Os índios navajo chamavam a Jornada de ‘caminho
do pólen’, os sioux o denominavam de’ boa estrada vermelha’ e os chineses
chamam simplesmente TAO”.
Mas, na vida cotidiana, ninguém realmente
“individua” totalmente, torna-se completamente inteiro, realizado ou consciente
do seu Self. O valor do processo está, antes, naquilo que acontece ao longo do
caminho – é a própria trajetória, trilha ou Jornada que é o destino, que deve
ser contemplada ativa e conscientemente. A meta só é importante como idéia, o
essencial é o processo. Este nos leva naturalmente a uma abertura e sabedoria
interior, embora a trajetória não seja fácil, pois envolve a luta com “nossos
dragões”, como na Jornada Heróica.
Segundo MULLER
(1997, p.12), na jornada do herói a mudança e amadurecimento estão ligados à
experiência do “morrer e retornar”. Para o ser humano, “isto significa o processo de Individuação, através do qual penetramos
em nossas próprias profundezas anímicas desconhecidas, vivendo a experiência da
morte de valores e posicionamentos antigos e estéreis, retornando depois de um
processo de reordenação, com uma atitude mais saudável em relação a nós mesmos
e à vida”. Complementa este autor que o herói substitui o ser humano
exemplar, que se esforça por uma renovação social, pelo domínio criativo da
vida e pela ampliação da consciência. Estar a caminho do SELF é a meta do herói
humano, embora só possa “circundar”
este Si-Mesmo, sem jamais concretizá-lo ou realizá-lo por completo. Assim, o
herói se encontra numa eterna peregrinação, numa procura ininterrupta da vida
criativa, travando sempre “novas lutas
com o dragão”, de modo que todo ato através do qual transformamos a nós
mesmos e ao nosso meio, com criatividade, pode ser considerado um ato
heróico.
Tal como na maioria
das histórias dos heróis da Mitologia, cada um de nós traz dentro de si uma “criança ferida” que sofreu, em maior ou
menor grau, com sentimentos de impotência, humilhação e insignificância diante
dos adultos, tendo de reprimir o medo, a ira legítima e a profunda aflição que
sentimos. Tal como nos heróis míticos, tivemos feridas infantis que precisamos
tratar, ultrapassar, superar. Portanto, segundo MULLER (1997, p.30), “quem se lançar na viagem do herói deve se
ocupar, inevitavelmente e de maneira afetuosa, com a criança abandonada e
humilhada dentro de si. Deve se confrontar com o medo, a aflição e a impotência
da sua primeira infância, para que a sua força de vontade, sua franqueza e
alegria de viver possam despertar outra vez”. Assim, não podemos continuar
fixados na postura de culpar nossos pais, sem assumir a responsabilidade pela
própria vida, possibilitando assim a “criança
ferida” ser substituída pela “criança
divina”, capaz de resgatar sua força criativa. J. L. Moreno diria que seria
resgatar a centelha divina da espontaneidade-criatividade.
A aventura do herói nas
Mitologias e nos contos de fadas começa, em geral, com alguém de quem se tomou alguma
coisa, ou que sente que falta “algo”, de modo que entra em “crise”. Ela é
chamada para partir para uma série de aventuras (internas e/ou externas) ou
desafios fora do comum, para recuperar o que foi perdido, ou para descobrir
algo novo. Sua jornada inicia-se com uma separação, um chamamento ao novo e
acaba quando “mata seus dragões” e
retorna ao seu reino, enriquecida.
No caminho da jornada, o
herói encontra forças extraordinárias e obtém uma vitória decisiva, adquirindo
a sabedoria e o poder de conceder benefícios aos seus semelhantes. Em todas as
culturas o Mito do herói apresenta esta mesma estrutura básica, de modo que ele
se constitui num “monomito”, uma amplificação da fórmula apresentada nos
rituais de passagem. Temos como exemplos: Prometeu roubando o fogo dos deuses;
Psiquê realizando as tarefas exigidas por Afrodite para poder se unir a Eros,
seu amado; a subida e a descida de Inana às profundezas do mundo inferior, etc.
No caminho da Jornada
do herói ele tem, geralmente, de enfrentar como adversário sua própria Sombra
(que aparece nas histórias mitológicas como um inimigo igualmente forte). Ao se
familiarizar com suas sombras, retirando as projeções negativas dirigidas aos
semelhantes, o herói vai reconhecendo suas próprias limitações, seu próprio
mal, sua ânsia de poder, megalomania e onipotência, que o faziam sentir-se com
um Ego-inflado. Também na maioria das histórias de heróis da Mitologia, antes
da luta com o dragão propriamente dita, eles têm de realizar “trabalhos preliminares”
para demonstrar competência, a maioria dos quais enfrentando monstros e animais
perigosos (como é exemplo o herói Hércules, em seus 12 trabalhos). Enfrentar
estes animais é como dar os primeiros passos no ritual de iniciação, ao se
abrir para o mundo obscuro do Inconsciente. Eles representam, simbolicamente,
os medos e com emoções ameaçadoras que precisam ser reconhecidos e domados para
o indivíduo recuperar sua “força animal”.
Segundo MULLER (1997,
p. 67), “aprender a lidar com o medo
diante da nossa realidade psíquica é por isso um dos trabalhos preliminares
necessários no processo de Individuação”. Esta “força animal” significa uma
totalidade instintiva original perdida, que deve ser resgatada para
recuperarmos e entendermos nossa “psique animal”, dando-lhe espaço para cumprir
sua função. No entanto, segundo este autor, “para
um Ego pouco desenvolvido, o contato com os impulsos e afetos do nosso
organismo é realmente muito ameaçador. Tem-se sempre o receio de ser possuído
por eles e sucumbir a eles (...). A solução mais próxima é suprimir o corpo com
seus afetos, tentações e desejos. Contudo, assim também se restringe, ao mesmo
tempo, a vivacidade espiritual e física” (Ibidem, p.67). Assim, devemos
estabelecer uma relação amigável e positiva com nossos instintos, resgatando
sua sabedoria.
Do nascimento até a
morte, todo ser humano está sempre executando diversas vezes o Mito do herói e
lutas com dragões. Como vimos no item anterior, no início do desenvolvimento
infantil a criança tem de dominar forças inquietantes e desesperadoras às quais
teme, sentimentos ambivalentes em relação aos pais, vencendo o dragão do medo
com seus próprios recursos. A cada situação nova e desconhecida teme fracassar,
necessitando que tais medos sejam admitidos e penetrados com objetividade.
Assim, o objetivo é integrar o essencial daquilo que nos provocou medo, para
atingirmos uma consciência ampliada, através da força criativa latente do
dragão. Não é por acaso que na China, na Índia e no Japão o dragão simboliza a
fertilidade e a força criativa, a felicidade, a sabedoria e a longevidade.
Em busca do
auto-conhecimento, o herói deve se desligar das fixações e dependências da
infância, questionar normas e valores sociais dominantes, assumindo uma posição
singular. Mas, o dragão maior a ser enfrentado é, sem dúvida, o da morte. É só
descendo ao “reino das trevas” (ao
Hades, ao Inferno), que ele se torna um verdadeiro herói, experimentando um
segundo nascimento, e encontrando a “preciosidade
de difícil acesso”. O contato com a morte representa o encontro com a
própria incorporeidade, impotência, fragilidade e transitoriedade da
existência, o contato com as profundezas do inconsciente. Este contato provoca
uma sensação de vazio, de insegurança, de falta de sentido, de vergonha e medo,
o que leva à experiência da morte simbólica do Ego. O confronto com a
mortalidade liberta o Ego de suas ilusões, inflações e culpas, constituindo-o
como instância criativa. A “descida”
então proporciona uma “elevação”, uma
redenção do Self, um renascimento. Finalmente, o herói “liberta a cativa” no final da sua Jornada e encontra sua
feminilidade, restabelecendo um relacionamento criativo com seu lado feminino
perdido (sua Anima). Por outro lado, para a mulher, a jornada do herói culmina
com a recuperação / superação do medo da autonomia e da auto determinação, “da dissolução do relacionamento de
identidade com a mãe e com o encontro da própria identidade feminina” (MULLER,
1997, p. 118). Assim, elas também poderão despertar seu lado masculino
inconsciente (Animus), libertando suas forças criativas.
Segundo Nise da
Silveira (2000) “se, por intermédio do
trabalho analítico, os processos inconscientes chegarem a ser confrontados e o
Ego despojar-se da identificação com a imagem arquetípica do herói, abre-se a
possibilidade para a síntese de elementos de conhecimento e de ação, do
consciente e do inconsciente. Isto por sua vez conduz ao deslocamento do centro
da personalidade do Ego para o Self” (SILVEIRA, 2000, p.117).
Assim, cada jornada
heróica é única e a transformação do “reino”,
no retorno, na “subida”, depende de
cada um. Os heróis representam arquétipos, maneiras de ser, pensar e agir
durante a jornada. A analista junguiana Carol Pearson (1999) em sua obra “O despertar do Herói Interior”,
identificou doze imagens arquetípicas que são fundamentais para esta jornada,
em suas características positivas e negativas, que contribuem para a trajetória
do processo de Individuação. Segundo a autora, neste processo ao longo da vida
podemos ativar ou constelar estes doze arquétipos básicos diversas vezes, que
evoluem de níveis mais superficiais até níveis mais elevados ou profundos de
desenvolvimento, se manifestando em nossas vidas de modo cíclico e em espiral. A busca eterna
do processo de Individuação é possibilitar a emergência de níveis arquetípicos
mais evoluídos e positivos, que facilitem a realização do Self, integrando
aspectos conscientes e inconscientes, com o advento da função transcendente. Se
alcançarmos este estágio, a fase do “heroísmo”
é ultrapassada e alcançamos o estágio da Transformação, porque o indivíduo
aprende a “dançar com a vida”, as dualidades começam a desaparecer, ele não
vive mais na unilateralidade da consciência. Aflora um contato maior com o
cosmo, com a coletividade e emerge uma verdadeira alegria, liberdade e
autenticidade no viver.
Segundo PEARSON
(1999) a Jornada do Herói Interior obedece basicamente a três estágios: 1) a preparação – cujo objetivo é a busca
do desenvolvimento do Ego, que em geral predomina da infância ao início da vida
adulta, num processo de auto-afirmação. Os arquétipos ou heróis predominantes
deste estágio são o Inocente, o Órfão, o Caridoso e o Guerreiro; 2) a jornada propriamente dita – cujo
objetivo é a busca da transformação, do encontro com nossas verdades
conscientes e inconscientes. Deixamos a acomodação e os pegos à Persona e
embarcamos numa luta solitária, onde encontramos “dragões” (a nossa Sombra,
Anima/Animus, metamorfoses, etc.). Os arquétipos ou heróis predominantes são o
Explorador (ou Nômade), o Destruidor, o Amante e o Criador; 3) o retorno – é o processo decorrente do
“encontro” com o Self, quando nos tornamos mais conscientes do nosso potencial
e singularidade, colocando-o em prática em benefício de nós mesmos e da
coletividade. São predominantes deste estágio os heróis ou arquétipos do
Governante, do Mago, do Sábio e do Bobo.
O mito do herói,
segundo Joseph Campbell (1977), se constela no Inconsciente Coletivo em todas
as situações de opressão, com suas “mil faces”, podendo fazer emergir
coletivamente o líder Salvador (a exemplo de Jesus Cristo), o Libertador, o
Tirano e o Estrategista. Se o Libertador permanece e continua investido no
poder que lhe confere o mito, ocorre o fenômeno da “enantiodromia”, que o transforma no seu oposto, o Tirano. Segundo Jung,
este fenômeno da enantiodromia, descrito por Heráclito, define que tudo “pode correr em direção contrária”. Só
escapa à lei da enantiodromia quem é capaz de diferenciar-se do Inconsciente
coletivo, não através da repressão deste, mas colocando-se à sua frente, como
algo diferenciado, distinto.
Quando um indivíduo
se identifica com o mito, de forma inconsciente, ocorre a impregnação e o
processo segue seu enredo e roteiro. Assim, se a psique individual ficar
impregnada pelos conteúdos do Inconsciente Coletivo poderá trazer conseqüências
nocivas para si e para o seu grupo social. É preciso, então, alcançar a função
transcendente, conhecer a origem das coisas, inclusive a origem dos mitos que constelamos
nos papéis que desempenhamos ao longo da vida.
R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S
BREHONY, Kathleen. “Despertando
na Meia-Idade”, São Paulo. Ed. Paulus, 1999.
do Pós-Modernismo para a Psicoterapia”,
CAMPBELL, Joseph. “O Herói de Mil Faces”, São Paulo, Cultrix,
1997.
JUNG, C. G.
"Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo", C.W., vol. IX/2,
Petrópolis,
Vozes, 1982.
MARONI, Amneris. “Jung, Individuação e Coletividade”. São Paulo, Ed.
Moderna, Col. Logus, 1999.
MULLER, Lutz - “O Herói –
todos nascemos para ser heróis”. São Paulo, Ed. Cultrix, 1997.
PEARSON, Carol. “A Jornada do Herói Interior”. São Paulo, Ed. Pensamento, 1999.
STEIN, Murray. “Jung, o Mapa da Alma”.São Paulo, Cultrix, 1998.
SILVEIRA, Nise da. “Imagens do Inconsciente”, Rio. Ed. Alhambra,
1981.
________________, “Jung - Vida e Obra”, Rio de Janeiro, Paz e
terra, 2000.
Artigo escrito por Cybele Ramalho - CRP (19/300), Psicóloga, Psicoterapeuta Junguiana, Psicodramatista e Diretora Técnica da PROFINT - Profissionais Integrados.
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